Montesquieu - Do Espírito das Leis ÍNDICE Prefácio Advertência do Autor PRIMEIRA PARTE LIVRO PRIMEIRO - Das Leis em Geral Cap. I Das Leis em suas Relações com os Diversos Seres Cap. II Das Leis da Natureza Cap. III Das Leis Positivas LIVRO SEGUNDO - Das Leis que Derivam Diretamente da Natureza do Governo Cap. I Da Natureza dos três Diferentes Governos Cap. II Do Governo Republicano e das Leis Relativas à Democracia Cap. III Das Leis Relativas à Natureza da Aristocracia Cap. IV Das Leis em sua Relação com a Natureza do Governo Monárquico Cap. V Das Leis Relativas à Natureza do Estado Despótico LIVRO TERCEIRO - Dos Princípios dos Três Governos Cap. I Diferença entre a Natureza do Governo e seu Princípio Cap. II Do Princípio dos Diversos Governos Cap. III Do Princípio da Democracia Cap. IV Do Princípio da Aristocracia Cap. V De como a Virtude não é o Princípio do Governo Monárquico Cap. VI Como se Supre a Virtude no Governo Monárquico Cap. VII Do Princípio da Monarquia Cap. VIII De Como a Honra não é o Princípio dos Estados Despóticos Cap. IX Do Princípio do Governo Despótico Cap. X De Como a Obediência é Diferente nos Governos Moderados e nos Governos Despóticos Cap. XI Reflexão Sobre Tudo Isso LIVRO QUARTO - De Como as Leis da Educação Devem Ser Relativas aos Princípios do Governo Cap. I Das Leis da Educação Cap. II Da Educação nas Monarquias Cap. III Da Educação no Governo Despótico Cap. IV Dos Diferentes Efeitos da Educação entre os Antigos e Nós Cap. V Da Educação no Governo Republicano Cap. VI De Algumas Instituições dos Gregos Cap. VII Em que Caso essas Instituições Singulares Podem ser Boas Cap. VIII Explicação de um Paradoxo dos Antigos com Relação aos Costumes LIVRO QUINTO - De Como as Leis Decretadas pelo Legislador Devem Ser Relativas aos Princípios do Governo Cap. I Ideia deste Livro Cap. II O que é a Virtude no Estado Político Cap. III O que é o Amor pela República na Democracia Cap. IV Como se Inspira o Amor pela Igualdade e pela Frugalidade Cap. V Como as Leis Estabelecem a Igualdade na Democracia Cap. VI Como as Leis Devem Manter a Frugalidade na Democracia Cap. VII Outros Meios de Favorecer o Princípio da Democracia Cap. VIII Como as Leis Devem Relacionar-se com o Princípio do Governo na Aristocracia Cap. IX Como as Leis São Relativas a seu Princípio na Monarquia Cap. X Da Presteza da Execução na Monarquia Cap. XI Da Excelência do Governo Monárquico Cap. XII Continuação do Mesmo Assunto Cap. XIII Ideia do Despotismo Cap. XIV Como as Leis são Relativas ao Princípio do Governo Despótico Cap. XV Continuação do Mesmo Assunto Cap. XVI Da Comunicação do Poder Cap. XVII Dos Presentes Cap. XVIII Das Recompensas que o Soberano Oferece Cap. XIX Novas Consequências dos Princípios dos três Governos LIVRO SEXTO - Consequências dos Princípios dos Diversos Governos em Relação à Simplicidade das Leis Civis e Criminais, à Forma dos Julgamentos e ao Estabelecimento das Penas Cap. I Da Simplicidade das Leis Civis nos Diversos Governos Cap. II Da Simplicidade das Leis Criminais nos Diversos Governos Cap. III Em que Governos e em que Casos se Deve Julgar Segundo os Termos Precisos da Lei Cap. IV Da Maneira de Formar os Julgamentos Cap. V Em que Governos Pode o Soberano ser Juiz Cap. VI De Como, na Monarquia, os Ministros não Devem Julgar Cap. VII Do Magistrado Único Cap. VIII Das Acusações nos Diversos Governos Cap. IX Da Severidade das Penas nos Diversos Governos Cap. X Das Antigas Leis Francesas Cap. XI De Como, Quando um Povo é Virtuoso, Bastam Poucas Penas Cap. XII Do Poder das Penas Cap. XIII Impotência das leis Japonesas Cap. XIV Do Espírito do Senado de Roma Cap. XV Das Leis Romanas em Relação às Penas Cap. XVI Da Justa Proporção das Penas com o Crime Cap. XVII Da Tortura ou da Questão Contra os Criminosos Cap. XVIII Das Penas Pecuniárias e das Penas Corporais Cap. XIX Da lei de Talião Cap. XX Da Punição dos Pais em Lugar dos Filhos Cap. XXI Da Clemência do Príncipe LIVRO SÉTIMO - Consequências dos Diferentes Princípios dos Três Governos em Relação às Leis Suntuárias, ao Luxo e à Condição das Mulheres Cap. I Do Luxo Cap. II Das Leis Suntuárias na Democracia Cap. III Das Leis Suntuárias na Aristocracia Cap. IV Das Leis Suntuárias nas Monarquias Cap. V Em que Casos as Leis Suntuárias são Úteis numa Monarquia Cap. VI Do Luxo na China Cap. VII Fatal Consequência do Luxo na China Cap. VIII Da Continência Pública Cap. IX Da Condição das Mulheres nos Diferentes Governos Cap. X Do Tribunal Doméstico entre os Romanos Cap. XI Como as Instituições, em Roma, Transformaram-se com o Governo Cap. XII Da Tutela das Mulheres entre os Romanos Cap. XIII Das Penas Estabelecidas pelos Imperadores contra a Devassidão das Mulheres Cap. XIV Leis Suntuárias entre os Romanos Cap. XV Dos Dotes e das Vantagens Nupciais nas Diversas Constituições Cap. XVI Belo Costume dos Samnitas Cap. XVII Da Administração das Mulheres LIVRO OITAVO - Da Corrupção dos Princípios nos Três Governos Cap. I Ideia Geral deste Livro Cap. II Da Corrupção do Princípio da Democracia Cap. III Do Espírito de Igualdade Extrema Cap. IV Causa Particular da Corrupção do Povo Cap. V Da Corrupção do Princípio da Aristocracia Cap. VI Da Corrupção do Princípio da Monarquia Cap. VII Continuação do Mesmo Assunto Cap. VIII Perigo da Corrupção do Princípio do Governo Monárquico Cap. IX Até que Ponto a Nobreza é Levada a Defender o Trono Cap. X Da Corrupção do Princípio do Governo Despótico Cap. XI Efeitos Naturais da Bondade e da Corrupção dos Princípios Cap. XII Continuação do Mesmo Assunto Cap. XIII Efeito do Juramento num Povo Virtuoso Cap. XIV Como a Menor Modificação na Constituição Acarreta a Ruína dos Princípios Cap. XV Meios muito Eficazes para a Conservação dos Três Princípios Cap. XVI Propriedades Distintivas da República Cap. XVII Propriedades Distintivas da Monarquia Cap. XVIII De como a Monarquia Espanhola era um Caso Particular Cap. XIX Propriedades Distintivas do Governo Despótico Cap. XX Consequência dos Capítulos Precedentes Cap. XXI Do Império da China SEGUNDA PARTE LIVRO NONO - Das Leis em sua Relação com a Forca Defensiva Cap. I Como as Repúblicas Garantem sua Segurança Cap. II De Como a Constituição Federal Deve ser Composta de Estados da Mesma Natureza, Sobretudo de Estados Republicanos Cap. III Outras Coisas Necessárias na República Federativa Cap. IV Como os Estados Despóticos Garantem sua Segurança Cap. V Como a Monarquia Garante sua Segurança Cap. VI Da Força Defensiva dos Estados em Geral Cap. VII Reflexões Cap. VIII Caso em que a Força Defensiva de um Estado é Inferior à sua Força Ofensiva Cap. IX Da Força Relativa dos Estados Cap. X Da Fraqueza dos Estados Vizinhos LIVRO DÉCIMO - Das Leis em suas Relações com a Força Ofensiva Cap. I Da Força Ofensiva Cap. II Da Guerra Cap. III Do Direito de Conquista Cap. IV Algumas Vantagens do Povo Conquistado Cap. V Gelon, rei de Siracusa Cap. VI Da República que Conquista Cap. VII Continuação do Mesmo Assunto Cap. VIII Continuação do Mesmo Assunto Cap. IX Da Monarquia que Conquista em Torno de si Cap. X De uma Monarquia que Conquista outra Monarquia Cap. XI Dos Costumes do Povo Vencido Cap. XII De uma Lei de Ciro Cap. XIII Carlos XII Cap. XIV Alexandre Cap. XV Novos Meios de Conservar a Conquista Cap. XVI De um Estado Despótico que Conquista Cap. XVII Continuação do Mesmo Assunto LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO - Das Leis que Formam a Liberdade Política em sua Relação com a Constituição Cap. I Ideia Geral Cap. II Diversas Significações Dadas à Palavra Liberdade Cap. III O que é a Liberdade Cap. IV Continuação do Mesmo Assunto Cap. V Do Objetivo dos Diversos Estados Cap. VI Da Constituição da Inglaterra Cap. VII Das Monarquias que Conhecemos Cap. VIII Por que os Antigos não Tinham uma Ideia bem Clara da Monarquia Cap. IX Maneira de Pensar de Aristóteles Cap. X Maneira de Pensar dos outros Políticos Cap. XI Dos Reis dos Tempos Heroicos entre os Gregos Cap. XII Do Governo dos Reis de Roma e de como os três Poderes foram Distribuídos Cap. XIII Reflexões Gerais sobre o Estado de Roma depois da Expulsão dos Reis Cap. XIV Como a Distribuição dos Três Poderes Começou a Mudar Depois da Expulsão dos Reis Cap. XV Como, no Florescente Estado da República, Roma Perdeu, Subitamente, sua Liberdade Cap. XVI Do Poder Legislativo na República Romana Cap. XVII Do Poder Executivo na mesma República Cap. XVIII Do Poder de Julgar no Governo de Roma Cap. XIX Do Governo das Províncias Romanas Cap. XX Fim deste Livro LIVRO DÉCIMO SEGUNDO - Das Leis que Formam a Liberdade Política na sua Relação com o Cidadão Cap. I Ideia deste Livro Cap. II Da Liberdade do Cidadão Cap. III Continuação do Mesmo Assunto Cap. IV Como a Liberdade é Favorecida pela Natureza das Penas e pela Proporção delas Cap. V De certas Acusações que Necessitam Especialmente Moderação e Prudência Cap. VI Do Crime contra a Natureza Cap. VII Do Crime de Lesa-Majestade Cap. VIII Da má Aplicação do Nome do Crime de Sacrilégio e de Lesa-Majestade Cap. IX Continuação do Mesmo Assunto Cap. X Continuação do Mesmo Assunto Cap. XI Dos Pensamentos Cap. XII Das Palavras Indiscretas Cap. XIII Dos Escritos Cap. XIV Violação do Pudor na Punição dos Crimes Cap. XV Da Libertação do Escravo para Acusar o Senhor Cap. XVI Calúnia no Crime de Lesa-Majestade Cap. XVII Da Revelação das Conspirações Cap. XVIII Como é Perigoso, nas Repúblicas, Punir muito Severa mente o Crime de Lesa-Majestade Cap. XIX Como se Suspende o Uso da Liberdade na República Cap. XX Das Leis Favoráveis à Liberdade do Cidadão na República Cap. XXI Da Crueldade das Leis para com os Devedores na República Cap. XXII Das Coisas que Afetam a Liberdade na Monarquia Cap. XXIII Dos Espiões na Monarquia Cap. XXIV Das Cartas Anônimas Cap. XXV Da Maneira de Governar na Monarquia Cap. XXVI De Como, na Monarquia, o Príncipe Deve ser Acessível Cap. XXVII Dos Costumes do Monarca Cap. XXVIII Das Considerações que os Monarcas Devem a seus Súditos Cap. XXIX Das Leis Civis Capazes de Introduzir um Pouco de Liberdade no Governo Despótico Cap. XXX Continuação do Mesmo Assunto LIVRO DÉCIMO TERCEIRO - Das Relações que a Arrecadação dos Tributos e a Grandeza das Rendas Públicas têm com a Liberdade Cap. I Das Rendas do Estado Cap. II De Como é Raciocinar mal Dizer que a Grandeza dos Tributos é boa por si mesma Cap. III Dos Tributos nos Países em que uma Parte do Povo é Escrava da Gleba Cap. IV De uma República em Caso Semelhante Cap. V De uma Monarquia em Caso Semelhante Cap. VI De um Estado Despótico em Caso Semelhante Cap. VII Dos Tributos nos Países Onde a Escravidão da Gleba não Está Estabelecida Cap. VIII Como se Conserva a Ilusão Cap. IX De uma má Espécie de Imposto Cap. X De Como a Grandeza dos Tributos Depende da Natureza do Governo Cap. XI Das Penas Fiscais Cap. XII Relação da Grandeza dos Tributos com a Liberdade Cap. XIII Em que Governos os Tributos são Suscetíveis de Aumento Cap. XIV Como a Natureza dos Tributos é Relativa ao Governo Cap. XV Abuso da Liberdade Cap. XVI Das Conquistas dos Maometanos Cap. XVII Do Aumento das Tropas Cap. XVIII Da Isenção de Tributos Cap. XIX O que é mais Conveniente ao Príncipe e ao povo: a Arrecadação por Contrato ou a Cobrança Oficial dos Tributos Cap. XX Dos Contratadores TERCEIRA PARTE LIVRO DÉCIMO QUARTO - Das Leis na Relação que Elas têm com a Natureza do Clima Cap. I Ideia geral Cap. II Como os homens são diferentes nos diversos climas Cap. III Contradição nos caracteres de certos povos do Sul Cap. IV Causa da Imutabilidade da Religião, dos Costumes, das Maneiras, das Leis, nos Países do Oriente. Cap. V De Como os maus Legisladores aí são os que se Opuseram Cap. VI Da Cultura das Terras nos Climas Quentes Cap. VII Do Monaquismo Cap. VIII Bom Costume da China Cap. IX Meios de Encorajar a Indústria Cap. X Das Leis Relacionadas com a Sobriedade dos Povos Cap. XI Das Leis que têm Relações com as Moléstias do Clima Cap. XII Das Leis Contra os que se Suicidam Cap. XIII Efeitos que Resultam do Clima da Inglaterra Cap. XIV Outros Efeitos do Clima Cap. XV Da Diferente Confiança que as Leis Depositam no Povo, Segundo os Climas. LIVRO DÉCIMO QUINTO - Como as leis da Escravidão Civil Relacionam-se à Natureza do Clima. Cap. I Da Escravidão Civil Cap. II Origem do Direito de Escravatura entre os Jurisconsultos Romanos Cap. III Outra Origem do Direito de Escravidão Cap. IV Outra Origem do Direito de Escravidão Cap. V Da Escravidão dos Negros Cap. VI Verdadeira Origem do Direito de Escravidão Cap. VII Outra Origem do Direito de Escravidão Cap. VIII Inutilidade da Escravidão entre nós Cap. IX Das Nações em que a Liberdade Civil está Geralmente Estabelecida Cap. X Diversos Tipos de Escravidão Cap. XI O que as Leis Devem Fazer com Relação à Escravidão Cap. XII Abuso da Escravidão Cap. XIII Perigo do Grande Número de Escravos Cap. XIV Dos Escravos Armados Cap. XV Continuação do Mesmo Assunto Cap. XVI Precauções a Tomar no Governo Moderado Cap. XVII Regulamentos a Serem Feitos entre o Senhor e os Escravos Cap. XVIII Das Alforrias Cap. XIX Dos Forros e dos Eunucos LIVRO DÉCIMO SEXTO - Como as leis da Escravidão Doméstica Relacionam-se com a Natureza do Clima Cap. I Da Servidão Doméstica Cap. II De Como, nos Países do sul, há nos dois Sexos uma Desigualdade Natural. Cap. III De Como a Pluralidade das Mulheres Depende muito de sua Manutenção Cap. IV Da Poligamia; suas Diversas Circunstâncias. Cap. V Motivo de uma Lei do Malabar Cap. VI Da Poligamia em si Mesma Cap. VII Da Igualdade do Tratamento no Caso da Pluralidade de Mulheres Cap. VIII Da Separação entre as Mulheres e os Homens Cap. IX Relação do Governo Doméstico com o Político Cap. X Princípio da Moral do Oriente Cap. XI Da Servidão Doméstica Independente da Poligamia Cap. XII Do Pudor Natural Cap. XIII Do Ciúme Cap. XIV Do Governo da Casa no Oriente Cap. XV Do Divórcio e do Repúdio Cap. XVI Do Repúdio e do Divórcio entre os Romanos LIVRO DÉCIMO SÉTIMO - Como as leis da Servidão Política se Relacionam com a Natureza do Clima Cap. I Da Servidão Política Cap. II Diferenças dos Povos com Relação à Coragem Cap. III Do Clima da Ásia Cap. IV Consequência de tudo isso Cap. V De como, quando os Povos do Norte da Ásia e os do Norte da Europa Conquistaram, os Efeitos da Conquista não eram os Mesmos Cap. VI Nova Causa Física da Servidão da Ásia e da Liberdade da Europa Cap. VII Da África e da América Cap. VIII Da Capital do Império LIVRO DÉCIMO OITAVO - Das leis em suas Relações com a Natureza do Terreno Cap. I Como a Natureza do Terreno Influi sobre as Leis Cap. II Continuação do Mesmo Assunto Cap. III Quais são as Regiões mais Cultivadas Cap. IV Novos Efeitos da Fertilidade e da Esterilidade da Região Cap. V Dos Povos das Ilhas Cap. VI Das Regiões Formadas pela Indústria dos Homens Cap. VII Das Obras dos Homens Cap. VIII Relação Geral das leis Cap. IX Do Solo da América Cap. X Do Número dos Homens em Relação com a Maneira pela qual Proveem à Subsistência Cap. XI Dos Povos Selvagens e dos Povos Bárbaros Cap. XII Do Direito das Gentes entre os Povos que não Cultivam as Terras Cap. XIII Das Leis Civis entre os Povos que não Cultivam as Terras Cap. XIV De Estado Político dos Povos que não Cultivam as Terras Cap. XV Dos Povos que Conhecem o Uso da Moeda Cap. XVI Das Leis Civis entre os Povos que não Conhecem o Uso da Moeda Cap. XVII Das Leis Políticas entre os Povos que não Utilizam a Moeda Cap. XVIII Força das Superstições Cap. XIX Da Liberdade dos Árabes e da Servidão dos Tártaros Cap. XX Do Direito das Gentes dos Tártaros Cap. XXI Leis Civis dos Tártaros Cap. XXII De uma Lei Civil dos Povos Germânicos Cap. XXIII Da Longa Cabeleira dos Reis Francos Cap. XXIV Do Casamento dos Reis Francos Cap. XXV Childerico Cap. XXVI Da Maioridade dos Reis Francos Cap. XXVII Continuação do Mesmo Assunto Cap. XXVIII Da Adoção entre os Germanos Cap. XXIX Espírito Sanguinário dos Reis Francos Cap. XXX Da Assembleia da Nação entre os Francos Cap. XXXI Da Autoridade do Clero na Primeira Raça LIVRO DÉCIMO NONO - Das leis em suas Relações com os Princípios que Formam o Espírito Geral, os Costumes e as Maneiras de um Povo. Cap. I Do Assunto deste Livro Cap. II Como, para as Melhores Leis, é Necessário que os Espíritos estejam Preparados. Cap. III Da Tirania Cap. IV O que é o Espírito Geral Cap. V Como se Deve Estar Atento para não Modificar o Espírito Geral de uma Nação Cap. VI Como não se Deve Tudo Corrigir Cap. VII Dos Atenienses e dos Lacedemônios Cap. VIII Efeitos do Temperamento Sociável Cap. IX Da Vaidade e do Orgulho dos Povos Cap. X Do Caráter dos Espanhóis e dos Chineses Cap. XI Reflexão Cap. XII Das Maneiras e dos Costumes no Estado Despótico Cap. XIII Das Maneiras dos Chineses Cap. XIV Quais são os Meios Naturais de Mudar os Costumes e as Maneiras de uma Nação Cap. XV Influência do Governo Doméstico na Política Cap. XVI Como Alguns Legisladores Confundiram os Princípios que Governam os Homens Cap. XVII Propriedade Particular ao Governo da China Cap. XVIII Consequência do Capítulo Precedente Cap. XIX Como se Efetuou entre os Chineses a União da Religião das Leis, dos Costumes e das Maneiras. Cap. XX Explicação de um Paradoxo sobre os Chineses Cap. XXI Como as Leis Devem ser Relativas aos Costumes e às Maneiras Cap. XXII Continuação do Mesmo Assunto Cap. XXIII Como as Leis Seguem os Costumes Cap. XXIV Continuação do Mesmo Assunto Cap. XXV Continuação do Mesmo Assunto Cap. XXVI Continuação do Mesmo Assunto Cap. XXVII Como as Leis Podem Contribuir para Formar os Costumes, as Maneiras e o Caráter de um Povo. QUARTA PARTE LIVRO VIGÉSIMO - Das leis, na relação que têm com o comércio considerado em sua natureza e em suas distinções. Invocação às musas LIVRO VIGÉSIMO PRIMEIRO - Das leis, na relação que têm com o comércio, considerado nas revoluções que teve no mundo LIVRO VIGÉSIMO SEGUNDO - Das leis, em sua relação com o uso da moeda. LIVRO VIGÉSIMO TERCEIRO - Das leis, na relação que têm com o número de habitantes QUINTA PARTE LIVRO VIGÉSIMO QUARTO - Das leis, na relação que têm com a religião estabelecida em cada país, considerada em suas práticas e em si mesma. LIVRO VIGÉSIMO QUINTO - Das leis, na relação que têm com o estabelecimento da religião de cada país, e sua política exterior. LIVRO VIGÉSIMO SEXTO - Das leis, na relação que devem ter com a ordem das coisas sobre as quais estatuem. SEXTA PARTE LIVRO VIGÉSIMO SÉTIMO - Da origem e das transformações das leis dos romanos sobre as sucessões LIVRO VIGÉSIMO OITAVO - Da origem e das revoluções das leis civis dos franceses LIVRO VIGÉSIMO NONO - Da maneira de compor as leis LIVRO TRIGÉSIMO - Teoria das leis feudais entre os francos na relação que têm com o estabelecimento da monarquia LIVRO TRIGÉSIMO PRIMEIRO - Teoria das leis feudais entre os francos, na relação que têm com a revolução de sua monarquia. PREFÁCIO Se, no número infinito de coisas contidas neste livro, houver uma que, contra minha vontade, possa ofender, não há, pelo menos, uma só que tenha sido escrita com má intenção. Não tenho naturalmente o espírito desaprovador. Platão agradecia ao céu por ter nascido no tempo de Sócrates; e eu rendo-lhe graças por me ter feito nascer no Governo em que vivo e por ter querido que eu obedecesse aos que me fez amar. Peço uma graça que receio não me seja concedida: de não julgar, pela leitura de um momento, um trabalho de vinte anos, de aprovar ou condenar o livro inteiro e não algumas frases. Se se quiser descobrir a intenção do autor, só a poderemos descobrir na intenção da obra. Examinei, de início, os homens e julguei que, nesta infinita diversidade de leis e costumes, não eram eles orientados unicamente por seus caprichos. Coloquei princípios e vi os casos particulares submeterem-se a eles como por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas sequências e cada lei particular ligada a outra lei, ou depender de outra mais geral. Quando remontei à Antiguidade, esforcei-me por captar seu espírito a fim de não tomar, como semelhantes, casos realmente diferentes e não omitir as diferenças dos que se mostrassem semelhantes. Não extraí meus princípios de meus preconceitos mas da natureza das coisas. Aqui, muitas verdades só se farão sentir depois que se tenha visto a cadeia que as liga a outras. Quanto mais refletirmos sobre os pormenores, mais sentiremos a validade doe princípios. Esses próprios pormenores, não os apresentei todos, pois quem poderia apresentá-los todos sem um tédio mortal? Não encontraremos aqui os traços marcantes que parecem caracterizar as obras atuais. Por pouco que se observem as coisas de uma perspectiva mais ampla, esses traços marcantes desaparecem; geralmente, eles apenas surgem porque os espíritos voltam-se apenas para um lado, abandonando todos os demais. Não escrevo para censurar o que está estabelecido em qualquer país. Cada nação encontrará nesta obra as razões de suas máximas; e extrair-se-à naturalmente esta conclusão: que só cumpre propor mudanças aos que são assaz afortunadamente nascidos para apreender, num rasgo de gênio, toda a constituição de um Estado. Não é indiferente que o povo seja esclarecido. Os preconceitos dos magistrados começaram por ser os da nação. Numa época de ignorância, não temos qualquer dúvida, mesmo quando se cometem os piores males; numa época de luzes, trememos ainda quando são perpetrados os maiores bens. Sentimos os antigos abusos, vemos a sua correção, porém vemos também os abusos da própria correção. Deixamos o mal, se tememos o pior; deixamos o bem, se duvidamos do melhor. Só olhamos as partes para julgar o todo reunido; examinamos todas as causas para ver todos os resultados. Se pudesse fazer com que todos tivessem novas razões para apreciar seus deveres, seu príncipe, sua pátria, suas leis; que pudessem melhor sentir sua felicidade em cada país, em cada governo, em cada posto em que nos encontramos, acreditar-me-ia o mais feliz dos mortais. Se pudesse fazer com que os que comandam aumentassem seu conhecimento sobre o que devem prescrever e os que obedecem encontrassem um novo prazer em obedecer, acreditar-me-ia o mais feliz dos mortais. Acreditar-me-ia o mais feliz dos mortais se pudesse fazer com que os homens se pudessem curar de seus preconceitos. Entendo por preconceito, não o que faz com que ignoremos certas coisas mas o que faz com que ignoremos a nós próprios. Procurando instruir os homens é que poderemos praticar esta virtude geral que compreende o amor de todos. O homem, este ser flexível, dobrando-se na sociedade aos pensamentos e impressões de outrem, é igualmente capaz de conhecer sua natureza própria, quando lha mostram, e de perder até o sentimento quando lho roubam. Várias vezes comecei e várias vezes abandonei esta obra; mil vezes abandonei ao vento as folhas que escrevera; sentia todos os dias as mãos paternais tombarem; seguia meu objetivo sem formar desígnio; não conhecia regras nem exceções; só encontrava a verdade para tornar a perdê-la; porém, quando descobri meus princípios, tudo quanto procurava, a mim me veio e, no curso de vinte anos, vi minha obra começar, crescer, progredir e terminar. Se este trabalho obtiver êxito, muito deverei à grandiosidade do assunto; entretanto, não creio que o gênio me tenha faltado. Quando vi o que tantos grandes homens, na França, na Inglaterra e na Alemanha escreveram antes de mim, fiquei admirado mas não perdi a coragem. "E eu também sou pintor", disse, com Corrégio. ADVERTÊNCIA DO AUTOR Para compreensão dos quatro primeiros livros desta obra, é preciso observar que o que chamo virtude na república é o amor à pátria, isto é, o amor à igualdade. Não é absolutamente virtude moral, nem virtude cristã, é virtude política; e essa é a mola que faz mover o governo republicano, como a honra é a mola que faz mover a monarquia. Chamei portanto de virtude política o amor à pátria e à igualdade. Concebi novas ideias; foi necessário encontrar novas palavras ou dar às antigas novas acepções. Os que não compreenderam isso, fizeram-me dizer coisas absurdas e que seriam revoltantes em todos os países do mundo; pois, em todos os países do mundo, exige-se moral. 2º Cumpre notar que há grande diferença entre dizer que certa qualidade, modificação da alma, ou virtude, não é a mola que faz agir o governo e dizer que ela não existe absolutamente nesse governo. Se eu dissesse: esta roda, este carrete não são a mola que faz mover este relógio, disso deveríamos concluir que eles não existem no relógio? Pouco importa que as virtudes morais e cristãs estejam excluídas da monarquia e que a própria virtude política não o esteja. Numa palavra, a honra existe na república, embora a virtude política seja sua mola; a virtude política existe na monarquia, embora a honra seja sua mola. Enfim, o homem de bem ao qual nos referimos no livro III, capítulo V, não é o homem de bem cristão mas o homem de bem político, que possui a virtude política à qual me referi. É o homem que ama as leis de seu país e que age pelo amor às leis de seu país. Lancei uma nova luz em todas essas coisas nesta edição, precisando ainda melhor as ideias; e, na maior parte das passagens em que me servi da palavra virtude coloquei virtude política. PRIMEIRA PARTE LIVRO PRIMEIRO - Das leis em geral CAPÍTULO I Das leis em suas relações com os diversos seres As leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis; a divindade-s possui suas leis; o mundo material possui suas leis; as inteligências superiores ao homem possuem suas leis; os animais possuem suas leis; o homem possui suas leis. Os que afirmaram que uma fatalidade cega produziu todos os efeitos que vemos no mundo disseram um grande absurdo, pois que maior absurdo do que uma fatalidade cega ter produzido seres inteligentes? Existe, portanto, uma razão primeira e as leis são as relações que se encontram entre ela e os diferentes seres, e as relações desses diversos seres entre si. Deus possui relações com o universo, como criador e como conservador; as leis, segundo as quais criou, são as mesmas pelas quais conserva. Age segundo essas regras porque as conhece; conhece-as porque as fez; fê-las porque elas se relacionam com sua sabedoria e seu poder. Considerando. que vemos o mundo, formado pelo movimento da matéria e destituído de inteligência, subsistir sempre, é preciso que seus movimentos tenham leis invariáveis e, se pudéssemos imaginar outro mundo diferente deste, ou ele teria regras constantes ou seria destruído. Assim, a criação, que parece ser um ato arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto a fatalidade dos ateus. Absurdo seria dizer que o criador, sem essas regras, pudesse governar o mundo, pois o mundo não subsistiria sem elas. Essas regras são uma relação estabeleci da constantemente. Entre dois corpos em movimento, é de acordo com as relações da massa e da velocidade que todos os movimentos são recebidos, aumentados, diminuídos, perdidos; cada diversidade é uniformidade, cada mudança é constância. Os seres particulares inteligentes podem possuir leis feitas por eles mas possuem também as que não fizeram. Antes da existência de seres inteligentes, esses eram possíveis; tinham, portanto, relações possíveis e, consequentemente, leis possíveis. Antes de haver leis feitas, existiam relações de justiça possíveis. Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão o que as leis positivas ordenam ou proíbem, é dizer que antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não eram iguais. É preciso, portanto, reconhecer relações de equidade anteriores à lei positiva que as estabelece; como, por exemplo, para se supor que existiram sociedades de homens, seria justo conformar-se às suas leis; como, se existiram seres inteligentes que tivessem recebido algum benefício de outro ser, eles deveriam ser-lhe gratos por isso; como, se um ser inteligente criou outro ser inteligente, a criatura deveria permanecer na dependência existente desde sua origem; como, se um ser inteligente causou um mal a outro ser inteligente, merece receber o mesmo mal, e assim por diante. Mas falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto o mundo físico, pois ainda que o mundo inteligente possua também leis que por sua natureza são invariáveis, não as segue constantemente, como o mundo físico segue as suas. A razão disso reside no fato de estarem os seres particulares inteligentes limitados por sua natureza e, consequentemente, sujeitos a erro; e, por outro lado, é próprio de sua natureza agirem por si mesmos. Não seguem, pois, constantemente suas leis primitivas e, mesmo as que eles próprios criam, nem sempre as seguem. Não se sabe se os animais são governados pelas leis gerais do movimento ou por uma moção particular. De qualquer forma, não mantêm com Deus relações mais íntimas do que o resto do mundo material, e o sentimento só lhes serve nas relações que mantêm entre si ou com outros seres particulares, ou consigo mesmos. Pela atração do prazer, os animais conservam seu ser particular; e, pela mesma atração, conservam sua espécie. Possuem leis naturais porque estão unidos pelo sentimento; não possuem leis positivas porque não estão unidos pelo conhecimento. Contudo, não seguem invariàvelmente suas leis naturais: as plantas, nas quais não encontramos nem conhecimento, nem sentimento, seguem-nas melhor. Os animais não possuem as supremas vantagens que nós possuímos; possuem outras que não possuímos. Não têm as nossas esperanças mas também não têm os nossos temores; estão, como nós, sujeitos à morte, mas sem conhecê-la; a maioria conserva-se mesmo melhor do que nós e não faz tão mal uso de suas paixões. O homem, como ser físico, é, tal como os outros corpos, governado por leis invariáveis. Como ser inteligente, viola incessantemente as leis que Deus estabeleceu e modifica as que ele próprio estabeleceu. Cumpre que ele se oriente, entretanto, é um ser limitado; está sujeito, como todas as inteligências finitas, à ignorância e ao erro, e perde ainda os frágeis conhecimentos que possui; torna-se, como criatura sensível, sujeito a mil paixões. Tal ser poderia, a todo instante, esquecer seu criador - Deus, pelas leis da religião, chamou-o a si; tal ser poderia, a todo instante, esquecer-se de si mesmo - os filósofos advertiram-no pelas leis da moral. Feito para viver em sociedade, poderia esquecer os outros - os legisladores devolveram-no a seus deveres pelas leis políticas e civis. CAPÍTULO II Das leis da natureza Antes de todas essas leis, existem as da natureza, assim chamadas porque decorrem unicamente da constituição de nosso ser. Para conhecê-las bem, é preciso considerar o homem antes do estabelecimento das sociedades. As leis da natureza seriam as que ele receberia em tal caso. Essa lei, que inculcando-nos a ideia de um criador, leva-nos a ele, é, por sua importância, mas não pela ordem das leis, a primeira das leis naturais. O homem em estado natural teria de preferência a faculdade de conhecer a ter conhecimentos. É evidente que suas primeiras ideias não seriam especulativas; procuraria conservar seu ser antes de procurar sua origem. Tal homem sentiria, antes de tudo, sua fraqueza e seu medo seria grande; e, se tivéssemos necessidade da experiência para comprovar isso, encontrou-se, nas florestas, a homens selvagens: tudo os faz tremer, tudo os faz fugir. Nesse estado, todos se sentem inferiores e dificilmente alguém se sente igual. Ninguém procuraria, portanto, atacar e a paz seria a primeira lei natural. Não é razoável o desejo que Hobbes atribui aos homens de subjugarem-se mutuamente. A ideia de supremacia e de dominação é tão complexa e dependente de tantas outras que não seria ela a primeira ideia que o homem teria. Hobbes indaga: "Por que os homens, mesmo quando não estão naturalmente em guerra, estão sempre armados? E por que utilizam chaves para cerrar suas casas?" Mas não percebe que atribuímos aos homens, antes do estabelecimento de sociedades, o que só poderia acontecer-lhes após esse estabelecimento, fato que os leva a descobrir motivos para atacar e defender-se mutuamente. Ao sentimento de sua fraqueza, o homem acrescentaria o sentimento de suas necessidades. Assim, outra lei natural seria a que o incitaria a procurar alimentos. Disse que o medo levaria os homens a afastarem-se uns dos outros, mas a comprovação de um medo recíproco levá-los-ia logo a se aproximarem. Aliás, eles seriam levados pelo prazer que sente um animal à aproximação de outro da mesma espécie. Demais, este encanto que os dois sexos, pela sua diferença, inspiram-se mutuamente, aumentaria esse prazer, e o pedido natural que sempre fazem um ao outro seria uma terceira lei. Além do sentimento que os homens inicialmente possuem, conseguem eles também ter conhecimentos; assim, possuem um segundo liame que os outros animais não têm. Existe, portanto, um novo motivo para se unirem, e o desejo de viver em sociedade constitui a quarta lei natural. CAPÍTULO III Das leis positivas Logo que os homens estão em sociedade, perdem o sentimento de suas fraquezas; a igualdade que existia entre eles desaparece, e o estado de guerra começa. Cada sociedade particular passa a sentir sua força; isso gera um estado de guerra de nação para nação. Os indivíduos, em cada sociedade, começam a sentir sua força: procuram reverter em seu favor as principais vantagens da sociedade; isso cria, entre eles, um estado de guerra. Essas duas espécies de estado de guerra acarretam o estabelecimento de leis entre os homens. Considerados como habitantes de um planeta tão grande, a ponto de ser necessária a existência de diferentes povos, existem leis nas relações que esses povos mantêm entre si; é o DIREITO DAS GENTES. Considerados como vivendo numa sociedade que deve ser mantida, possuem leis nas relações entre os que governam e os que são governados; e é o DIREITO POLÍTICO. Possuem-nas ainda nas relações que todos os cidadãos mantêm entre si: é o DIREITO CIVIL. O direito das gentes está naturalmente baseado neste princípio: as diversas nações devem fazer-se, na paz, tanto bem quanto for possível e, na guerra, o mínimo de mal possível, sem prejudicar seus verdadeiros interesses. O objetivo da guerra é a vitória; o da vitória, a conquista; o da conquista, a conservação. Desse princípio e do precedente devem derivar todas as leis que formam o direito das gentes. Todas as nações têm um direito das gentes, e os próprios iroqueses, que devoram seus prisioneiros, possuem um. Enviam e recebem embaixadas, conhecem o direito da guerra e da paz; o mal é que este direito das gentes não se baseia em princípios verdadeiros. Fora o direito das gentes, que diz respeito a todas as sociedades, existe um direito político para cada uma. Sem um governo, nenhuma sociedade poderia subsistir. A reunião de todas as forças individuais, diz muito corretamente GRAVINA, forma o que denominamos ESTADO POLÍTICO. A força geral pode ser colocada nas mãos de apenas um ou nas mãos de muitos. Alguns pensaram que, tendo a Natureza estabelecido o poder paterno, o governo de um só estaria mais de acordo com a Natureza. Porém, o exemplo do poder paterno nada prova, pois, se o poder do pai está relacionado com o governo de um só, depois da morte do pai, o poder dos irmãos ou, depois da morte dos irmãos, o dos primos coirmãos está relacionado com o governo de muitos. O poder político implica, necessàriamente, a união de muitas famílias. É melhor dizer que o governo mais de acordo com a Natureza é aquele cuja disposição particular melhor se relaciona com as disposições do povo para o qual foi estabelecido. As forças individuais não se podem reunir sem que todas as vontades se reúnam. À reunião dessas vontades, diz GRAVINA ainda muito corretamente, é o que denominamos ESTADO CIVIL. A lei, em geral, é a razão humana, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa razão humana. Devem ser elas tão adequadas ao povo para o qual foram feitas que, somente por um grande acaso, as leis de uma nação podem convir a outra. Cumpre que se relacionem à natureza e ao princípio do governo estabelecido ou que se pretende estabelecer, quer elas o formem, como as leis políticas, quer elas o mantenham, como fazem as leis civis. Devem as leis ser relativas ao físico do país, ao clima frio, quente ou temperado; à qualidade do solo, à sua situação, ao seu tamanho; ao gênero de vida dos povos, agricultores, caçadores ou pastores; devem relacionar-se com o grau de liberdade que a constituição pode permitir; com a religião dos habitantes, suas inclinações, riquezas, número, comércio, costumes, maneiras. Possuem elas, enfim, relações entre si e com sua origem, com os desígnios do legislador e com a ordem das coisas sobre as quais são elas estabeleci das. É preciso considerá-las em todos esses aspectos. É isso que pretendo realizar nesta obra. Examinarei todas essas relações; formam elas, no conjunto, o que chamamos de ESPÍRITO DAS LEIS. Não separei de modo algum as leis políticas das civis, pois, como absolutamente não trato de leis mas do espírito das leis e como esse espírito consiste nas diferentes relações que as leis podem ter com diversas coisas, devo seguir menos a ordem natural das leis que a dessas relações e dessas coisas. Examinarei, primeiramente, as relações que as leis possuem com a natureza e com o princípio de cada governo e, como esse princípio possui sobre as leis uma suprema influência, aplicar-me-ei em bem conhecê-lo e, uma vez que consiga estabelecê-lo, dele ver-se-à fluírem as leis. Passarei, em seguida, às outras relações que parecem ser mais particulares. LIVRO SEGUNDO - Das leis que derivam diretamente da natureza do Governo CAPÍTULO I Da natureza de três diferentes governos Existem três espécies de governo: o REPUBLICANO, o MONÁRQUICO e o DESPÓTICO. Para descobrir-lhes a natureza, é suficiente a ideia de que deles têm os homens menos instruídos. Suponho três definições ou antes, três fatos: um que "o governo republicano é aquele em que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquele em que um só governa, mas de acordo com leis fixas e estabeleci das, enquanto, no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer a leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus caprichos". Eis aí o que denomino a natureza de cada governo. É preciso conhecer quais são as leis que derivam diretamente dessa natureza e que, consequentemente, são as primeiras leis fundamentais. CAPÍTULO II Do governo republicano e das leis relativas à democracia Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma Aristocracia. O povo, na democracia, é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súdito. O povo só pode ser monarca pelos sufrágios, que constituem suas vontades, A vontade do soberano é o próprio soberano. As leis que estabelecem o direito de sufrágio são, portanto, fundamentais nesse governo. Com efeito, aqui é tão importante regulamentar como, por quem, a quem, sobre o quê os sufrágios devem ser atribuídos, quanto o é, numa monarquia, saber quem é o monarca e de que maneira deve governar. Libânio, afirma que em Atenas um estrangeiro que se imiscuísse na assembleia do povo era punido com a morte. É que esse homem usurpava o direito de soberania. É essencial fixar o número de cidadãos que deve compor as assembleias; sem isso, poder-se-ia ignorar se o povo, ou somente uma parte dele, opinou. Na Lacedemônia, eram necessários dez mil cidadãos. Em Roma, que nasceu pequena para tornar-se poderosa; em Roma, feita para experimentar todas as vicissitudes da fortuna; em Roma, que tinha, ora quase todos os seus cidadãos fora de suas muralhas, ora toda a Itália e uma parte da terra no interior de suas muralhas, não se especificara esse número, sendo essa uma das principais causas de sua ruína. O povo que possui o poder soberano deve fazer por si mesmo tudo o que pode realizar corretamente e, aquilo que não pode realizar corretamente, cumpre que o faça por intermédio de seus ministros. Seus ministros só lhe pertencem se ele os nomeia; é, pois, uma máxima fundamental deste governo que o povo nomeie seus ministros, isto é, seus magistrados. Tal como os monarcas e mesmo mais do que eles, o povo necessita ser conduzido por um conselho ou senado. Mas, para que haja confiança nesse, é necessário que eleja seus membros, seja escolhendo-os diretamente, como em Atenas, seja através de magistrados que tenha escolhido para elegê-los, como se fazia em Roma, em algumas ocasiões. O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridades, Só pode decidir-se por coisas que não pode ignorar e por fatos que estão ao alcance de seus sentidos. Sabe muito bem que determinado. homem esteve muitas vezes em guerra e que obteve tais e tais êxitos; é, então, capaz de eleger um general. Sabe que um juiz é assíduo, que muita gente sai de seu tribunal satisfeita com ele, que não se pode corrompê-lo: isso é suficiente para que eleja um pretor. Se está impressionado com a magnificência ou com as riquezas de um cidadão, isso é suficiente para que possa escolher um edil. Todas essas coisas são fatos que o povo aprende melhor na praça pública do que um monarca em seu palácio. Entretanto, saberá o povo dirigir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos e aproveitá-los? Não: não saberá. Se pudéssemos duvidar da capacidade natural que o povo possui para discernir o mérito, bastaria atentar para esta série contínua de escolhas espantosas que fizeram os atenienses e os romanos, fato que, indubitàvelmente, não pode ser atribuído ao acaso. Sabe-se que em Roma, apesar de o povo se ter arrogado o direito de alçar plebeus para os cargos, não se decidiu a elegê-los e apesar de, em Atenas, poder-se, pela lei de Aristides, extrair magistrados de todas as classes, relata Xenofonte, que nunca aconteceu de o baixo povo escolher os que pudessem defender sua segurança e sua glória. Tal como a maioria dos cidadãos que possuem suficiente capacidade para eleger mas não a possuem para ser eleitos, igualmente o povo, que possui suficiente capacidade para julgar da gestão dos outros, não está apto para governar por si próprio. É necessário que os negócios se desenvolvam e que se desenvolvam num certo ritmo, nem muito lento nem muito rápido. Mas o povo sempre tem, ou muita, ou pouca ação. Algumas vezes, com cem mil braços, tudo transforma: outras, com cem mil pés, só caminha como os insetos. No Estado popular, divide-se o povo em certas classes. É na maneira de realizar essa divisão que os grandes legisladores se revelam e é disso que sempre dependeu a continuidade da democracia e sua prosperidade. Sérvio Túlio acompanhou, na composição de suas classes, o espírito da aristocracia. Vemos, em Tito Lívio e em Dionísio de Halicarnasso, como ele coloca o direito de sufrágio nas mãos dos principais cidadãos. Dividiu Sérvio Túlio o povo de Roma em 193 centúrias, formando seis classes. E colocando os ricos, mas em menor número, nas primeiras centúrias, os menos ricos, mas em maior número, nas seguintes, lançou toda a multidão dos indigentes na última; e cada centúria tendo somente um voto, eram os meios e as riquezas, mais do que as pessoas, que votavam. Sólon dividiu o povo de Atenas em quatro classes. Levado pelo espírito da democracia, não o fez para estipular os que teriam direito a votar mas os que poderiam ser eleitos e, deixando a cada cidadão o direito de voto, quis que, em cada uma dessas quatro classes, se pudesse eleger juízes. Entretanto, foi apenas nas três primeiras, onde se localizavam os cidadãos de fortuna, que se pôde extrair os magistrados. Como a divisão dos que têm direito a voto é, na república, uma lei fundamental, a maneira de dá-lo é outra lei fundamental. O sufrágio pelo sorteio é da natureza da democracia; o sufrágio pela escolha é da natureza da aristocracia. O sorteio é uma maneira de eleger que a ninguém aflige: deixa a cada cidadão uma esperança razoável de servir à sua pátria. Entretanto, como essa maneira é em si defeituosa, foi na sua regulamentação e correção que os grandes legisladores se esmeraram. Sólon estabeleceu, em Atenas, que se nomearia através da escolha, para todos os cargos militares e que os senadores e juízes seriam escolhidos por sorteio. Quis ele que se atribuíssem através da escolha as magistraturas civis, que exigiam uma grande despesa, e que as demais fossem atribuídas pelo sorteio. Entretanto, para corrigir a sorte, estipulou-se que só se poderia eleger entre aqueles que se apresentassem; o que tivesse sido eleito seria examinado pelos juízes e cada um poderia acusá-lo de ser indigno. Isso se relacionava tanto ao sorteio como à escolha. Ao término da magistratura era necessário submeter-se a outro julgamento sobre a maneira pela qual as pessoas se haviam comportado. As pessoas sem capacidade deviam sentir muita repugnância em apresentar seu nome para serem sorteadas. A lei que determina a maneira de conceder as cédulas de sufrágio é ainda na democracia uma lei fundamental. Constitui um sério problema saber se os sufrágios devem ser públicos ou secretos. Cícero escreveu que as leis que tornaram secretos os sufrágios no último período da república romana constituíram uma das causas principais de sua queda. Como isso se pratica de diferentes maneiras nas diversas repúblicas, eis, creio, algo em que é necessário pensar. Está fora de dúvida que, quando o povo vota, seus votos devem ser públicos, e isso deve ser considerado como uma lei fundamental da democracia. É preciso que a plebe seja esclarecida pelos principais e contida pela seriedade de certos personagens. Assim, na república romana, estabelecendo-se o sufrágio secreto, destruiu-se tudo, não sendo mais possível esclarecer um populacho que se corrompia. Mas quando, numa aristocracia, o corpo de nobres vota ou, numa democracia, vota o senado, e sendo apenas uma questão de prevenir os conluios, os sufrágios não poderiam ser muito secretos. O conluio é perigoso num senado e também entre o corpo dos nobres; não o é, porém, entre o povo, cuja natureza é agir pela paixão. Nos Estados em que não participa do governo, o povo entusiasmar-se-ia por um ator, assim como o faria pelos negócios. A desgraça de uma república advém quando não há mais conluios e isso acontece quando se corrompe o povo pelo dinheiro: ele torna-se indiferente e afeiçoa-se ao dinheiro, porém não mais se afeiçoa aos negócios: sem se preocupar com o governo e com que nele se propõe, espera tranquilamente seu salário. É ainda uma lei fundamental da democracia que só o povo institua leis. Há, contudo, mil ocasiões em que o senado deve estatuí-las; é mesmo frequente experimentar oportunamente uma lei antes de estabelecê-la. A constituição de Roma e a de Atenas eram muito sábias. Os decretos do senado tinham força de lei durante um ano e só se tornavam perpétuas pela vontade do povo. CAPÍTULO III Das leis relativas à natureza da aristocracia Nas aristocracias, o poder soberano encontra-se em mãos de um número certo de pessoas. São elas que estipulam as leis e as fazem executar. O resto do povo está, em relação a elas, simplesmente como numa democracia os súditos estão em relação ao monarca. Nesta forma de governo não deve existir o sufrágio pelo sorteio pois dele só existiriam os inconvenientes. Com efeito, num governo que estabeleceu as distinções mais opressivas, não se será menos odiado quando se for escolhido pela sorte: ao nobre é que se inveja e não ao magistrado. Quando os nobres são muito numerosos é necessário um senado que regulamente os negócios que o corpo de nobres não poderia resolver e que prepare os que ele resolve. Neste caso, podemos dizer que a aristocracia existe, de alguma forma, no senado, a democracia no corpo de nobres e que o povo nada é. Numa aristocracia, seria algo muito bom se, por algum meio indireto, tirássemos o povo de sua prostração; assim, em Gênova, o banco de São Jorge, administrado em grande parte pelos principais do povo, confere a esse certa influência sobre o governo, que faz toda a sua prosperidade. Os senadores não devem ter o direito de substituir os que faltam ao senado, pois nada perpetuaria tanto os abusos. Em Roma, que foi nos primeiros tempos uma espécie de aristocracia, o senado não se completava por si mesmo: os novos senadores eram nomeados pelos censores. A autoridade exorbitante conferi da subitamente a um cidadão, numa república, constitui uma monarquia ou mais que uma monarquia. Nessas, as leis proveram à constituição ou a ela se acomodaram; o princípio de governo limita o poder do monarca mas, numa república em que um cidadão se faz atribuir um poder exorbitante, o abuso desse poder é maior, pois as leis que não o proviram nada fizeram para limitá-la. Ocorre uma exceção a essa regra quando a constituição do Estado é tal que ele necessita de uma magistratura que tenha um poder exorbitante. Assim era Roma com seus ditadores, assim é Veneza com seus inquisidores de Estado; essas são magistraturas terríveis que conduzem, violentamente, o Estado à liberdade. Mas por que essas magistraturas se mostram tão diferentes nessas duas repúblicas? É que Roma defendia, contra o povo, os restos de sua aristocracia, enquanto Veneza se serve de seus inquisidores de Estado para manter sua aristocracia contra os nobres. Resulta daí que, em Roma, a ditadura só deveria durar por pouco tempo porque o povo agia guiado por sua impetuosidade e não por seus desígnios. Cumpria que essa magistratura fosse exercida com brilho pois se tratava de intimidar o povo e não de puni-lo ; cumpria que o ditador só fosse criado para uma única função e só tivesse autoridade ilimitada em razão dessa função, uma vez que era ele sempre criado para um caso imprevisto. Em Veneza, pelo contrário, era necessário magistratura permanente; é aí que os planos podem ser iniciados, continuados, suspensos, retomados; que a ambição de um só se torna a de uma família, e a ambição de uma família, a de muitos. Necessita-se de uma magistratura oculta porque os crimes que ela pune, sempre profundos, formam-se no segredo e no silêncio. Essa magistratura deve ter uma inquisição geral, pois deve não apenas extinguir os males conhecidos como também prevenir os males desconhecidos. Finalmente, essa última é estabelecida para vingar os crimes de que ela suspeita; e a primeira utilizava mais as ameaças do que as punições para os crimes, mesmo os confessados por seus autores. É mister compensar, em toda magistratura, a grandeza de seu poder pela brevidade de sua duração. Um ano é o prazo que a maioria dos legisladores determinou; um prazo mais longo seria perigoso, um mais curto seria contrário à natureza das coisas. Quem desejaria governar assim seus interesses particulares? Em Ragusa muda-se o chefe da república todos os meses, os outros oficiais todas as semanas e o governador do castelo todos os dias. Isso só pode ocorrer numa república pequena, cercada de potências formidáveis que corromperiam fàcilmente os pequenos magistrados. A melhor forma de aristocracia é aquela em que a parte do povo que não participa do poder é tão pequena e tão pobre que a parte dominante não tem qualquer interesse em oprimi-la. Assim, quando Antipater estabeleceu, em Atenas, que os que não possuíssem dois mil dracmas perderiam o direito de voto, formou a melhor aristocracia possível, pois este censo era tão baixo que só excluiria poucas pessoas e nunca uma pessoa que possuísse alguma consideração na cidade. Portanto, as famílias aristocráticas, na medida do possível, devem fazer parte do povo. Quanto mais uma aristocracia aproximar-se da democracia, tanto mais perfeita será ela; tornar-se-à menos perfeita à medida que se aproximar da monarquia. A mais imperfeita de todas é aquela em que a parte do povo que obedece permanece na escravidão civil dos que comandam, como na aristocracia da Polônia, em que os camponeses são escravos da nobreza. CAPÍTULO IV Das leis em sua relação com a natureza do governo monárquico Os poderes intermediários, subordinados e dependentes, constituem a natureza do governo monárquico, isto é, daqueles em que uma só pessoa governa baseada em leis fundamentais. Dissemos os poderes intermediários, subordinados e dependentes; com efeito, na monarquia o príncipe é a fonte de todo poder político e civil. Essas leis fundamentais supõem necessàriamente canais médios por onde o poder se manifesta, pois se no Estado apenas existe a vontade momentânea e arbitrária de uma só pessoa, nada pode ser fixo. Consequentemente, também não o poderá ser nenhuma lei fundamental. O poder intermediário subordinado mais natural é o da nobreza. De certo modo, ela faz parte da essência da monarquia, cuja máxima fundamental é: sem monarca não há nobreza, sem nobreza não há monarca. Mas há um déspota. Há pessoas que imaginaram, na Europa, em alguns Estados, abolir toda justiça dos senhores. Não percebiam que pretendiam fazer o que fez o parlamento inglês. Aboli numa monarquia as prerrogativas dos senhores, do clero, da nobreza e das cidades e tereis um Estado popular ou um Estado despótico. Os tribunais de um grande Estado europeu golpeiam incessantemente, há muitos séculos, a jurisdição patrimonial dos senhores e a eclesiástica. Não desejamos censurar tão sábios magistrados mas deixamos ainda para ser decidido até que ponto a constituição, nesse caso, pode ser mudada. Não me dirijo contra os privilégios eclesiásticos mas desejaria que definitivamente se fixasse bem sua jurisdição. Não se trata de saber se há motivos para estabelecê-la mas sim se ela está estabeleci da, se faz parte das leis do país, se é relativa em toda parte, se entre dois poderes reconhecidos como independentes as condições não devem ser recíprocas e se não é a mesma coisa para um bom súdito defender a justiça do príncipe ou os limites que ela, em todos os tempos, se prescreveu. Assim como, numa república, o poder do clero é perigoso, ele é conveniente numa monarquia, sobretudo nas que caminham para o despotismo. Onde estariam a Espanha e Portugal, desde a perda de suas leis, sem esse poder que, sozinho, contém o poder arbitrário? Barreira sempre útil quando não existem outras, pois, como o despotismo causa à natureza humana males horríveis, o próprio mal que o limita é um bem. Como o mar que parece cobrir toda a terra é contido pelas ervas e pequenos seixos que se encontram sobre a praia, também os monarcas cujo poder parece ilimitado são barrados pelos menores obstáculos e submetem sua altivez natural às lamentações e aos rogos. Os ingleses, para favorecer a liberdade, suprimiram todos os poderes intermediários que compunham sua monarquia. Têm muita razão em conservar essa liberdade; se a perdessem seriam um dos povos mais escravizados da terra. Law, por ignorar tanto a constituição republicana como a monarquia, foi um dos maiores promotores do despotismo já visto na Europa. Além das transformações que promoveu, tão bruscas, inusitadas e espantosas, pretendia suprimir as posições intermediárias e dissolver os corpos políticos: dissolvia a monarquia por seus reembolsamentos quiméricos e parecia querer comprar a própria constituição. Numa monarquia não é suficiente a existência de posições intermediárias; é necessário ainda um repositório de leis. Esse repositório só pode existir nos corpos políticos que anunciam as leis, quando são feitas, e relembram-nas, quando são esquecidas. A ignorância natural da nobreza, sua desatenção, seu desprezo pelo governo civil, exigem que haja um órgão que incessantemente faça sair as leis da poeira onde estariam enterradas. O Conselho do príncipe não é um repositório conveniente. É, por sua natureza, o repositório da vontade momentânea do príncipe que executa e não o repositório das leis fundamentais. Além disso, o Conselho do monarca modifica-se constantemente; não é de modo algum permanente; não poderia ser numeroso; não tem, em alto grau, a confiança do povo; não está, pois, em condições de esclarecê-lo nos momentos difíceis, nem de chamá-lo à obediência. Nos Estados despóticos, onde não há leis fundamentais, não há também repositório das leis. Disso decorre que, nesses países, comum ente a religião possui grande poder, pois constitui uma espécie de repositório e de permanência; e, se não é a religião, são os costumes que aí se veneram em lugar das leis. CAPÍTULO V Das leis relativas à natureza do Estado despótico. Da natureza do poder despótico resulta que o único homem que o exerce, o faça também exercer por um só. Um homem cujos cinco sentidos dizem incessantemente que ele é tudo e os outros nada são, é naturalmente preguiçoso, ignorante e voluptuoso. Abandona então os negócios públicos. Entretanto, se os confiasse a diversos homens, haveria disputas entre eles; intrigar-se-ia para ser o primeiro escravo; o príncipe seria obrigado a cuidar da administração. Será portanto mais simples que ele o entregue a um vizir que teria, inicialmente, o mesmo poder que ele. O estabelecimento de um vizir é, nesse Estado, uma lei fundamental. Conta-se que um papa, em sua eleição, compenetrado de sua incapacidade, apresentou, de início, dificuldades infinitas. Aceitou por fim e entregou a seu sobrinho todos os negócios. E dizia, admirado: "Nunca pensei que isso fosse tão simples". O mesmo ocorre com os príncipes do Oriente. Quando os tiram dessa prisão - onde os eunucos lhes enfraqueceram o coração e o espírito, e onde, amiúde, os deixaram ignorar sua própria condição - para colocá-los no trono, ficam inicialmente atordoados. Entretanto, depois de escolherem um vizir e depois de, em seus haréns, se terem entregado às mais brutais paixões e depois de, numa corte corrompida, terem cumprido todos seus caprichos, jamais teriam pensado que isso fosse tão fácil. Quanto mais o império cresce, mais o harém aumenta e, consequentemente, mais o príncipe está embriagado de prazeres. Assim, nesses Estados, quanto mais súditos o príncipe possui para governar, menos pensa no governo; quanto mais se avolumam os negócios, menos se delibera sobre eles, LIVRO TERCEIRO - Dos princípios dos três governos CAPÍTULO I Diferença entre a natureza do governo e seu princípio Depois de ter examinado quais são as leis relativas à natureza de cada governo, cumpre ver quais são relativas a esse princípio. Entre a natureza do governo e seu princípio, há esta diferença: sua natureza é o que o faz ser como é, e seu princípio é o que o faz agir. A primeira constitui sua estrutura particular e, a segunda, as paixões humanas que o movimentam. Ora, as leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que à sua natureza. É mister, portanto, procurar qual é o princípio. É o que faremos neste livro. CAPÍTULO II Do princípio dos diversos governos Dissemos que é da natureza do governo republicano que todo o povo, ou certas famílias, possuam o poder soberano; da natureza do governo monárquico que o príncipe possua o poder soberano mas que o exerça de acordo com leis estabelecidas; da natureza do governo despótico que um só governe, segundo suas vontades e caprichos. Nada mais me é necessário para encontrar os três princípios desses governos, pois eles daí derivam naturalmente. Começaremos pelo governo republicano, tratando inicialmente do governo democrático. CAPÍTULO III Do princípio da democracia Para que o governo monárquico ou despótico se mantenha ou se sustente não é necessária muita probidade. A força da lei no primeiro, o braço do príncipe sempre levantado, no segundo, tudo regulamenta ou contém. Mas, num Estado popular, é preciso uma força a mais: a VIRTUDE. Isso é confirmado por toda a História e está muito de acordo com a natureza das coisas. Pois é claro que numa monarquia, onde quem manda executar as leis se julga acima das leis, tem-se necessidade de menos virtude do que num governo popular, onde quem manda executar as leis sente que ele próprio a elas está submetido e que delas sofrerá o peso. É claro ainda que o monarca que por maus conselhos ou negligência deixa de mandar executar as leis, pode fàcilmente reparar o mal: basta modificar o Conselho ou se corrigir dessa negligência. Entretanto, quando num governo popular as leis não mais são executadas, e como isso só pode ser consequência da corrupção da república, o Estado já está perdido. Foi um belo espetáculo observar, no século passado, os esforços impotentes dos ingleses para implantar, entre eles, a democracia. Como os que participavam dos negócios não tinham virtude, como sua ambição irritava-se com o êxito do que era mais ousado, como o espírito de uma facção só era contido pelo espírito de outra, o governo mudava incessantemente; perplexo, o povo procurava a democracia e não a encontrava em parte alguma. Enfim, após muitos movimentos, choques e abalos, foi necessário confiar no próprio governo que se proscrevera. Quando Sila quis devolver a Roma sua liberdade, essa não pôde mais recebê-la, pois não possuía mais do que um tênue resquício de virtude e, como a possuía cada vez menos, em vez de despertar após César, Tibério, Caio, Cláudio, Nero, Domiciano, tornou-se cada vez mais escrava; todos os golpes foram dirigidos contra os tiranos mas nenhum contra a tirania. Os políticos gregos, que viviam no governo popular, só reconheciam uma força capaz de mantê-los: a força da virtude. Os políticos atuais só nos falam de manufaturas, de comércio, de finanças, de riquezas e até de luxo. Quando esta virtude desaparece, a ambição penetra o coração dos que podem acolhê-la e a avareza apodera-se de todos. Os desejos mudam de objetos: não mais se ama aos que se amava; era-se livre com as leis, quer-se ser livre contra elas; cada cidadão é como um escravo que fugiu da casa de seu senhor; chama-se rigor o que era máxima; chama-se imposição o que era regra; chama-se temor o que era respeito. A frugalidade agora é avareza e não desejo de possuir. Outrora, os bens dos particulares constituíam o tesouro público mas, então, o tesouro torna-se patrimônio dos particulares. A república é um despojo mas sua força não é mais do que o poder de alguns cidadãos e a licença de todos. Atenas possuiu em seu seio as mesmas forças enquanto dominou com tanta glória e enquanto humilhou-se com tanto opróbrio. Possuía vinte mil cidadãos quando defendeu os gregos contra os persas, quando disputou o império à Lacedemônia e quando atacou a Sicília. Atenas possuía vinte mil quando Demétrio de Faleros os enumerou-v, tal como, num mercado, se enumeram os escravos. Quando Filipe ousou submeter à Grécia, quando ele apareceu nas portas de Atenas, de perdido esta só tinha o tempo. Podemos verificar, em Demóstenes, quanto esforço foi necessário para despertá-la: temia-se Filipe não como o inimigo da liberdade mas como o inimigo dos prazeres. Esta cidade, que resistira a tantos reveses, que vimos renascer após as destruições, foi derrotada em Queronéia e para sempre. Não importa que Filipe devolva todos os prisioneiros, pois não devolve homens. Era sempre tão fácil vencer as forças de Atenas como difícil vencer sua virtude. Como Cartago pôde manter-se? Quando Aníbal, que se tornara pretor, quis impedir os magistrados de pilhar a república, não foram eles acusá-lo aos romanos? Infelizes, queriam ser cidadãos sem que existisse a cidade e manter suas riquezas graças ao poderio de seus destruidores! Cedo Roma exigiu-lhes como reféns trezentos de seus principais cidadãos, fez com que se lhe entregassem suas armas e navios e depois lhes declarou guerra. Pelas coisas que o desespero fez na Cartago desarmada, podemos imaginar o que ela teria feito com sua virtude, quando ainda possuía suas forças. CAPÍTULO IV Do princípio da aristocracia A virtude é tão necessária no governo popular quanto na aristocracia. É verdade que aqui ela não é tão absolutamente requerida. O povo, que é para os nobres o que os súditos são para o monarca, é coibido por suas leis. Aqui o povo tem menos necessidade de virtude do que na democracia. Porém, como se coibirão os nobres? Os que devem mandar executar as leis contra seus colegas sentem imediatamente que agem contra eles próprios. Cumpre portanto que, neste corpo, haja virtude, pela natureza da constituição. O governo aristocrático possui, por si mesmo, certa força que a democracia não possui. Os nobres formam um corpo que, por sua prerrogativa e interesse particular, reprime o povo: basta que existam leis para que, a esse respeito, sejam executadas. Porém, assim como é fácil para esse corpo reprimir os demais, é difícil que ele reprima a si próprio. A natureza dessa constituição é tal que parece colocar as mesmas pessoas sob a força das leis e delas as retirar. Ora, um corpo semelhante apenas pode reprimir-se de duas maneiras: ou por uma grande virtude que faz com que os nobres se achem de algum modo iguais a seu povo, coisa que pode formar uma grande república; ou por uma virtude menor, isto é, certa moderação que torna os nobres, pelo menos, iguais entre si, o que faz a sua conservação. A moderação é portanto a alma desses governos. Refiro-me aos que se baseiam sobre a virtude e não aos que decorrem de uma covardia e preguiça da alma. CAPÍTULO V De como a virtude não é o principio do governo monárquico. Nas monarquias, a política manda fazer as grandes coisas com o mínimo de virtude possível, da mesma maneira como, nas máquinas mais perfeitas, a arte emprega o menor número possível de movimentos, forças e rodas. O Estado subsiste independentemente de amor pela pátria, do desejo da verdadeira glória, da renúncia a si mesmo, do sacrifício aos interesses mais caros e de todas estas virtudes heroicas que encontramos nos Antigos e das quais apenas ouvimos falar. As leis ocupam o lugar de todas essas virtudes, das quais não se tem qualquer necessidade, pois o Estado dela vos dispensa: uma ação que se faz silenciosamente e que é, de certo modo, sem consequências. Embora, por sua natureza, todos os crimes sejam públicos, distinguimos os crimes verdadeiramente públicos dos crimes particulares, assim chamados porque atingem mais uma pessoa do que toda a sociedade. Ora, nas repúblicas, os crimes particulares são os mais públicos, isto é, atentam mais contra a constituição do Estado do que os indivíduos; e, nas monarquias, os crimes públicos são mais particulares, isto é, atingem mais as fortunas particulares do que a constituição do próprio Estado. Peço que não se ofenda com que acabei de dizer pois refiro-me a todas as histórias. Sei muito bem que não raro existem príncipes virtuosos mas digo que, numa monarquia, é muito difícil que o povo o seja. Leia-se o que disseram os historiadores de todas as épocas sobre a corte dos monarcas; recordem-se as narrativas dos homens de todos os países sobre o caráter vil dos cortesãos: não se trata de coisas de especulação mas de uma triste experiência. A ambição na ociosidade, a baixeza no orgulho, o desejo de enriquecer sem trabalhar, a aversão pela verdade, a lisonja, a traição, a perfídia, o abandono de todos os compromissos, o desprezo pelos deveres do cidadão, o medo pela virtude do príncipe, a esperança em suas fraquezas e, mais do que tudo isso, o perpétuo ridículo lançado sobre a virtude, formam, creio, o caráter da maioria dos cortesãos, observados em todos os lugares e em todos os tempos. Ora, é muito lamentável que a maioria dos principais de um Estado sejam pessoas desonestas e que seus inferiores sejam pessoas de bem; que aqueles sejam mentirosos e só aceitem ser tolos. Porque, se entre o povo, encontramos algum infeliz homem honesto, o Cardeal de Richelieu insinua, em seu testamento político, que um monarca deve evitar servir-se dele, de tal modo é verdadeiro que a virtude não é a mola desse governo! Certamente a virtude aí não está totalmente excluída; mas ela não constitui a sua mola. CAPÍTULO VI Como se supre a virtude no governo monárquico. Apresso-me e caminho a passos largos a fim de que não se creia que faço uma sátira do governo monárquico. Não, se a ele falta uma mola, possui outra: a HONRA, isto é, o preconceito de cada pessoa e de cada condição, ocupa o lugar da virtude política à qual já me referi e a representa em toda parte. Pode ela inspirar as mais belas ações; pode, ligada à força das leis, levar o governo aos seus objetivos como a própria virtude. Assim, nas monarquias bem regulamentadas, todos serão quase bons cidadãos mas raramente encontrar-se-á alguém que seja homem de bem, pois para ser homem de bem é necessário ter a intenção de sê-lo e amar o Estado mais em si mesmo do que em interesse próprio. CAPÍTULO VII Do princípio da monarquia O governo monárquico supõe, como dissemos, preeminências, categorias e mesmo uma nobreza de origem. A natureza da honra é exigir preferências e distinções; ela está, portanto, pela própria coisa, situada neste governo. A ambição é perniciosa numa república mas acarreta bons resultados na monarquia: dá vida a esse governo com a vantagem de não ser perigosa porque pode aí ser incessantemente reprimida. Direis que isso se assemelha ao sistema do universo, em que há uma força que afasta incessantemente todos os corpos do centro do sistema, e uma força de gravidade que para aí os reconduz. A honra movimenta todas as partes do corpo político; liga-as por sua própria ação, fazendo com que cada uma caminhe para o bem comum acreditando ir em direção de seus interesses particulares. É verdade que, filosoficamente falando, é uma falsa honra que dirige todas as partes do Estado. Porém, esta falsa honra é tão útil ao público como o seria a verdadeira honra para os indivíduos que pudessem tê-la. E já não basta obrigar os homens a cumprir todas as ações difíceis que requerem força, sem outra recompensa que a repercussão dessas ações? CAPÍTULO VIII De como a honra não é o princípio dos Estados despóticos A honra não constitui o princípio dos Estados despóticos; sendo todos os homens iguais, não se pode antepor uns aos outros; sendo todos os homens escravos, ninguém pode antepor-se a coisa alguma. Demais, como a honra possui suas leis e regulamentos, não poderia transigir; como depende muito de seu próprio capricho e não do de outra coisa, só pode ser encontrada nos Estados em que a constituição é fixa e que possuem leis certas. Como seria ela suportada pelo déspota? Ela vangloria-se de menosprezar a vida e o déspota só é poderoso porque pode suprimi-la. Como poderia ela tolerar o déspota? Tem regras determinadas e caprichos obstinados; o déspota não observa regulamento algum e seus caprichos destroem todos os demais. A honra - desconhecida nos Estados despóticos onde amiúde não existe mesmo uma palavra para expressá-la - reina nas monarquias, dando vida a todo o corpo político, às leis e às próprias virtudes. CAPÍTULO IX Do princípio do governo despótico Tal como a virtude é necessária numa república e a honra necessária numa monarquia, o MEDO é necessário num governo despótico; nesse governo, a virtude é totalmente desnecessária, e a honra, perigosa. Aqui, o imenso poder do príncipe passa inteiramente àqueles a quem ele o confia, e pessoas capazes de cuidar muito de si mesmas seriam capazes de promover revoluções. Cumpre, portanto, que o medo aniquile todas as coragens e extinga até o menor sentimento de ambição. Um governo moderado pode, se o quiser, e sem se arriscar, distender suas molas, pois se mantém por suas leis e por sua própria força. Mas quando, num governo despótico, o príncipe deixa, por um instante, de levantar o braço e quando não pode destruir imediatamente os que ocupam os postos mais importantes, tudo está perdido, pois não mais existindo a mola do governo, que é o medo, o povo não mais possui protetor. É provàvelmente nesse sentido que os cádis afirmaram que o grão-senhor não era absolutamente obrigado a manter sua palavra ou seu juramento quando isso implicava numa limitação de sua autoridade. O povo deve ser julgado de acordo com leis e os poderosos pelo arbítrio do príncipe; a cabeça do súdito mais inferior deve estar em segurança e a dos paxás sempre ameaçada. Não se pode falar sem estremecer desses governos monstruosos. O sofi da Pérsia, destronado, em nossos dias, por Mirivéis, viu o governo perecer antes da conquista porque não fez verter bastante sangue. A História conta-nos como as horríveis crueldades de Domiciano aterrorizaram os governadores, de tal modo que o povo pôde refazer-se um pouco sob seu reinado. É deste modo que uma torrente que, numa margem, tudo devasta, deixa, na outra, campos onde o olhar percebe, de longe, alguns prados. CAPÍTULO X De como a obediência é diferente nos governos moderados e nos governos despóticos A natureza do governo, nos Estados despóticos, exige uma extrema obediência, e a vontade do príncipe, uma vez conhecida, deve ter tão infalivelmente seu efeito quanto uma bola atirada contra outra deve ter o seu. Não há temperamento, modificação, acordos, termos, equivalentes, conferências, admoestações; não há nada igualou melhor a ser proposto; o homem é uma criatura que obedece a outra criatura que manda. Não mais pode expressar seus temores por um acontecimento futuro, nem atribuir seus malogros aos caprichos do acaso. O quinhão dos homens, tal como o dos animais, é o instinto, a obediência, o castigo. De nada vale colocar obstáculos tais como os sentimentos naturais, o respeito paterno, a ternura pelos filhos e pelas mulheres, as leis da honra, o estado de saúde: recebeu-se ordem e isso basta. Na Pérsia, quando o rei condena alguém, não mais se pode falar-lhe, nem suplicar perdão. Se ele estava bêbado ou fora de si, a sentença deve ser executada do mesmo modo; sem isso, ele se contradiria e a lei não pode contradizer-se. Esse modo de pensar existiu sempre nesse país: não podendo ser revogada a ordem que Assuero deu de exterminar os judeus, preferiu-se dar a eles permissão para se defenderem. Há, porém, uma coisa que pode às vezes ser oposta à vontade do príncipe: a religião. Pode-se abandonar e mesmo matar o pai, se o príncipe assim o ordenar mas não se beberá vinho, ainda que ele assim queira e ordene. As leis da religião são de preceito superior porque recaem tanto sobre o príncipe como sobre seus súditos. Entretanto, não sucede o mesmo com o direito natural: supõe-se que o príncipe não mais é homem. Nos Estados monárquicos e moderados, o poder é limitado pelo que constitui seus fundamentos; refiro-me à honra que reina como um monarca sobre o príncipe e sobre o povo. Ninguém lhe alegará as leis da religião; um cortesão acreditar-se-á ridículo: ser-lhe-ão alegadas as da honra. Daí resultam modificações necessárias na obediência; a honra está naturalmente sujeita a singularidades, e a obediência cumprirá todas. Nesses dois governos, apesar de ser diferente a maneira de obedecer, o poder é, apesar disso, o mesmo. Para qualquer lado que o monarca se volte, ele decide e precipita a balança, e é obedecido. Toda diferença reside no fato de que, na monarquia, o príncipe é esclarecido e os ministros são infinitamente mais hábeis e mais versados nos negócios públicos do que no Estado despótico. CAPÍTULO XI Reflexão sobre tudo isso Tais são os princípios dos três governos, o que não significa que, em determinada república, se seja virtuoso, mas sim que se deveria sê-lo. Isso também não prova que, numa certa monarquia, a honra reine e que, num dado Estado despótico, o medo vigore; mas sim que a honra e o medo deveriam existir sem o que o governo seria imperfeito. LIVRO QUARTO - De como as leis da educação devem ser relativas aos princípios do governo. CAPÍTULO I Das leis da educação As leis da educação são as primeiras que recebemos. E, como elas nos preparam para sermos cidadãos, cada família particular deve ser governada de acordo com o plano da grande família que abrange todas. Se o povo em geral possui um princípio, as partes que o compõem, isto é, as famílias, também o terão. Portanto, em cada tipo de governo as leis da educação serão diferentes. Nas monarquias, terão por objeto a honra; nas repúblicas, a virtude; no despotismo, o medo. CAPÍTULO II Da educação nas monarquias Nas monarquias, não é nas escolas públicas que se instrui a infância, que se recebe a principal educação: a educação começa de alguma maneira quando se participa da vida. E aqui está a escola do que chamamos honra, esta preceptora universal que deve, em toda parte, nos orientar. Lá é que sempre vemos e ouvimos dizer três coisas: "Nas virtudes devemos inserir certa nobreza; nos costumes, certa franqueza; nas maneiras, certa polidez". As virtudes que ali nos são mostradas são sempre menos o que devemos aos outros do que o que devemos a nos próprios; não são tanto o que nos aproxima de nossos concidadãos mas o que deles nos diferencia. Não se julga a ação dos homens como boas mas como belas, não como justas mas como grandiosas, não como razoáveis mas como extraordinárias. Desde que a honra, nas monarquias, pode encontrar alguma coisa nobre, ela é o juiz que as torna legítimas ou o sofista que as justifica. Permite a galanteria quando está associada à ideia dos sentimentos do coração, ou à ideia de conquista e é este o verdadeiro motivo pelo qual os costumes nunca são tão puros nas monarquias como nos governos republicanos. Permite a astúcia quando está unida à ideia da grandeza do espírito ou da grandeza da questão, como, por exemplo, na política, cujas sutilezas não a ofendem. A honra só coíbe a adulação quando esta está isolada da ideia de uma grande fortuna e quando só se associa ao sentimento de sua própria baixeza. Afirmei, a respeito dos costumes, que a educação das monarquias deve neles introduzir certa franqueza. Pretende-se, portanto, que a verdade exista nas palavras. Mas será que isso é por amor a ela? De modo algum. Desejamo-la porque um homem acostumado a proclamá-la parece ser audacioso e livre. Com efeito, tal homem parece depender apenas das coisas e não das maneiras pelas quais outro as recebe. Isso faz com que, tanto como recomendamos esta espécie de franqueza, desprezemos a do povo, que só possui como objetivo a verdade e a simplicidade. Finalmente, a educação, nas monarquias, requer certa polidez nas maneiras. Os homens, nascidos para viver em sociedade, nasceram também para se agradar mutuamente, e quem não observasse as conveniências, ofendendo todos com quem convivesse, desacreditar-se-ia a ponto de se tornar incapaz de praticar qualquer bem. Porém não é de tão pura fonte que a polidez costuma extrair sua origem. Nasce ela do desejo de se distinguir. É pelo orgulho que somos delicados: sentimo-nos lisonjeados de possuir boas maneiras que provam que não pertencemos às camadas baixas e que não convivemos com este tipo de gente que, em todas as épocas, se desdenhou. Nas monarquias, é na corte que a polidez está implantada. Um homem excessivamente grande torna pequeno todos os demais. Decorre daí o respeito que devemos a todos; daí nasce a polidez que lisonjeia tanto os que são polidos como aqueles com quem o somos, porque a polidez faz com que se compreenda que somos da corte ou que somos dignos de sê-la. O vezo da corte consiste em substituir sua grandeza própria por uma grandeza emprestada. Essa lisonjeia mais um cortesão do que a sua própria. Ela confere certa modéstia desdenhosa que se propala ao longe mas cujo orgulho diminui insensivelmente na proporção da distância em que se está da fonte dessa grandeza. Encontramos na corte uma delicadeza de gosto em todas as coisas que decorre de um uso contínuo das superfluidades de uma grande fortuna, da variedade e sobretudo do tédio dos prazeres, da multiplicidade, da própria confusão das fantasias que, quando são agradáveis, são sempre bem recebidas. A educação baseia-se sobre todas essas coisas para constituir o que chamamos homem de bem, senhor de todas as qualidades e virtudes exigidas nesse tipo de governo. Aqui a honra, imiscuindo-se em tudo, penetra em todos os modos de pensar e em todas as maneiras de sentir, orientando até mesmo os princípios. Essa honra extravagante faz com que as virtudes não sejam o que ela deseja e como ela as deseja: introduz, por sua própria conta, regulamentos em tudo o que nos é prescrito; amplia ou limita, a seu bel-prazer, nossos deveres, quer esses se originem da religião, da política ou da moral. Nas monarquias, não há nada que prescreva tanta obediência às vontades do príncipe como as leis, a religião e a honra. Porém, esta honra nos afirma que o príncipe nunca nos deve prescrever uma ação que nos desonre, pois ela tornar-nos-ia incapazes de servi-lo. Crillon recusou-se a assassinar o Duque de Guise mas se ofereceu a Henrique III para bater-se contra ele. Depois da noite de São Bartolomeu, tendo Carlos IX determinado a todos os governadores que exterminassem os huguenotes, o Visconde d'Orte, que governava na Bayonne, escreveu ao rei: "Sire, encontrei entre os habitantes e militares apenas bons cidadãos e valentes soldados e nenhum carrasco; assim, eu e eles suplicamos a Vossa Majestade empregar nossos braços e nossas vidas em coisas factíveis". Essa grande e generosa coragem considerava uma covardia como algo impossível. Não há nada que a honra prescreva mais à nobreza do que servir ao príncipe na guerra. Com efeito, é a profissão distinguida porque seus acasos, seus sucessos e mesmo seus reveses conduzem à grandeza. Mas a honra, ao impor esta lei, dela quer ser o árbitro e, se se julgar violada, exige ou permite que nos retiremos do país. Pretende a honra que possamos indiferentemente aspirar aos empregos ou recusá-los e mantém esta liberdade acima da própria fortuna. Possui a honra, portanto, suas regras supremas e a educação é obrigada a se conformar a elas. As principais são: é-nos permitido atribuir importância à nossa fortuna porém nos é soberanamente vedado atribuir qualquer importância à nossa vida. A segunda estipula que, quando tenhamos por uma vez ocupado uma posição, não devemos fazer, nem tolerar nada que revele que somos inferiores a esta mesma posição. A terceira diz que as coisas que a honra proíbe são mais rigorosamente proibidas quando as leis não contribuem para proscrevê-las e que aquelas que a honra exige são mais fortemente exigidas quando as leis não as requestam. CAPÍTULO III Da educação no governo despótico Como nas monarquias a educação não se aplica senão em enobrecer os sentimentos, nos Estados despóticos ela procura apenas aviltá-los. Cumpre que a educação, nesses Estados, seja servil. Será uma vantagem ter tido semelhante educação, mesmo no comando, pois aí ninguém será tirano sem ser ao mesmo tempo escravo. A extrema obediência supõe ignorância em quem obedece; supõe-na mesmo em quem comanda; este nada tem a deliberar, a duvidar, nem a raciocinar; basta querer. Nos Estados despóticos, cada casa é um império separado. A educação, que consiste principalmente em viver com os outros, é portanto muito limitada; reduz-se a introduzir o medo no coração e a conferir ao espírito o conhecimento de alguns princípios muito simples de religião. O saber aí será perigoso, a emulação, funesta; e, no que se refere às virtudes, Aristóteles não pode acreditar que exista alguma própria aos escravos, fato que muito limitaria a educação nesses governos. Portanto a educação, nessas formas de governo, é de alguma maneira nula. Precisa tirar tudo a fim de dar algo e, para formar um bom escravo, começa por formar um mau súdito. Ah! Por que se esmeraria a educação em formar um bom cidadão que participasse da desgraça pública? Se ele amasse o Estado seria tentado a solapar os fundamentos do governo: se não o lograsse, perder-se-ia; se o conseguisse, correria o risco de se perder, ele, o príncipe e o império. CAPÍTULO IV Dos diferentes efeitos da educação entre os antigos e nós A maioria dos povos antigos vivia em governos cujo princípio era a virtude; e, desde que esta estava no auge de seu vigor, faziam-se coisas que hoje não mais vemos e que assombram nossas frágeis almas. Sua educação possuía outra vantagem sobre a nossa: nunca era desmentida. Epaminondas, no derradeiro ano de sua vida, dizia, escutava, via e fazia as mesmas coisas que na idade em que começara a ser instruído. Hoje, recebemos três educações diferentes ou contrárias: a de nossos pais, a de nossos mestres e a da sociedade. O que nos é dito na última destrói todas as ideias das primeiras. Isso decorre, em parte, do contraste existente em nosso meio entre os compromissos da religião e os da sociedade, fato que os Antigos desconheciam. CAPÍTULO V Da educação no governo republicano É no governo republicano que se tem necessidade de toda a força da educação. O temor dos governos despóticos nasce de si mesmo, entre as ameaças e castigos; a honra das monarquias é favorecida pelas paixões e favorece-as por sua vez. Mas a virtude política é uma renúncia a si próprio, que é sempre algo muito penoso. Podemos definir esta virtude como o amor pelas leis e pela pátria. Este amor, exigindo sempre a supremacia do interesse público sobre o interesse particular, produz todas as virtudes individuais; elas nada mais são do que esta supremacia. Este amor é singularmente característico das democracias. Somente nelas o governo é confiado a cada cidadão. Ora, o governo é como todas as coisas do mundo: para conservá-lo é necessário amá-lo. Nunca ouvimos dizer que os reis não amassem a monarquia e que os déspotas odiassem o despotismo. Tudo depende, portanto, de implantar na república esse amor, e é para inspirá-lo que a educação deve estar atenta. Mas para que as crianças possam tê-lo há um meio seguro: é que os próprios pais o possuam. Somos geralmente senhores para incutir em nossos filhos nossos conhecimentos; somo-lo ainda mais para incutir neles nossas paixões. Se isso não acontece é porque o que foi feito na casa paterna é destruído pelas impressões externas. Não é a nova geração que se degenera; essa só se perde quando os homens maduros já estão corrompidos. CAPÍTULO VI De algumas instituições dos gregos Os antigos gregos, compenetrados da necessidade de que os povos que viviam sob um governo popular fossem educados na virtude, criaram, para inspirá-la, instituições singulares. Quando vedes, na vida de Licurgo, as leis que ele deu aos lacedemônios, julgais ler a história dos sevarambes. As leis de Creta eram o original das da Lacedemônia, e as de Platão, sua correção. Peço que se atente um pouco para a grandeza de gênio que foi necessária a esses legisladores a fim de que se veja que, ao contrariarem todos os hábitos recebidos, ao confundirem todas as virtudes, mostrariam ao universo sua sabedoria. Licurgo, associando o furto ao espírito de justiça, a mais severa escravidão à extrema liberdade, os sentimentos mais atrozes à maior moderação, deu estabilidade à sua cidade. Pareceu-lhe suprimir todos os recursos, as artes, o comércio, o dinheiro, as muralhas: tinha-se ambição sem esperança de progredir; possuíam-se os sentimentos naturais mas não se era nem criança, nem marido, nem pai; até a castidade estava destituída de pudor. Por esses caminhos Esparta foi levada à grandeza e à glória; mas a infalibilidade de suas instituições era tal que nada se obteria contra ela vencendo batalhas, se não se conseguisse suprimir sua policia. Creta e a Lacônia foram governadas por essas leis. A Lacedemônia foi a última a capitular perante os macedônios e Creta foi a derradeira presa dos romanos. Os samnitas possuíram essas mesmas instituições e elas foram para esses romanos o motivo de vinte e quatro triunfos. Esta singularidade que encontramos nas instituições da Grécia, vimo-la na escória e na corrupção dos tempos modernos. Um legislador honesto formou um povo no qual a probidade parecia tão natural quanto à bravura entre os espartanos. Penn é um verdadeiro Licurgo e apesar de o primeiro ter tido a paz por objetivo como o outro teve a guerra, ambos se assemelham pelo caminho singular pelo qual conduziram seu povo, na ascendência que tiveram sobre homens livres, nos preconceitos que venceram, nas paixões que dominaram. O Paraguai pode oferecer-nos outro exemplo. Quiseram imputar à Companhia, como um crime, o fato de ela ter considerado o prazer de comandar como o único bem da vida; porém será sempre belo governar os homens tornando-os mais felizes. É glorioso para ela ter sido a primeira que mostrou, nessas regiões, a ideia da religião unida à da humanidade. Reparando as devastações dos espanhóis, começou por sanar uma das grandes pragas que o gênero humano jamais recebeu. Um sentimento raro que essa sociedade tem por tudo o que se denomina honra, seu zelo por uma religião que humilha muito mais os que escutam do que os que a pregam, fizeram-na empreender grandes coisas; e ela obteve êxito. Retirou das florestas povos dispersos; garantiu-lhes uma subsistência; vestiu-os. E mesmo que com isso nada mais tivesse feito do que aumentar a indústria entre os homens, teria feito muito. Os que quiserem criar instituições semelhantes devem estabelecer a comunidade de bens da República de Platão, o respeito que esse exigia para com os deuses, a separação dos estrangeiros para a conservação dos costumes, cabendo o comércio à cidade e não aos cidadãos; implantarão nossas artes sem nosso luxo e nossas necessidades sem nossos desejos. Deverão proscrever o dinheiro, cujo efeito é aumentar a fortuna para além dos limites que a natureza estabeleceu; ensinar a conservar inutilmente o que se acumulara do mesmo modo; multiplicar ao infinito os desejos e suprir a natureza que nos dera meios muito limitados de estimular nossas paixões e de nos corromper mutuamente. "Os epidaminianos, vendo seus costumes corromperem-se por causa de seu contacto com os bárbaros, elegeram um magistrado para efetuar todas as transações em nome da cidade e para a cidade." Assim, o comércio não corrompe a constituição e a constituição não priva a sociedade das vantagens do comércio. CAPÍTULO VII Em que caso essas instituições singulares podem ser boas Estas espécies de instituições podem convir às repúblicas porque a virtude política é seu princípio. Entretanto, nas monarquias, para chegar à honra, ou nos Estados despóticos, para inspirar o temor, não são necessários tantos cuidados. Aliás, elas só podem ocorrer num pequeno Estado, onde se pode dar uma educação geral e educar como uma família todo um povo. As leis de Minos, de Licurgo e de Platão supõem uma atenção especial de todos os cidadãos uns para com os outros. Isso não pode ser assegurado na confusão, nas negligências, na extensão dos interesses de um grande povo. Cumpre, como se disse, abolir, nessas instituições, o dinheiro. Porém, nas grandes sociedades, o número, a variedade, os obstáculos, a importância dos negócios, a facilidade das aquisições, a lentidão das trocas, exigem uma medida comum. Para exercer seu poder ou defendê-lo por toda parte, é mister possuir aquilo a que, em toda parte, os homens associaram o poder. CAPÍTULO VIII Explicação de um paradoxo dos Antigos com relação aos costumes Políbio, o judicioso Políbio, conta-nos que a musica era necessária para suavizar os costumes dos arcádios que habitavam uma região onde o clima era triste e frio; que os de Cineta, que negligenciaram a música, excederam em crueldade todos os gregos e que não há cidade em que se tenham visto tantos crimes. Platão não receia dizer que não se pode fazer alteração na música sem que haja outra na constituição do Estado. Aristóteles, que parece só ter escrito sua Política para opor seus sentimentos aos de Platão, está, contudo, de acordo com ele quanto à influência da música sobre os costumes. Teofrasto, Plutarco, Estrabão, todos os Antigos pensaram do mesmo modo. Não é uma opinião lançada sem reflexão; é um dos princípios de sua política. Assim elaboraram as leis; assim queriam que se governassem as cidades. Creio que poderia explicar isso. Deve-se ter em mente que, nas cidades gregas, especialmente as que tinham a guerra por finalidade principal, todos os trabalhos e todas as profissões que poderiam acarretar lucro monetário eram considerados indignos de um homem livre. "A maioria dos ofícios, diz Xenofonte, corrompe o corpo dos que os exercem; eles obrigam a sentar-se à sombra ou perto do fogo; não se tem tempo nem para os amigos nem para a república." Foi somente quando da corrupção de algumas democracias que os artesãos chegaram a ser cidadãos. É o que nos ensina Aristóteles; afirma ele que uma boa república nunca lhes dará o direito de cidadania. Era também a agricultura uma profissão servil, sendo geralmente algum povo vencido que a exercia: os hilotas, entre os lacedemônios; os periecos, entre os cretenses; os penestos, entre os tessálios; outros povos escravos, em outras repúblicas. Enfim, todo o baixo comércio era degradante entre os gregos. Para exercê-lo teria sido necessário que um cidadão prestasse serviços a um escravo, a um arrendatário, a um estrangeiro; tal ideia contrariava o espírito da liberdade grega. Desta maneira, Platão, em suas leis, pretende que se castigue o cidadão que pratique o comércio. Ficava-se, portanto, extremamente confuso nas repúblicas gregas. Não se desejava que os cidadãos trabalhassem no comércio, na agricultura, nem nos ofícios e também não se desejava que fossem ociosos. Encontravam eles ocupação nos exercícios que dependiam da ginástica e nos que se relacionavam com a guerra. A instituição não lhes oferecia outras. Portanto, deve-se considerar os gregos como uma sociedade de atletas e de guerreiros. Ora, esses exercícios, tão adequados para tornar os homens duros e selvagens, necessitavam ser moderados por outros que pudessem amenizar os costumes. A música, que se transmite ao espírito pelos órgãos do corpo, era muito adequada para isso. Constitui um meio-termo entre os exercícios do corpo que fazem os homens duros e as ciências de especulação que os tornam selvagens. Não podemos dizer que a música inspirasse a virtude; isso seria inconcebível. Entretanto, impedia o efeito da brutalidade da instituição e fazia com que a alma tivesse na educação uma parte que não teria tido. Imagino que houvesse entre nós um grupo de pessoas tão apaixonadas pela caça que só se ocupassem dela; indubitàvelmente adquiririam certa rudeza. Se essas mesmas pessoas passassem a apreciar a música, veríamos logo uma diferença nas suas maneiras e nos seus costumes. Finalmente, os exercícios dos gregos estimulavam apenas um gênero de paixões: a rudeza, a cólera, a crueldade. A música estimula todas elas, e pode fazer com que a alma sinta a doçura, a piedade, a ternura, o prazer suave. Nossos autores moralistas que, entre nós, proscrevem tão energicamente os teatros, fazem-nos sentir claramente o poder que a música possui sobre nossos espíritos. Se déssemos ao grupo a que me referi música suave em vez de apenas tambores e árias de trombeta não é verdade que alcançaríamos melhor nosso objetivo? Portanto, os Antigos tinham razão quando, em certas circunstâncias, preferiam, para os costumes, uma modalidade à outra. Mas, dir-se-á, por que dar preferência à música? É que, de todos os prazeres dos sentidos, não há nenhum que corrompa menos a alma. Enrubescemos ao lermos em Plutarcos que os tebanos, para suavizar os costumes de seus jovens, estabeleceram, por meio de leis, um amor que deveria ser proscrito por todas as nações do mundo. LIVRO QUINTO - De como as leis decretadas pelo legislador devem ser relativas aos princípios do governo CAPÍTULO I Ideia deste livro Acabamos de verificar que as leis da educação devem relacionar-se com o princípio de cada governo, assim como as que o legislador promulga para toda a sociedade. Esta relação das leis com este princípio fortalece todos os fundamentos do governo e esse princípio recebe daí, por sua vez, uma nova força, É assim que, nos movimentos físicos, a ação é sempre seguida de uma reação. Examinaremos essa relação em cada governo; começaremos pelo Estado republicano que tem a virtude como princípio. CAPÍTULO II O que é a virtude no Estado político A virtude, numa república, é algo muito simples; é o amor pela república, é um sentimento e não uma série de conhecimentos; tanto o último dos homens do Estado quanto o primeiro, pode possuir esse sentimento. O povo, uma vez que tem boas máximas, a elas se atém por mais tempo que as chamadas pessoas de bem. Raramente a corrupção começa por ele. Frequentemente extrai da mediocridade de seus conhecimentos um apego mais forte pelo que está estabelecido. O amor pela pátria acarreta a pureza dos costumes, e a pureza dos costumes acarreta o amor pela pátria. Quanto menos podemos satisfazer nossas paixões individuais, tanto mais nos entregamos às gerais. Por que os monges amam tanto sua ordem? Exatamente pelo que elas têm de insuportável. Seu regulamento os priva de todas as coisas em que se apoiam as paixões comuns; resta, pois, essa paixão pelo próprio regulamento que os mortifica. Quanto mais austero for ele, isto é, quanto mais restringir-lhes as inclinações, tanto mais força dará às que lhes deixa. CAPÍTULO III O que é o amor pela república na democracia O amor pela república, numa democracia, é o amor pela democracia; o amor pela democracia é o amor pela igualdade. O amor pela democracia é também o amor pela frugalidade. Nesse regime, devendo todos gozar da mesma felicidade e das mesmas regalias, devem fruir dos mesmos prazeres e acalentar as mesmas esperanças, coisa que só se pode esperar da frugalidade geral. O amor pela igualdade, numa democracia, limita a ambição unicamente ao desejo, à felicidade de prestar à sua pátria serviços maiores que os outros cidadãos. Todos não podem prestar-lhe serviços iguais; mas todos devem igualmente prestar-lhos. Ao nascer contraímos para com ela uma imensa dívida da qual nunca podemos desobrigar-nos. Assim, nas democracias, as distinções nascem do princípio da igualdade, mesmo quando essa parece destruída por serviços excepcionais ou por talentos superiores. O amor pela frugalidade limita o desejo de possuir à atenção exigida pelo necessário para a família e até pelo supérfluo para a pátria. As riquezas oferecem um poderio de que um cidadão não pode beneficiar-se sob pena de prejudicar a igualdade: proporcionam delícias de que tampouco deve fruir porque, do mesmo modo, seriam contrárias à igualdade. Destarte, as boas democracias, estabelecendo a frugalidade doméstica, abriram a porta às despesas públicas, como se fez em Atenas e em Roma. Nessa época, a magnificência e a abundância nasciam do seio da própria frugalidade. E, assim como a religião exige que se tenham as mãos puras para prestar oferendas aos deuses, as leis exigiam costumes frugais para que se pudesse ofertar à pátria. O bom senso e a felicidade dos indivíduos consiste muito na mediocridade de seus talentos e de suas fortunas. Uma república onde as leis tenham formado muitas pessoas medíocres, orientada por pessoas sábias, governar-se-á sàbiamente; orientada por pessoas felizes, será felicíssima. CAPÍTULO IV Como se inspira o amor pela igualdade e pela frugalidade O amor pela igualdade e o pela frugalidade são extremamente estimulados pela própria igualdade e frugalidade, quando se vive numa sociedade onde as leis estabeleceram uma e outra. Nas monarquias e nos Estados despóticos, ninguém aspira à igualdade; isso nem ocorre aos espíritos; cada um almeja a superioridade. As pessoas das mais baixas condições delas desejam sair apenas para serem senhoras de outras. O mesmo ocorre com a frugalidade; para amá-la é necessário exercê-la. Os que são corrompidos pelo deleite não apreciarão a vida frugal e, se isso fosse natural ou comum, Alcibíades não teria provocado a admiração do universo. Não serão também os que invejam ou admiram o luxo dos outros que apreciarão a frugalidade; indivíduos que só têm diante dos olhos homens ricos ou miseráveis como eles odeiam sua miséria sem amar ou conhecer o que extermina a miséria. Logo, é bem verdadeira a seguinte máxima: numa república, para que se ame a igualdade e a frugalidade, é mister que as leis as tenham estabelecido. CAPÍTULO V Como as leis estabelecem a igualdade na democracia Alguns legisladores antigos, como Licurgo e Rômulo, dividiram igualmente as terras. Isso só poderia ter acontecido na fundação de uma república nova ou, então, quando a lei antiga estava tão corrompida e os espíritos numa tal disposição que os pobres se consideravam obrigados a procurar semelhante solução e os ricos a ela resignar-se. Se, quando o legislador realiza tal partilha, não elabora leis para assegurá-la, cria apenas uma constituição efêmera: a desigualdade infiltrar-se-á pelo lado em que as leis não a tenham obstado, e a república estará perdida. Cumpre, portanto, neste caso, que se regulamentem os dotes das mulheres, as doações, as heranças, os testamentos, enfim, todas as formas de contrato, pois, se fosse permitido doar os bens como e a quem se entendesse, cada vontade particular perturbaria a disposição da lei fundamental. Sólon que permitia, em Atenas, que se legassem os bens por testamento a quem se entendesse, desde que não se tivessem filhos contrariava as leis antigas, as quais ordenavam que os bens permanecessem na família do testador. Contradizia suas próprias leis porque, ao abolir as dívidas, procurara a igualdade. Era uma boa lei para a democracia a que interditava a posse de duas heranças. Ela originara-se na divisão equitativa das terras e dos lotes outorgados a cada cidadão. A lei não pretendera que um só homem possuísse vários lotes. A lei que ordenava que o parente mais próximo desposasse a herdeira tinha uma origem semelhante. Era aplicada entre os judeus após tal partilha. Platão, que fundamentou suas leis nessa partilha, igualmente a instituiu: e era uma lei ateniense. Existia em Atenas uma lei cujo espírito não sei se alguém compreendeu. Era permitido desposar a irmã consanguínea mas não a irmã uterina. Esse costume originara-se nas repúblicas, cujo espírito era evitar que duas glebas, e consequentemente duas heranças, coubessem a uma mesma pessoa. Quando um homem desposava a irmã do ramo paterno, só podia ter uma herança, que era a de seu pai; porém, quando desposava a irmã uterina, podia ocorrer que o pai desta irmã, não tendo filhos varões, lhe deixasse a sucessão e, por consequência, seu irmão que a desposava, teria duas. Não se me objete o que diz Filon que, embora em Atenas se desposasse a irmã consanguínea e não a uterina, podia-se, na Lacedemônia, desposar a irmã uterina e não a consanguínea, pois encontro em Estrabão que, na Lacedemônia, quando uma irmã desposava o irmão, recebia por dote a metade da parte dele. É patente que esta segunda lei tinha sido estabeleci da para evitar as consequências negativas da primeira. A fim de se impedir que os bens da família da irmã passassem à do irmão, dava-se como dote para a irmã a metade dos bens do irmão. Sêneca referindo-se a Silano, que desposara a irmã, conta que em Atenas a permissão era restrita e que, em Alexandria, era geral. No governo único quase não era necessário manter a partilha dos bens. Para assegurar, na democracia, essa divisão das terras, era boa a lei que estipulava que o pai de muitos filhos escolhesse um para herdar a sua parte e desse os outros em adoção a alguém que não tivesse filhos a fim de que o número dos cidadãos fosse sempre igual ao das partilhas. Faleas da Calcedônia imaginara um modo de igualar as fortunas numa república em que elas não eram iguais. Desejava que os ricos não recebessem e oferecessem dotes aos pobres e que os pobres recebessem dinheiro pelas suas filhas e não o dessem. Porém, que eu saiba, não há república que se tenha conformado com tal regulamento. Ele coloca os cidadãos, cujas diferenças são tão flagrantes, sob condições tais que eles odiariam esta própria igualdade que se tenta introduzir. Cumpre, algumas vezes, que as leis não pareçam ir tão diretamente ao fim que se propõem. Embora na democracia a igualdade real seja a alma do Estado, ela é tão difícil de ser estabelecida que um rigor exagerado a esse respeito nem sempre é conveniente. Basta que se estabeleça um censo reduzindo as diferenças a certo ponto; em seguida, cabe às leis particulares nivelar, por assim dizer, as desigualdades, através dos encargos que impõem aos ricos e do alívio que concedem aos pobres. Só as riquezas medíocres podem dar ou suportar estas espécies de compensações, pois, para as fortunas imoderadas, tudo o que não lhes concede poder e honra é encarado como uma ofensa. Toda desigualdade numa democracia deve ter sua origem na natureza da democracia e no próprio princípio da igualdade. Por exemplo, pode-se temer que pessoas que, para viver, têm necessidade de um trabalho contínuo, fiquem muito empobrecidas por uma magistratura ou negligenciem suas funções; que os artesãos se tornem orgulhosos; que os escravos forros se tornem mais poderosos que os próprios antigos cidadãos. Nesses casos a igualdade entre os cidadãos deve ser suprimida na democracia para o bem da democracia. Entretanto, suprime-se apenas uma igualdade aparente porque um homem arruinado por uma magistratura estaria numa situação pior que a dos outros cidadãos e esse mesmo homem que seria obrigado a negligenciar as funções, colocaria os demais cidadãos numa condição pior do que a sua; e assim por diante. CAPÍTULO VI Como as leis devem manter a frugalidade na democracia Numa boa democracia, não basta que as glebas sejam iguais; é preciso que sejam pequenas, como entre os romanos. "Não permita Deus, dizia Cúrio a seus soldados, que um cidadão julgue insuficiente a terra que é suficiente para nutrir um homem." Tal como a igualdade das riquezas mantém a frugalidade, a frugalidade mantém a igualdade das riquezas. Essas coisas, embora diferentes, são tais que não podem subsistir uma sem a outra; cada uma delas é causa e efeito; se uma desaparece da democracia, a outra sempre a acompanha. É verdade que, quando a democracia baseia-se no comércio, pode muito bem acontecer que os indivíduos sejam muito ricos e que os costumes não sejam corrompidos. É que o espírito de comércio traz consigo o de frugalidade, de economia, de moderação, de trabalho, de prudência, de tranquilidade, de ordem e de método. Assim, enquanto esse espírito subsiste, as riquezas que produz não acarretam nenhum efeito pernicioso. O mal surge quando o excesso de riquezas destrói este espírito de comércio; vê-se subitamente surgirem as desordens da desigualdade, que ainda não se tinham feito sentir. Para conservar o espírito de comércio, cumpre que os principais cidadãos o pratiquem; que esse espírito seja o único a reinar e que não seja contrariado por nenhum outro; que todas as leis o favoreçam; que essas mesmas leis, por seus dispositivos, dividindo as fortunas à medida que o comércio as aumenta, propiciando a cada cidadão pobre certo bem-estar para que ele possa trabalhar como os outros, e a cada cidadão rico uma situação medíocre, a fim de que ele tenha necessidade de seu trabalho para conservar ou para adquirir. Numa república comerciante, é muito boa a lei que dá a todos os filhos uma parte igual na herança dos pais. Decorre daí que, seja qual for a fortuna que o pai tenha acumulado, os filhos, sempre menos ricos que ele, serão levados a fugir do luxo e a trabalhar como o pai. Só me refiro às repúblicas comerciantes, pois, para as que não o são, o legislador terá muitos outros regulamentos a prescrever. Na Grécia, existiam dois tipos de repúblicas: umas eram militares, como a Lacedemônia; outras eram comerciantes, como Atenas. Nas primeiras, desejava-se que os cidadãos fossem ociosos; nas segundas, procurava-se inculcar o amor pelo trabalho. Sólon fez da ociosidade um crime e pretendeu que todos os cidadãos prestassem contas da maneira pela qual ganhavam a vida. Com efeito, numa verdadeira democracia em que só se deve gastar para o necessário, cada um deve tê-lo, pois de quem o receberia? CAPÍTULO VII Outros meios de favorecer o princípio da democracia Não se pode estabelecer em todas as democracias uma divisão igual da terra. Há circunstâncias em que tal medida seria impraticável, perigosa, atentando mesmo contra a constituição. Nem sempre se é obrigado a adotar os métodos extremados. Se se verifica que, numa democracia, esta partilha, que deve servir para manter os costumes, não é conveniente, cumpre recorrer li outros meios. Se se estabelece um corpo permanente que por si mesmo seja o regulamento dos costumes, um senado em que a idade, a virtude, a circunspecção, os serviços, permitem o acesso, os senadores, expostos à vista do povo como os simulacros dos deuses, inspirarão sentimentos que atingirão o seio de todas as famílias. É necessário, sobretudo, que esse senado cuide das instituições antigas e proceda de modo que o povo e os magistrados delas nunca se afastem. No que diz respeito aos costumes, há muito que lucrar na preservação dos antigos. Como os povos corrompidos raramente realizam grandes coisas, como quase não haviam estabelecido sociedades, fundado cidades, criado leis, e como, ao contrário, os que possuíam costumes simples e austeros criaram a maioria das instituições, lembrar aos homens as máximas antigas significa, geralmente, reconduzi-los à virtude. Além disso, se alguma revolução ocorreu dando ao Estado uma nova forma, isso geralmente só pôde ser feito com sofrimentos e trabalhos infinitos e raramente com ociosidade e costumes corrompidos. Os mesmos que fizeram as revoluções a quiseram experimentar e, em geral, só o conseguiram através de boas leis. Portanto, as instituições antigas são, comumente, correções, e as novas, abusos. Durante um longo governo, chega-se ao mal por um declive imperceptível e só se retorna ao bem por um esforço. Não se sabe exatamente se os membros aos quais nos referimos devem ser vitalícios ou escolhidos por certo prazo. É fora de dúvida que devem ser vitalícios, tal como se fazia em Roma, na Lacedemônia e na própria Atenas, pois não devemos confundir o que, em Atenas, se denominava senado, que era um corpo que se modificava de três em três meses, com o Areópago, cujos membros eram vitalícios, como modelos perpétuos. Máxima geral: num senado escolhido para ser o exemplo e, por assim dizer, o repositório dos costumes, os senadores devem ser vitalícios. Num senado feito para preparar os negócios, os senadores podem ser substituídos. O espírito, diz Aristóteles, tal como o corpo, envelhece. Esta reflexão só é válida no que diz respeito a um único magistrado e não pode ser aplicada a uma assembleia de senadores. Além do Areópago, existiam em Atenas guardiães dos costumes e guardiães das leis. Na Lacedemônia, todos os anciãos eram censores. Em Roma, dois magistrados particulares ocupavam-se da censura. Considerando-se que o senado vela pelo povo, cumpre que os censores vigiem o povo e o senado. É necessário que eles restabeleçam na república tudo o que foi corrompido, que apontem a indolência, julguem as negligências e corrijam os erros, do mesmo modo como as leis punem os crimes. A lei romana, que desejava que a acusação de adultério fosse pública, era admirável porque mantinha a integridade dos costumes; intimidava as mulheres e também os que deviam zelar por elas. Coisa alguma mantém mais os costumes do que uma extrema subordinação dos jovens aos anciães. Ambos moderar-se-ão: os primeiros pelo respeito que sentirão pelos velhos e os segundos pelo respeito que sentirão por si próprios. Coisa alguma dá mais força às leis do que a extrema subordinação dos cidadãos aos magistrados. "A grande diferença que Licurgo colocou entre a Lacedemônia e as demais cidades, conta Xenofonte, consiste bàsicamente no fato de essa ter feito com que os cidadãos obedecessem às leis; eles acorrem quando o magistrado os solicita. Entretanto, em Atenas, um homem rico desesperar-se-ia de receio de que se pensasse que ele dependia de um magistrado." A autoridade paterna é ainda muito eficaz na manutenção dos costumes. Já afirmamos que, numa república, não há uma força tão repressora como nos outros governos. É mister, portanto, que as leis procurem supri-la: conseguem-no pela autoridade paterna. Em Roma, os pais tinham direito de vida e de morte sobre os filhos. Na Lacedemônia, todo pai tinha direito de punir o filho de outro. O poder paterno, em Roma, desapareceu com a república. Nas monarquias, em que não é necessário estabelecer costumes tão puros, pretende-se que todos vivam sob o poder dos magistrados. As leis de Roma, que habituaram os jovens à dependência, estabeleceram uma longa minoridade. Talvez caiamos num erro ao adotar esse costume: uma monarquia não requer tanta imposição. Numa república, essa mesma subordinação poderia exigir que o pai permanecesse, durante sua vida, como proprietário dos bens de seus filhos, tal como foi estabelecido em Roma. Mas isso não é do espírito da monarquia. CAPÍTULO VIII Como as leis devem relacionar-se com o princípio do governo na aristocracia Se, na aristocracia, o povo é virtuoso, desfrutar-se-á quase da felicidade do governo popular e o Estado tornar-se-á poderoso, Porém, como é raro que onde as fortunas dos homens são tão desiguais haja muita virtude, é necessário que as leis tendam a dar, tanto quanto possam, espírito de moderação e procurem restabelecer essa igualdade que a constituição do Estado necessàriamente suprime. O espírito de moderação chama-se virtude na aristocracia e substitui o espírito de igualdade no Estado popular. Se o fausto e o esplendor que envolvem os reis constituem seu poderio, a modéstia e a simplicidade das maneiras fazem a força dos nobres aristocráticos. Quando não aparentam qualquer distinção, quando se vestem como ele, quando o fazem compartilhar de todos seus prazeres, o povo esquece sua fraqueza. Cada governo tem sua natureza e seu princípio. Não é, pois, preciso que a aristocracia adquira a natureza e o princípio da monarquia, fato que aconteceria se os nobres tivessem algumas prerrogativas pessoais e particulares diferentes das de seus corpos. Os privilégios devem ser reservados para o senado, e o simples respeito, para os senadores. Nos Estados aristocráticos há duas fontes principais de desordem: a extrema desigualdade entre governantes e governados, e a mesma desigualdade entre os diversos membros do corpo que governa. Dessas duas desigualdades originam-se ódios e invejas que as leis devem prevenir ou deter. Encontra-se a primeira desigualdade principalmente quando os privilégios dos principais só são honrosos porque vergonhosos para o povo. Assim foi, em Roma, a lei que proibia aos patrícios unirem-se pelo casamento aos plebeus, fato que não teve outro efeito senão tornar, de um lado, os patrícios mais soberbos, e, de outro, mais odiosos. É de ver as vantagens que disso tiraram os tribunos em suas arengas. Essa desigualdade encontra-se ainda, se a condição dos cidadãos é diferente; com relação aos subsídios. Isto acontece de quatro modos: quando os nobres se arrogam o direito de não pagá-los; quando cometem fraudes para se isentarem; quando os reclamam para si, sob pretexto de retribuições ou honorários pelos empregos que exercem; finalmente, quando tornam o povo tributário e repartem entre si os impostos que dele retiram. Esse último caso é raro; uma aristocracia, em caso semelhante, é a mais rigorosa de todos os governos. Enquanto inclinou-se para a aristocracia, Roma evitou perfeitamente esses inconvenientes. Nunca usufruíram os magistrados lucros pela magistratura. Os principais da República foram taxados da mesma maneira que os demais; e, às vezes, o foram ainda mais, quando não foram os únicos taxados. Enfim, longe de partilharem das rendas do Estado, tudo o que puderam retirar do tesouro público, tudo o que a fortuna lhes enviou de riquezas, eles distribuíram ao povo, a fim de que suas honrarias fossem perdoadas. É uma máxima fundamental que os resultados das distribuições feitas ao povo são tão prejudiciais, na democracia, quanto úteis no governo aristocrático. As primeiras fazem perder o espírito do cidadão, as segundas, a ele conduzem. Se as rendas não são distribuídas ao povo, é necessário fazê-lo ver que são bem administradas; mostrá-las significa, de algum modo, permitir ao povo participar delas. A cadeia de ouro estendida em Veneza, as riquezas que se carregavam nos triunfos, em Roma, os tesouros guardados no templo de Saturno, eram verdadeiras riquezas do povo. É sobretudo essencial na aristocracia que os nobres não arrecadem tributos. A primeira ordem do Estado, em Roma, neles não se imiscuía; encarregava-se deles a segunda, mas mesmo isso ocasionou, posteriormente, grandes inconvenientes. Numa aristocracia onde os nobres arrecadassem tributos, todos os particulares estariam à mercê dos homens de negócio. Não haveria qualquer tribunal superior que os corrigisse. Aqueles dentre eles que fossem encarregados de suprimir os abusos prefeririam antes aproveitá-los, Os nobres seriam como os príncipes dos Estados despóticos que confiscam os bens de quem desejam. Ràpidamente os lucros que daí aufeririam seriam considerados como um patrimônio que a avareza ampliaria à vontade. Far-se-iam cair os arrendamentos, reduzir-se-iam a nada as rendas públicas. É por isso que alguns Estados, mesmo sem terem sofrido reveses que possam ser notados, enfraquecem-se, surpreendendo os vizinhos e espantando os próprios cidadãos. Cumpre que as leis também lhes proíbam o comércio: comerciantes muito conceituados fariam toda classe de monopólios. O comércio é a profissão das pessoas iguais; e, entre os Estados despóticos, os mais miseráveis são aqueles em que o príncipe é comerciante. As leis de Veneza proibiam aos nobres o comércio que lhes poderia proporcionar, mesmo honestamente, riquezas exorbitantes. As leis devem utilizar os meios mais eficazes a fim de que os nobres façam justiça ao povo. Se não estabeleceram um tribuno, é preciso que elas próprias o sejam. Todo tipo de asilo contra a execução das leis arruína a aristocracia e a tirania está próxima. Elas devem combater, em todas as épocas, o orgulho da dominação. É mister que haja, temporàriamente ou sempre, um magistrado que faça tremer os nobres como os éforos na Lacedemônia, e os inquisidores de Estado, magistraturas que não estão submetidas a quaisquer formalidades. Esse governo necessita de regulamentos violentos. Uma boca de pedra abre-se, em Veneza, para todo delator. Diríeis que é a da tirania. Na aristocracia, essas magistraturas tirânicas relacionam-se com a censura da democracia que, por sua natureza, não é menos independente. Com efeito, os censores não devem ser perseguidos pelas coisas que fizeram durante sua censura. É necessário infundir-lhes confiança e nunca desânimo. Os romanos eram admiráveis; podia-se reclamar de todos os magistrados as razões de seu procedimento, exceto aos censores. Na aristocracia, duas coisas são perniciosas; a pobreza extrema dos nobres e suas riquezas exorbitantes. Para evitar sua pobreza cumpre, sobretudo, obrigá-los a pagar, desde o início. Para moderar suas riquezas, disposições sábias e insensíveis são necessárias; não confiscos, nem leis agrárias ou abolição de dívidas, que ocasionam males infinitos. As leis devem abolir o direito de primogenitura entre os nobres, a fim de que, pela divisão contínua das sucessões, as fortunas permaneçam sempre iguais. De modo algum são necessárias substituições, retraits lignagers, morgadios, adoções. Todos os meios inventados para perpetuar a grandeza das famílias nos Estados monárquicos não poderiam ser utilizados na aristocracia. Quando as leis tiverem igualado as famílias, resta-lhes manter a união entre elas. As desavenças dos nobres devem ser ràpidamente resolvidas; sem isto, as contestações entre pessoas transformar-se-ão em contestações entre famílias. Árbitros podem obstar os processos ou impedi-l os de surgir. Enfim, não devem as leis favorecer as distinções que a vaidade desenvolve entre as famílias, sob pretexto de serem elas mais nobres ou mais antigas. Isto deve ser classificado como mesquinharias dos particulares. Basta uma vista d'olhos sobre a Lacedemônia. Ver-se-à como os éforos souberam mortificar as fraquezas dos reis, dos poderosos e do povo. CAPÍTULO IX Como as leis são relativas a seu princípio na monarquia Sendo a honra o princípio deste governo, as leis devem relacionar-se com ela. É necessário que atuem para sustentar esta Nobreza, cuja honra é, por assim dizer, a filha e a mãe. Elas devem torná-la hereditária, não por ser o limite entre o poder do príncipe e a fraqueza do povo, mas por ser o liame de ambos. As substituições, que conservam os bens no seio das famílias, serão utilíssimas nesse governo, apesar de não o serem em outros. Os retrait lignager restituirão às famílias nobres as terras que a prodigalidade de um parente tenha alienado. Tal como as pessoas, as terras nobres terão privilégios. Não se pode separar a dignidade do monarca da do reino; do mesmo modo, quase não se pode separar a dignidade do nobre da do seu feudo. Todas estas prerrogativas serão específicas da Nobreza e, de modo algum, passarão ao povo, a menos que se queira contrariar o princípio do governo, a menos que se queira diminuir a força da Nobreza e a do povo. As substituições constrangem o comércio; o retrait lignager provoca uma infinidade de processos necessários; e todos os fundos vendidos do reino permanecem, de certo modo, sem dono, pelo menos durante um ano, Prerrogativas associadas a feudos outorgam um poder repleto de responsabilidades para os que as suportam. São inconvenientes específicos à Nobreza, que desaparecem diante da utilidade geral que ela proporciona, mas quando estendidos ao povo todos os princípios são inutilmente abalados. Nas monarquias pode permitir-se legar a maior parte dos bens a um dos filhos, mas só nelas esta permissão é boa. É necessário que as leis favoreçam todo o comercio que a constituição desse governo pode conceder, a fim de que os súditos possam, sem perecerem, satisfazer as necessidades sempre renascentes do príncipe e de sua corte. É mister que coloquem certa ordem na maneira de arrecadar os tributos a fim de que não sejam mais pesados do que os próprios encargos. O peso dos encargos produz primeiro o trabalho; o trabalho, o esgotamento; o esgotamento, o espírito de preguiça. CAPÍTULO X Da presteza da execução na monarquia O governo monárquico tem uma grande vantagem sobre o republicano: sendo os negócios públicos conduzidos por um só, há mais presteza na execução. Mas, como esta poderia degenerar em rapidez, as leis aí introduzirão certa morosidade. Elas não devem somente favorecer a natureza de cada constituição, mas ainda remediar os abusos que poderiam resultar dessa mesma natureza. O Cardeal de Richelieu quer que se evitem, nas monarquias, os inconvenientes das companhias, que tudo dificultam. Ainda que esse homem não tivesse tido o despotismo no coração, tê-lo-ia na cabeça. Os corpos depositários das leis nunca obedecem melhor que quando se desenvolvem lentamente e quando trazem para os negócios do príncipe essa reflexão que quase não se pode esperar da falta de compreensão da corte com relação às leis do Estado, nem da precipitação de seus Conselhos. Que sucederia com a mais bela monarquia do mundo se os magistrados, por sua morosidade, lamentos e súplicas não obstassem o curso das próprias virtudes de seus reis, quando estes monarcas, consultando apenas suas grandes almas, quisessem recompensar, desmesuradamente, serviços prestados com coragem e fidelidade também desmesuradas? CAPÍTULO XI Da excelência do governo monárquico O governo monárquico tem uma grande vantagem sobre o despótico. Como é próprio de sua natureza existirem, sob a dependência do príncipe, várias ordens que se relacionam com a constituição, o Estado é mais estável, a constituição mais sólida, a pessoa dos que governam mais garantida. Cícero acredita que o estabelecimento dos tribunos de Roma foi a salvação da república. "De fato, diz ele, a força do povo que não tem chefe é mais terrível. Um chefe sente sua responsabilidade e reflete sobre isso; mas o povo, em sua impetuosidade, não conhece o perigo em que se lança." Pode aplicar-se essa reflexão a um Estado despótico, que é um povo sem tribunos; e a uma monarquia, em que o povo tem, de algum modo, tribunos. De fato, vê-se por toda parte que, nos movimentos do governo despótico, o povo, guiado por si próprio, leva sempre as coisas tão longe quanto podem ir: todas as desordens que comete são extremas, ao passo que, nas monarquias, as coisas são rarissimamente levadas ao excesso. Os chefes temem por si mesmos; têm medo de ser abandonados; os poderes intermediários dependentes não querem que o povo levante muito a cabeça. É raro que as ordens de Estado sejam inteiramente corrompidas. O príncipe depende dessas ordens e os sediciosos, que não têm nem vontade, nem esperança de derrubar o Estado, não podem, nem querem derrubar o príncipe. Nessas circunstâncias, pessoas prudentes e que dispõem de autoridade intervêm; refreiam-se os ânimos, concilia-se, corrige-se; as leis recuperam seu vigor e se fazem ouvir. Assim, todas as nossas histórias estão repletas de guerras civis sem revoluções; as dos Estados despóticos estão repletas de revoluções sem guerras civis. Os que têm escrito a história das guerras civis de alguns Estados e mesmo os que as têm fomentado provam muito bem como a autoridade que os príncipes deixam a certas ordens para o serviço deles deve ser-lhes pouco suspeita, pois, na própria confusão, eles apenas aspiravam às leis e a seu dever, e retardavam a fogosidade e a impetuosidade dos facciosos, mais do que poderiam servi-la. O Cardeal de Richelieu, pensando talvez que aviltara muito as ordens do Estado, recorreu, para sustentá-lo, às virtudes do príncipe e de seus ministros; e deles exigiu tais coisas que, na verdade, só um anjo poderia ter tanta solicitude, tanto saber, tanta segurança, tantos conhecimentos; e, quando muito, podemos nos vangloriar se daqui à dissolução das monarquias houver um príncipe e ministros semelhantes. Como os povos que vivem sob um bom regime são mais felizes que os que, sem lei e sem chefes, vagam nas florestas, também os monarcas que vivem sob as leis fundamentais de seu Estado são mais felizes que os príncipes despóticos, desprovidos de tudo que possa regular tanto seus próprios corações como os de seus povos. CAPÍTULO XII Continuação do mesmo assunto Que não se procure magnanimidade nos Estados despóticos; o príncipe de modo algum ofereceria uma grandeza que não possui. Nele não existe glória. É nas monarquias que se verá, em torno do príncipe, os súditos receberem sua influência; é ali que cada um, ocupando, por assim dizer, maior espaço, pode exercer essas virtudes que dão à alma, não independência, mas grandeza. CAPÍTULO XIII Ideia do despotismo Quando os selvagens da Luisiânia querem colher uma fruta, cortam a árvore em baixo e apanham-nas. Eis o governo despótico. CAPÍTULO XIV Como as leis são relativas ao princípio do governo despótico O governo despótico tem por princípio o medo, Mas para povos tímidos, ignorantes, decaídos, não são necessárias muitas leis. Tudo, ali, deve girar em torno de duas ou três ideias; as ideias novas não são, portanto, necessárias. Quando ensinais um animal, cuida i de não lhe substituir o dono, as lições e as andaduras; impressionai seu cérebro com dois ou três movimentos e nada mais. Quando o príncipe vive fechado, não pode sair desse estado de voluptuosidade sem afligir todos os que ali o retêm. Esses não podem tolerar que sua pessoa e seu poder passem a outras mãos. Portanto, raramente participa pessoalmente da guerra e quase não ousa fazê-lo através de seus lugares-tenente. Semelhante príncipe, acostumado a não encontrar, em seu palácio, resistência alguma, indigna-se com a que lhe é feita a mão armada; deixa-se, portanto, ordinàriamente, levar pela cólera ou pela vingança. Aliás, não pode ter ideia da verdadeira glória. As guerras devem, pois, fazer-se neste caso em todo seu furor natural e o direito das pessoas deve, no governo despótico, ser mais reduzido que alhures. Tal príncipe possui tantos defeitos que deveria temer expor publicamente sua estupidez natural. Esconde-se e o estado em que se encontra fica ignorado. Felizmente, os homens são de tal modo nesse país que necessitam apenas um nome que os governe. Estando Carlos XII em Bender e encontrando alguma resistência no senado da Suécia, escreveu que lhes enviaria uma de suas botas para governar. Esta bota teria comandado como um rei despótico. Se o príncipe está prisioneiro, é classificado como morto e outro sobe ao trono. Os tratados feitos pelo prisioneiro são nulos; seu sucessor não os ratificaria. Com efeito, como ele é a lei, o Estado e o príncipe, desde que deixa de ser príncipe, nada mais é, e, se não fosse dado como morto, o Estado estaria destruído. Uma das coisas que mais obrigou os turcos a fazer a paz em separado com Pedro I, foi o fato de os moscovitas dizerem ao vizir que havia, na Suécia, outro rei no trono. A conservação do Estado nada mais é do que a conservação do príncipe, ou antes, do palácio em que está encerrado. Tudo o que não ameaça diretamente este palácio ou a cidade capital absolutamente não impressiona os espíritos ignorantes, orgulhosos e prevenidos. E, quanto ao encadeamento dos acontecimentos, eles não podem segui-lo, prevê-l o e nem pensar nisso. A política, seus fundamentos e suas leis, devem ser limitadas e o governo político é tão simples como o civil. Tudo se reduz a conciliar o governo político e civil com o governo doméstico e os oficiais do Estado com os do serralho. Tal Estado estará em melhor situação quando puder considerar-se único no mundo, quando estiver cercado de desertos e separado dos povos, aos quais chamará de bárbaros. Não podendo confiar na milícia, será bom que destrua uma parte de si mesmo. Como o princípio do governo despótico é o medo, o objetivo é a tranquilidade; mas isto não é absolutamente uma paz: é o silêncio das cidades que o inimigo está prestes a ocupar. Não estando a força no Estado mas no exército que o fundou, seria necessário, para defender o Estado, conservar este exército. Porém ele é temível para o príncipe. Como, então, conciliar a segurança do Estado com a segurança da pessoa? Vede, peço-vos, com que expedientes o governo moscovita procura sair do despotismo que lhe é mais pesado do que aos seus próprios povos. Destituíram-se os grandes corpos de guarda, diminuíram-se as penas dos crimes; estabeleceram-se tribunais; começou-se a conhecer as leis; instruíram-se os povos. Mas há causas particulares que o reconduzirão, talvez, à infelicidade da qual queria escapar. Nesses Estados, a religião tem mais influência do que em qualquer outro; é um temor adicionado ao temor. Nos impérios maometanos, é da religião que os povos extraem, em parte, o extraordinário respeito que têm por seu príncipe. É a religião que corrige, um pouco, a constituição turca. Os súditos, que não estão ligados à glória e à grandeza do Estado pela honra, o estão pela força e pelo princípio da religião. De todos os governos despóticos não existe um que arruíne tanto a si próprio como aquele em que o príncipe declara-se proprietário de todos os bens fundiários e herdeiro de todos os seus súditos. Isso sempre ocasiona o abandono do cultivo das terras e se, demais, o príncipe é mercador, toda espécie de indústria arruína-se. Nesses Estados, nada se repara, nada se melhora. Constroem-se casas apenas para uma vida; não se planta árvore alguma; não se cavam fossos. Retira-se tudo da terra e nada se lhe restitui, tudo permanece abandonado e deserto. Pensais que as leis que anulam a propriedade das terras e a sucessão dos bens diminuirão a avareza e a cupidez dos poderosos? Não: elas exasperarão esta cupidez e esta avareza. Ser-se-á levado a cometer mil vexames porque não se acreditará ter de seu senão o ouro ou a prata que se poderá roubar ou esconder. Para que tudo não se perca é conveniente que a avidez do príncipe seja moderada por algum costume. Assim, na Turquia, o príncipe se contenta com tomar três por cento das heranças das pessoas do povo. Mas como o grão-senhor dá a maior parte das terras à sua milícia e delas dispõe a seu bel-prazer, como se apodera de todas as sucessões dos oficiais do império; como, quando um homem morre sem deixar filhos varões, ao grão-senhor pertence a propriedade, e como as filhas possuem apenas o usufruto, acontece que a maior parte dos bens do Estado são possuídos de maneira precária. Pela lei de Bantam, o rei adquire a sucessão e inclusive a mulher, os filhos e as casas. É-se obrigado, para iludir a disposição mais cruel desta lei, a casar as crianças aos oito, nove, ou dez anos, e algumas vezes mais jovens, a fim de que não sejam transformadas numa parte infeliz da sucessão do pai. Nos Estados em que não há leis fundamentais, a sucessão do império não poderia ser fixa. A coroa é eletiva pelo príncipe, em sua família ou fora dela. Em vão seria estabelecido que o primogênito sucederia; o príncipe sempre poderia escolher outro. O sucessor é declarado pelo próprio príncipe, por seus ministros ou por uma guerra civil. Assim, esse Estado possui uma razão a mais de dissolução do que uma monarquia. Tendo cada príncipe da família real igual capacidade para ser eleito, acontece que quem sobe ao trono manda, em primeiro lugar, estrangular seus irmãos, como na Turquia, ou manda cegá-los, como na Pérsia, ou torna-os loucos, como na Mongólia, ou, se não toma essas precauções, como no Marrocos, cada vaga do trono é seguida de atroz guerra civil. Pela constituição de Moscóvia, o czar pode escolher quem quiser para seu sucessor, em sua família ou fora dela. Tal sistema de sucessão acarreta mil revoluções e torna o trono tão oscilante quanto arbitrária a sucessão. Sendo a ordem de sucessão uma das coisas mais importantes de ser conhecida pelo povo, a melhor é a que impressiona mais os olhos, como o nascimento e certa ordem de nascimento. Uma disposição de tal tipo faz cessar as conspirações, reprime a ambição; não se cativa mais o espírito de um príncipe fraco e não se faz os moribundos falarem. Quando a sucessão é estabelecida por uma lei fundamental, apenas um príncipe herda, e seus irmãos não têm nenhum direito real ou aparente de disputar-lhe a coroa. Não se pode presumir ou fazer valer uma vontade particular do pai. Portanto, não é mais necessário prender ou mandar matar o irmão do rei, assim como qualquer outro súdito, seja quem for. Mas nos Estados despóticos em que os irmãos do príncipe são igualmente seus escravos e rivais, manda a prudência que se se garanta contra suas pessoas, sobretudo nos países maometanos, em que a religião considera a vitória ou o êxito como julgamento de Deus; de modo que ninguém ali é soberano de direito mas somente de fato. A ambição é bem mais exasperada nos Estados em que príncipes de sangue veem que, se não sobem ao trono, serão encarcerados ou levados à morte, do que entre nós, onde os príncipes de sangue gozam de uma situação que, se à ambição não é tão satisfatória, o é, talvez, aos desejos moderados. Os príncipes dos Estados despóticos sempre abusaram do casamento, Tomam geralmente várias mulheres, sobretudo na parte do mundo onde o despotismo está, por assim dizer, naturalizado, que é a Ásia. Têm tantos filhos que quase não podem ter afeição por eles, nem esses por seus irmãos. A família reinante assemelha-se ao Estado: é muito fraca e seu chefe muito forte; parece grande mas se reduz a nada. Artaxerxes mandou matar todos os seus filhos por terem conspirado contra ele. Não é verossímil que cinquenta filhos conspirem contra o pai e ainda menos que conspirem porque este não quis ceder sua concubina ao filho mais velho. É mais simples acreditar que aí exista alguma intriga desses serralhos do Oriente, desses lugares em que a astúcia, a malevolência, a intriga reinam no silêncio e se ocultam numa espessa noite; onde um velho príncipe, que cada dia se torna mais imbecil, é o primeiro prisioneiro do palácio. Depois de tudo que acabamos de dizer, pareceria que a natureza humana erguer-se-ia incessantemente contra o governo despótico. Mas apesar do amor dos homens pela liberdade, apesar de seu ódio contra a violência, a maioria dos homens está submetida a ela. Compreende-se isso fàcilmente. Para formar um governo moderado, é mister combinar os poderes, regulamentá-los, moderá-los e fazê-los agir; oferecer, por assim dizer, um lastro a um para colocá-lo em condição de resistir a outro; é uma obra-prima de legislação que o acaso raramente produz e que também raramente deixa-se à prudência fazer. Um governo despótico, pelo contrário, salta, por assim dizer, aos olhos; é uniforme em toda parte; como apenas paixões são necessárias para estabelecê-lo, todas as pessoas são úteis para isso. CAPÍTULO XV Continuação do mesmo assunto Nos climas quentes, onde reina geralmente o despotismo, as paixões revelam-se mais cedo, e mais cedo são também amortecidas; o espírito é aí mais desenvolvido; os perigos da dissipação dos bens são menores; há menos facilidades de se sobressair, menos comércio entre os jovens encerrados em suas casas: casam-se mais cedo; podem, portanto, tornar-se adultos mais cedo que nos climas da Europa, Na Turquia, a maioridade inicia-se aos quinze ano. Neste caso, a cessão dos bens não pode realizar-se. Num governo que ninguém tem fortuna assegurada, empresta-se mais à pessoa do que aos bens. Ela entra, naturalmente, nos governos moderados, e principalmente nas repúblicas, por causa da maior confiança que se deve ter na probidade dos cidadãos e da doçura que deve inspirar uma forma de governo em que cada um parece se ter dado. Se na república romana os legisladores tivessem estabelecido a cessão dos bens, não se teria caído em tantas sedições e discórdias civis, nem se teria experimentado o perigo dos males, nem os riscos dos remédios. A pobreza e a insegurança das fortunas, nos Estados despóticos, naturalizam a usura, aumentando cada um o preço de seu dinheiro à proporção do perigo que há em emprestá-lo. Portanto, a miséria vem de todas as partes nestes países infelizes: tudo aí é negado, até o recurso a empréstimos. Sucede daí que um negociante não poderia fazer grande comércio; ocupa-se apenas com o dia-a-dia; se comprasse muitas mercadorias, o lucro que obtivesse com sua venda não compensaria os juros que teria que pagar para sua compra, Assim, as leis que regulamentam o comércio quase não têm razão de ser: reduzem-se a simples vigilância. O governo não poderia ser injusto sem ter mãos que exerçam suas injustiças. Ora, é impossível que essas mãos não operem em seu próprio interesse. Portanto, é natural o peculato nos Estados despóticos. Sendo esse crime comum, os confiscos são inúteis. Com isso se consola o povo; o dinheiro que daí é retirado é um tributo considerável que o príncipe dificilmente cobraria dos súditos arruinados, Não há mesmo, nesses países, nenhuma família que queira conservá-lo. Nos Estados moderados tudo é diferente. As confiscações tornariam a propriedade dos bens incerta; espoliariam inocentes crianças; destruiriam uma família quando apenas bastaria punir um culpado. Nas repúblicas, ocasionariam o mal de suprimir a igualdade que lhes constitui a alma, privando um cidadão de suas necessidades materiais. Uma lei romana determina que se confisque apenas no caso de crime de lesa-majestade em primeiro grau. Muitas vezes seria prudente seguir o espírito desta lei, e limitar o confisco a certos crimes. Numa região onde um costume local dispôs dos bens de raiz, Bodin afirma corretamente que seria suficiente confiscar os bens adquiridos. CAPÍTULO XVI Da comunicação do poder No governo despótico, o poder passa integralmente às mãos daquele a quem é confiado. O vizir é o próprio déspota, e cada oficial particular é o vizir. No governo monárquico, aplica-se o poder menos imediatamente; outorgando-o, o monarca o modera. Faz tal distribuição de sua autoridade que só concede uma parte dela quando retém uma maior. Assim, nos Estados monárquicos, os governos particulares das cidades não são tão dependentes do governo da província, o qual depende ainda menos do príncipe; e os oficiais particulares dependem ainda menos do príncipe do que do general. Na maior parte dos Estados monárquicos, estabeleceu-se sàbiamente que os que dispõem de um comando um pouco amplo não sejam ligados a qualquer corpo de milícia; de sorte que, dispondo do comando apenas pela vontade particular do príncipe, podendo ser empregados ou não, estão, de algum modo, no serviço e, de outro, fora dele. Isso é incompatível com o governo despótico, pois, se os que atualmente não têm emprego, tivessem, pelo menos, prerrogativas e títulos, haveria no Estado, por si mesmo, grandes homens; fato que chocaria a natureza desse governo. Pois se o governador de uma cidade fosse independente do paxá, todos os dias seriam necessárias concessões mútuas para os acomodar, coisa absurda num governo despótico. E, além disso, o governador particular podendo não obedecer, como poderia o outro responder pela província sob seu governo? Nesse governo, a autoridade não pode ser posta em dúvida; a do magistrado mais subalterno não o é mais do que a do déspota. Nos países moderados, a lei é sábia em toda parte, conhecida em todos os lugares e mesmo os menores magistrados podem segui-la. Mas no despotismo, em que a lei é apenas a vontade do príncipe, quando este fosse sábio, como o magistrado poderia obedecer a uma vontade que desconhece? É preciso seguir a sua. Além disso, sendo a lei apenas a vontade do príncipe, podendo este querer apenas o que conhece, é muito necessário que exista uma infinidade de pessoas que queiram as mesmas coisas por ele e como ele. Enfim, sendo a lei a vontade momentânea do príncipe, é necessário que os que querem por ele, queiram subitamente como ele. CAPÍTULO XVII Dos presentes É costume, nos países despóticos, que só se dirija a quem está acima de si oferecendo-lhe um presente, inclusive aos reis. O imperador dos mongóis apenas recebe petições dos súditos que lhe tenham oferecido alguma coisa. Estes príncipes chegam mesmo a corromper seus próprios favores. Deve ser assim num governo em que ninguém é cidadão, num governo imbuído da ideia que o superior nada deve ao inferior, num governo em que os homens acreditem-se ligados apenas pelos castigos que uns infligem aos outros, num governo onde há poucos negócios, sendo rara a necessidade de se apresentar diante de um poderoso, fazer-lhe petições e, ainda menos, queixas. Numa república, os presentes são coisa odiosa, porque a virtude não tem necessidade deles. Numa monarquia, a honra é motivo mais forte que os presentes. Mas no Estado despótico, em que não existe honra nem virtude, pode-se, apenas, ser levado a agir pela esperança de facilidades de vida. Nas ideias da república, Platão queria que os que recebem presentes para cumprir seu dever fossem punidos com a morte. "Não se deve recebê-los", dizia ele, "nem pelas coisas boas, nem pelas más”. Era má a lei romana que permitia aos magistrados aceitarem pequenos presentes, conquanto não ultrapassassem cem escudos por ano. Aqueles a quem nada se dá, nada desejam; aqueles a quem se dá um pouco, logo desejam um pouco mais e, em seguida, muito. Aliás, é mais fácil convencer quem, nada devendo receber, recebe alguma coisa, do que quem recebe mais quando deveria receber menos, e que, por isso, sempre encontra pretextos, desculpas, motivos e razões plausíveis. CAPÍTULO XVIII Das recompensas que o soberano oferece Nos governos despóticos que, como dissemos, é-se apenas levado a agir pela esperança de facilidades de vida, o príncipe que recompensa possui apenas dinheiro para oferecer. Numa monarquia, onde apenas reina a honra, as distinções seriam as únicas recompensas oferecidas pelo príncipe, se as distinções que a honra estabelece não estivessem unidas a um luxo que, necessàriamente, cria necessidades. O príncipe recompensa, portanto, com honrarias que levam à fortuna. Porém, numa república em que a virtude reina, motivo suficiente em si mesmo, e que exclui todos os demais, o Estado só recompensa com testemunhos dessa virtude. É regra geral que, numa monarquia e numa república, as grandes recompensas são um sinal de sua decadência, pois provam que os príncipes estão corrompidos, que a ideia de honra, de um lado, não tem mais tanta força e que a qualidade do cidadão, de outro lado, enfraqueceu-se. Os piores imperadores romanos foram os que mais ofereceram recompensas. Por exemplo, Calígula, Claúdio, Nero, Otão, Vitélio, Cômodo, Heliogábalo e Caracala. Os melhores, como Augusto, Vespasiano, Antonino Pio, Marco Aurélio e Pertinax foram comedidos. Sob a direção dos bons imperadores, o Estado recuperava seus princípios: o tesouro da honra supria os demais. CAPÍTULO XIX Novas consequências dos princípios dos três governos Não posso resolver-me a terminar este livro sem efetuar, ainda, algumas aplicações de meus três princípios. PRIMEIRA QUESTÃO. Devem as leis forçar os cidadãos a aceitar empregos públicos? Respondo que o devem num governo republicano e não num monárquico. No primeiro, as magistraturas são testemunhos de virtude, depósitos que a pátria confia a um cidadão, que só deve viver, agir e pensar por ela; não pode, portanto, recusá-los. No segundo, as magistraturas são testemunhos de honrarias; ora, as singularidades das honrarias são tais, que se se compraz a aceitar algumas somente quando e da maneira como se quer. O falecido rei da Sardenha punia os que recusavam as dignidades e empregos de seu Estado; sem sabê-lo, seguia ideias republicanas. Sua maneira de governar, aliás, prova muito bem que essa não era sua intenção. SEGUNDA QUESTÃO. É boa máxima que um cidadão possa ser obrigado a aceitar, no exército, um posto inferior ao que ocupou. Entre os romanos, via-se frequentemente o capitão servir, no ano seguinte, sob as ordens de seu tenente. É que, nas repúblicas, a virtude exige que se faça ao Estado sacrifício contínuo de si mesmo e de suas repugnâncias. Mas nas monarquias, a honra - verdadeira ou falsa - não pode sofrer o que chamamos degradação. Nos governos despóticos, onde se abusa, igualmente, da honra, dos postos e das hierarquias, faz-se indiferentemente de um príncipe um criado e de um criado um príncipe. TERCEIRA QUESTÃO. Colocar-se-ão sobre a responsabilidade de uma mesma pessoa empregos civis e militares? É mister uni-los na república e separá-los na monarquia. Nas repúblicas, seria muito perigoso fazer da profissão das armas um estado particular, diferente do das funções civis; e, nas monarquias, não haveria menos perigo em outorgar as duas funções à mesma pessoa. Na república, não se tomam armas a não ser na qualidade de defensor das leis e da pátria; porque somos cidadãos é que, por algum tempo, fazemo-nos soldados. Se houvesse dois estados diferentes, far-se-ia sentir ao que, no exército, se acredita cidadão, que ele é apenas soldado. Nas monarquias, os militares têm apenas como finalidade a glória, ou, pelo menos, a honra ou a fortuna. Deve-se evitar completamente oferecer empregos civis a tais homens; cumpre, pelo contrário, que sejam contidos pelos magistrados civis e que as mesmas pessoas não tenham, ao mesmo tempo, a confiança do povo e força para dele abusar. Vede, numa nação em que a república se esconde sob a forma de monarquia, quanto se teme um estado particular de militares e como o guerreiro continua sempre cidadão ou mesmo magistrado, a fim de que suas qualidades sejam um penhor para a pátria e que ele nunca seja esquecido. Essa divisão das magistraturas em civis e militares, feita pelos romanos após a perda da república, não foi coisa arbitrária. Foi continuação da reforma da constituição de Roma; ela era da natureza do governo monárquico e o que só foi começado na época de Augusto, os imperadores seguintes foram obrigados a concluir, para moderar o governo militar. Assim, Procópio, concorrente de Valente ao império, nada disso sabia quando, dando a Hormisdas, príncipe de sangue real da Pérsia, a dignidade de pro cônsul, restitui o comando dos exércitos à magistratura que outrora o possuía, a menos que tivesse razões particulares. Um homem que aspira à soberania procura menos o que é útil ao Estado do que o que é útil à sua causa. QUARTA QUESTÃO. Convém que os cargos sejam venais? Não devem sê-lo nos Estados despóticos, onde é necessário que os súditos sejam colocados e substituídos instantaneamente pelo príncipe. Esta venalidade é boa nos Estados monárquicos, porque obriga a fazer, como um ofício de família, o que não se quereria empreender pela virtude, porque, a cada um, destina seu dever, e torna as ordens de Estado mais permanentes. Suidas diz corretamente que Anastácio fizera do império uma espécie de aristocracia, vendendo todas as magistraturas. Platão não pode admitir esta venalidade. "É", diz ele, "como se, num navio, tornássemos alguém piloto ou marinheiro a troco de dinheiro. Seria concebível para que a regra fosse má para qualquer outro emprego existente, e boa somente para conduzir uma república?" Mas Platão refere-se a uma república baseada na virtude e nós falamos de uma monarquia. Ora, numa monarquia em que, quando os cargos não se vendem através de um acerto de contas público, a indigência e a avidez dos cortesãos vendê-los-iam da mesma maneira, o acaso dará melhores súditos do que a escolha do príncipe. Enfim, a maneira de progredir pelas riquezas inspira e sustenta a indústria, coisa muito necessária nesta espécie do governo. QUINTA QUESTÃO. Em que tipo de governo são necessários censores? Eles são necessários numa república em que o princípio do governo é a virtude. Não são apenas os crimes que destroem a virtude, mas também as negligências, os erros, certa tibieza no amor à Pátria, exemplos perigosos, sementes de corrupção, tudo que não contraria as leis mas as elude; o que não as destrói mas as enfraquece: tudo isso deve ser corrigido pelos censores. Surpreendemo-nos com a punição desse areopagita, que matara um pardal que, perseguido por um gavião, refugiara-se em seu colo. Pasmamo-nos que o Areópago tenha mandado matar uma criança que furou os olhos de seu pássaro. Observe-se que, absolutamente, não se trata aqui de uma condenação por crime mas de um julgamento de costumes numa república baseada nos costumes. Nas monarquias não são necessários censores; elas são baseadas na honra e a natureza da honra é ter por censor todo o universo. Todo homem que falta com a honra é alvo das reprovações, até mesmo dos que não a têm. Nas monarquias, os censores seriam corrompidos por aqueles mesmos que deveriam corrigir. Não seriam úteis contra a corrupção numa monarquia, pois a corrupção de uma monarquia seria muito forte contra eles. Percebe-se fàcilmente que não são necessários censores nos governos despóticos. O exemplo da China parece derrogar esta regra, mas veremos no desenvolvimento dessa obra as razões específicas desta verificação. LIVRO SEXTO - Consequências dos princípios dos diversos governos em relação à simplicidade das leis civis e criminais, à forma dos julgamentos e ao estabelecimento das penas. CAPÍTULO I Da simplicidade das leis civis nos diversos governos O governo monárquico não comporta leis tão simples como o despótico. São necessários tribunais. Estes tribunais lavram as decisões que devem ser conservadas, aprendidas para que se julgue hoje como se julgou ontem e para que a propriedade e a vida dos cidadãos sejam asseguradas e garantidas como a própria constituição do Estado. Numa monarquia, a administração de uma justiça que não decide somente da vida e dos bens mas também da honra, exige investigações cuidadosas. O escrúpulo do juiz aumenta à medida que ele tem maior responsabilidade e julga sobre grandes interesses. Portanto, não nos devemos espantar ao encontrarmos nas leis desses Estados tantas regulamentações, restrições, extensões, que multiplicam os casos particulares e parecem fazer, da própria razão, uma arte. A diferença de posição social, de origem, de condição, estabelecida no governo monárquico, acarreta, muitas vezes, distinções na natureza dos bens; e leis relativas à constituição deste Estado podem aumentar o número dessas distinções. Assim, entre nós, os bens são próprios, adquiridos ou conquistados; dotais, parafernais; paternos ou maternos, móveis de vários tipos; livres, substituídos; de linhagem ou não; nobres em terras alodiais ou de origem plebeia; rendas latifundiárias ou constituídas em dinheiro. Cada espécie de bens está submetida a regulamentações específicas; cabe observá-las para delas dispor, o que suprime ainda mais a simplicidade. Em nossos governos, os feudos tornaram-se hereditários. Foi preciso que a nobreza possuísse determinados bens, quer dizer, que o feudo tivesse certa consistência, a fim de que o proprietário feudal estivesse em condição de servir o príncipe. Isso acarretou muitas variedades: por exemplo, existiram regiões onde os feudos não puderam ser repartidos entre os irmãos; em outras, os irmãos mais novos puderam dispor de um pouco mais para sua subsistência. O monarca, que conhece cada uma de suas províncias, pode estabelecer diversas leis ou submeter-se a diferentes costumes. Porém, o déspota nada conhece e por nada tem consideração; é-lhe necessário um procedimento geral; governa de um modo intransigente que é o mesmo em todos os lugares; tudo se aplaina sob seus pés. À medida que os julgamentos dos tribunais multiplicam-se nas monarquias, a jurisprudência encarrega-se das decisões que, algumas vezes, se contradizem, seja porque os juízes, que se sucedem, pensam diferentemente, seja porque os mesmos processos são ora bem, ora mal defendidos, ou, enfim, em consequência de uma infinidade de abusos que se insinuam em tudo que passa pelas mãos dos homens. É um mal necessário que o legislador corrige de quando em quando, como contrária até ao espírito dos governos moderados. Porque, quando se é obrigado a recorrer aos tribunais, é mister que isso decorra da natureza da constituição e não das contradições e incertezas das leis. Nos governos em que, necessàriamente, há distinções entre as pessoas, privilégios são necessários. Isto diminui ainda mais a simplicidade e cria mil exceções. Um dos privilégios menos pesados à sociedade e, sobretudo, a quem o confere, é o de pleitear perante um tribunal, de preferência a outro. Eis aí novas questões, isto é, saber perante qual tribunal deve se pleitear. Os povos dos Estados despóticos encontram-se em situação bem diferente. Não sei sobre o que o legislador poderia estatuir ou o magistrado julgar nessas regiões. Como as terras pertencem ao príncipe, há quase leis civis sobre a propriedade das terras. Do direito que o soberano tem de suceder resulta que também não há leis sobre as sucessões. A exclusividade dos negócios que exerce em certas regiões torna inútil toda espécie de leis sobre o comércio. Os casamentos que ai são contratados com escravas determinam que quase não existam leis civis sobre os dotes e direitos das mulheres. Resulta ainda dessa prodigiosa multidão de escravos quase não existirem pessoas que possuam vontade própria e que, consequentemente, possam responder por sua conduta perante um juiz. A maioria das ações morais, que são apenas vontade do pai, do marido, do senhor, são por estes regulamentados e não por intermédio de magistrados. Esquecia de dizer que o que chamamos honra, sendo mal conhecida nesses Estados, todas as questões a ela relacionadas, capítulo tão importante entre nós, neles não encontram lugar. O despotismo basta a si mesmo; tudo é vazio em torno dele. Destarte, quando os viajantes nos descrevem as regiões onde ele impera, raramente falam-nos de leis civis. Portanto, todas as possibilidades de disputa e de processo aí desaparecem. É o que, parcialmente, faz com que se maltrate tanto aos litigantes: a injustiça de sua demanda surge abertamente, não sendo escondida, diminuída ou protegida por uma infinidade de leis. CAPITULO II Da simplicidade das leis criminais nos diversos governos Incessantemente, ouve-se dizer que se deveria administrar a justiça por toda parte, como na Turquia. Entretanto, será que apenas o mais atrasado de todos os povos viu claro na coisa mais importante do mundo para os homens saberem? Se examinardes as formalidades da justiça em relação ao esforço que um cidadão tem que empregar para obter a restituição de seus bens, ou para obter satisfação por algum ultraje, indubitàvelmente encontrareis muitas delas. Se as considerardes na relação que têm com a liberdade e a segurança dos cidadãos, encontrareis, amiúde, muito poucas e vereis que os esforços, as despesas, as dilações, os próprios perigos da justiça, são o preço que cada cidadão paga por sua liberdade. Na Turquia, em que se atribui muito pouca atenção à fortuna, à vida, à honra dos súditos, terminam-se, prontamente, de uma maneira ou de outra, todas as disputas, A maneira de acabá-las é indiferente, desde que sejam terminadas. O paxá, logo informado, manda distribuir, a seu capricho, bastonadas nas plantas dos pés dos litigantes e os manda embora. Seria muito perigoso ter, ali, as paixões dos litigantes: elas supõem um ardente desejo de obter justiça, um ódio, uma ação no espírito, uma constância em perseguir. Tudo isso deve ser evitado num governo em que se deve ter o medo como único sentimento, e em que tudo conduz, repentinamente, e sem que se possa prever, a revoluções. Cada um deve saber que não é necessário que o magistrado ouça falar dele, e que apenas conserva sua segurança por sua obscuridade. Mas, nos Estados moderados, onde a cabeça do mais humilde cidadão é considerada, não se lhe retiram a honra e os bens senão após um longo exame, não se lhe tira a vida senão quando a própria Pátria o ataca e ela só ataca quando lhe possibilita todos os meios de defesa. Assim, quando um homem se torna mais absoluto, imagina, antes de mais nada, simplificar as leis. Começa-se, nesse Estado, a atribuir mais importância aos inconvenientes particulares do que à liberdade dos súditos, para os quais não se concede qualquer importância. Vê-se que, nas repúblicas, são necessárias pelo menos tantas formalidades quanto nas monarquias. Num e noutro governo, elas aumentam em razão da importância que se atribui à honra, à fortuna, à vida e à liberdade dos cidadãos. Todos os homens são iguais no governo republicano; são também iguais no governo despótico: no primeiro, por serem tudo; no segundo, por serem nada. CAPÍTULO III Em que governos e em que casos se deve julgar segundo os termos precisos da lei Quanto mais o governo se aproxima da república, tanto mais rígida se torna a maneira de julgar. Era um vício da república da Lacedemônia o fato de os éforos julgarem arbitràriamente sem que houvessem leis para orientá-los, Em Roma, os primeiros cônsules julgaram como os éforos: sentiram-se os inconvenientes e fizeram-se leis exatas. Nos Estados despóticos, não existe lei: a regra é o próprio juiz. Nos Estados monárquicos, existe uma lei e, onde esta é exata, o juiz a observa; onde não existe, ele procura-lhe o espírito. Nos governos republicanos é da natureza da constituição que os juízes observem literalmente a lei. Não existe um cidadão contra o qual se possa interpretar uma lei, quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida. Em Roma, os juízes apenas decidiam se o acusado era culpado de certo crime e a pena encontrava-se na lei, como percebemos em diversas leis que foram feitas. Da mesma maneira, na Inglaterra, os jurados decidem se o acusado é culpado ou não do fato que o trouxe perante eles; se é declarado culpado, o juiz pronuncia a pena que a lei inflige para esse fato e, para isto, bastam-lhe olhos. CAPÍTULO IV Da maneira de formar os julgamentos Disso resultam as diferentes maneiras de formular a sentença. Nas monarquias, os juízes adotam a maneira dos árbitros; deliberam em conjunto, comunicam seus pensamentos, conciliam-se; modificam sua opinião para torná-la conforme a de outro; os pareceres menos numerosos são reduzidos aos dois maiores. Isso não é da natureza da república. Em Roma e nas cidades gregas, os juízes não se comunicavam entre si; cada qual dava seu voto por uma dessas três maneiras: absolvo, condeno, não me parece claro: é que o povo julgava ou esperava-se que o fizesse. Mas o povo não é jurisconsulto; todas essas modificações e moderações de árbitros não são para ele; é necessário apresentar-se-lhe um só objeto, um e um só fato, e que ele precise apenas decidir se deve condenar, absolver ou procrastinar o julgamento. Os romanos, a exemplo dos gregos, introduziram fórmulas de ação e estabeleceram a necessidade de conduzir cada demanda pela ação que lhe era própria. Isto era necessário em consequência da sua maneira de julgar: cumpria fixar o estado da questão, para que o povo o tivesse sempre diante dos olhos. De outro modo, no curso de um grande litígio, o estado da questão transformar-se-ia continuamente e não seria mais reconhecido. Decorria daí que os juízes, entre os romanos, só aceitavam uma demanda específica, sem nada aumentar, diminuir ou modificar. Mas os pretores imaginaram outras fórmulas de ações que se chamou de boa-fé, em que a maneira de pronunciar estava mais à disposição do juiz. Isso estava mais de acordo com o espírito da monarquia. Por isso os jurisconsultos franceses dizem: Em França, todas as ações são de boa-fé. CAPÍTULO V Em que governos pode o soberano ser juiz Maquiavel atribui a perda da liberdade de Florença ao fato de o povo não julgar em corpo, como em Roma, dos crimes de lesa-majestade cometidos contra ele. Para isso havia oito juízes estabelecidos: Mas, diz Maquiavel, poucos são corrompidos por pouco. Adotaria de bom grado a máxima desse grande homem, mas como neste caso o interesse político força, por assim dizer, o interesse civil (porque é sempre um inconveniente que o próprio povo julgue suas ofensas) cumpre, para remediar isso, que as leis provejam, tanto quanto possam, a segurança dos cidadãos. Com esse espírito, os legisladores de Roma fizeram duas coisas: permitiram aos acusados exilarem-se antes do julgamento e determinaram que os bens dos exilados fossem consagrados para que o povo não tivesse o confisco. Ver-se-ão, no livro XI, as demais limitações que foram impostas ao poder que o povo tinha de julgar. Sólon soube muito bem prevenir o abuso que o povo poderia fazer de seu poder nos julgamentos de crimes: quis que o areópago revisse o processo, pois se este acreditava que o acusado havia sido injustamente absolvido, acusava-o novamente diante do povo; se acreditava que o acusado havia sido injustamente condenado suspendia a execução e o fazia rejulgar a questão; lei admirável, que submetia o povo à censura da magistratura que mais respeitava, e à sua própria. Será útil retardar um pouco o processo em tais casos, sobretudo quando o acusado estiver preso, a fim de que o povo possa acalmar-se e julgar com sangue frio. Nos Estados despóticos, o próprio príncipe pode julgar. Não o pode nas monarquias: a constituição seria destruída, os poderes intermediários dependentes, aniquilados: ver-se-ia cessarem todas as formalidades dos julgamentos; o medo apossar-se-ia de todos os espíritos; ver-se-ia a palidez em todas as faces; não mais haveria confiança, honra, amor, segurança, monarquia. Eis aqui outras reflexões. Nos Estados monárquicos, o príncipe é a parte que acusa réus e os pune ou os absolve; se ele próprio julgasse, seria, concomitantemente, juiz e parte. Nestes mesmos Estados, o príncipe frequentemente possui os confiscos: se julgasse os crimes, seria, ainda, juiz e parte. Além disso, perderia o atributo mais nobre de sua soberania que é de conceder graça; seria insensato que fizesse e desfizesse seus julgamentos; não gostaria de estar em contradição consigo mesmo. Além de que isso confundiria todas as ideias, não se saberia se um homem seria absolvido ou se receberia sua graça. Quando Luís XIII quis ser juiz no processo do Duque de la Valette e com esta intenção chamou ao seu gabinete alguns oficiais do parlamento e alguns conselheiros do Estado, tendo o rei os forçado a opinar sobre o decreto de prisão, o presidente de Belliêvre declarou: "Que via neste caso uma coisa estranha, um príncipe opinar no processo de um de seus súditos; que aos reis apenas as graças eram reservadas e que eles remetiam as condenações para seus oficiais. E Vossa Majestade desejaria ver, no banco dos réus diante de si, um homem que, por seu julgamento, em uma hora seria levado à morte? Que a face do príncipe, que traz as graças, não pode sustentar isso; que apenas seu olhar suspenderia os interditos das igrejas; que apenas se deveria sair contente da presença do príncipe". Quando se julgou dos fundamentos da questão, o mesmo presidente disse no seu parecer: "Este é um julgamento sem exemplo, até mesmo contra todos os exemplos do passado até hoje, que um rei de França na qualidade de juiz e por seu voto tenha condenado um gentil-homem à morte”. Os julgamentos proferidos pelo príncipe seriam uma fonte inesgotável de injustiças e abusos; os cortesãos, com sua impertinência, extorquiriam seus julgamentos. Alguns imperadores romanos tiveram a fúria de julgar; reinado algum alarmou tanto o universo por suas injustiças. "Cláudio, diz Tácito, tendo tomado a seu cargo o julgamento dos negócios públicos e funções dos magistrados, permitiu toda sorte de rapinas." Por isso Nero, assumindo a direção do império depois de Cláudio e querendo apaziguar os espíritos, declarou: "Que evitaria ser o juiz de todos os casos, para que acusadores e acusados, nos muros dos palácios, não fossem expostos ao iníquo poder de alguns libertos". "No reinado de Arcádio, narra Zósimo; a nação dos caluniadores expandiu-se, envolveu a corte e a infectou. Quando um homem morria, supunha-se que não tivesse deixado filhos; seus bens eram dados por um rescrito. Pois, sendo o príncipe estranhamente estúpido e a imperatriz excessivamente empreendedora, ela favorecia a avareza insaciável de seus domésticos e confidentes; de maneira que para as pessoas moderadas nada havia de mais desejável do que a morte”. "Havia outrora, conta Procópio, muito poucas pessoas na corte; mas, na época de Justiniano, como os juízes não mais possuíssem liberdade de administrar justiça, seus tribunais permaneciam desertos, enquanto o palácio do príncipe ressoava com os clamores das partes que aí solicitavam seus casos." Todos sabem como aí se vendiam os julgamentos e, inclusive, leis. As leis são os olhos do príncipe; vê por elas o que, sem elas, não poderia ver. Quer ele assumir as funções dos tribunais? Com isso trabalha não para si, mas para seus sedutores, contra si mesmo. CAPÍTULO VI De como, na monarquia, os ministros não devem julgar. Nas monarquias, é ainda um grande inconveniente que os próprios ministros do príncipe julguem os casos contenciosos. Ainda hoje vemos Estados, onde há inúmeros juízes para decidir os casos fiscais onde os ministros - quem o acreditaria! - ainda querem julgá-los, As reflexões jorram em borbotões: farei apenas esta. Há, pela natureza das coisas, uma espécie de contradição entre o Conselho do monarca e seus tribunais. O Conselho dos reis deve ser composto de poucas pessoas e os tribunais de judicatura exigem muitas. A razão disso é que, no primeiro, se deve receber os casos com certa paixão e segui-las da mesma maneira, o que quase não se pode pretender de quatro ou cinco homens que disso fazem seu ofício. Requerem-se, pelo contrário, tribunais de judicatura de sangue frio para o qual todas as demandas sejam, de alguma maneira, indiferentes. CAPÍTULO VII Do magistrado único Tal magistrado só pode existir no governo despótico. Vê-se, na história romana, a que ponto um único juiz pode abusar de seu poder. Como não teria Ápio, em seu tribunal, desprezado as leis, já que violou mesmo as que fez? Tito Lívio informa-nos sobre a iníqua distinção do decênviro. Ele tinha subornado um homem que, diante dele, reclamava Virgínia como escrava; os pais de Virgínia lhe solicitaram que, em virtude de sua lei, ela lhes fosse confiada até o julgamento definitivo. Declarou ele que sua lei apenas fora feita em favor do pai e que, estando Virgínio ausente, não poderia ter aplicação. CAPÍTULO VIII Das acusações nos diversos governos Em Roma, permitia- se a um cidadão acusar outro. Isto era estabelecido segundo o espírito da república, em que cada cidadão deveria ter um zelo ilimitado pelo bem público, em que cada cidadão é reputado como tendo todos os direitos da pátria nas mãos. Cumpriram-se, na época dos imperadores, as máximas da república e, a princípio, viu-se surgir um gênero de homens funestos, uma turba de delatores. Quem quer que tivesse muitos vícios e talentos, uma alma vil e espírito ambicioso, procurava um criminoso cuja condenação pudesse agradar ao príncipe: era o caminho para as honrarias e a fortuna, coisa que absolutamente não vemos entre nós. Temos atualmente uma lei admirável: a que determina que o príncipe, estabelecido para fazer executar as leis, designe um representante? Em cada tribunal, para processar, em seu nome, todos os crimes. Assim, a função dos delatores é desconhecida entre nós e, se este vingador público fosse suspeito de abusar de seu ministério, obrigá-lo-iam a nomear seu denunciador. Nas leis de Platão, os que negligenciam de advertir os magistrados ou de prestar-lhes auxílio, devem ser punidos. Hoje, isso não seria conveniente. A parte pública vela por seus cidadãos; ela atua e eles estão tranquilos. CAPÍTULO IX Da severidade das penas nos diversos governos A severidade das penas convém melhor ao governo despótico, cujo princípio é o terror, do que à monarquia ou à república, que têm por mola a honra e a virtude. Nos Estados moderados, o amor à pátria, a vergonha e o receio da censura, são motivos coercitivos, que podem deter muitos crimes. O maior castigo para uma má ação será o reconhecimento dessa. Nos Estados moderados, portanto, as leis corrigirão mais fàcilmente e não necessitarão tanta energia. Nesses Estados, um bom legislador encarregar-se-á menos de punir os crimes do que de preveni-los; aplicar-se-à mais a fortalecer os costumes do que em infligir suplícios. É uma perpétua observação dos autores chineses que quanto mais se via aumentar os suplícios em seu império, mais próxima estava a revolução. É que aumentavam-se os suplícios à medida que os costumes desapareciam. Seria fácil provar que, em todos ou quase todos os Estados da Europa, os castigos diminuíram ou aumentaram à medida que se aproximou ou se afastou da liberdade. Nos países despóticos é-se tão infeliz, que se teme a morte mais do que se lastima a perda da vida; aí os suplícios devem ser, portanto, mais rigorosos. Nos Estados moderados, teme-se mais perder a vida do que se receia a morte em si mesma; os suplícios que simplesmente tiram a vida são aí, portanto, suficientes. Os homens extremamente felizes e os extremamente infelizes tornam-se igualmente insensíveis: atestam-nos os monges e os conquistadores. Apenas a mediocridade e a mistura da boa e má sorte produzem a doçura e a piedade. O que particularmente se vê nos homens, se encontra nas diversas nações. Entre os povos selvagens que levam uma vida muito dura e entre os povos dos governos despóticos em que há apenas um homem exorbitantemente favorecido pela fortuna, enquanto os demais são ultrajados, é-se igualmente cruel. A brandura reina nos governos moderados. Quando nas histórias encontramos exemplos da atroz justiça dos sultões, sentimos os males da natureza humana com uma espécie de amargura. Nos Estados moderados, para um bom legislador, tudo pode servir para constituir castigos. Não é extraordinário que em Esparta um dos castigos principais fosse não poder emprestar a esposa a outro, nem receber a do outro e nunca permanecer em sua casa a não ser com virgens? Numa palavra, tudo que a lei chama castigo, é efetivamente castigo. CAPÍTULO X Das antigas leis francesas É precisamente nas antigas leis francesas que se encontra o espírito da monarquia. Nos casos relacionados a penas pecuniárias, os não nobres são menos punidos que os nobres. Nos casos de crimes, acontece justamente o contrário: o nobre perde a honra e é levado diante de um tribunal, enquanto o vilão, que não tem honra, é punido em seu corpo. CAPÍTULO XI De como, quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas O povo romano tinha probidade. Esta probidade possuía tanta força que muitas vezes bastava o legislador indicar o bem, para que este fosse seguido. Parecia que, em vez de ordenanças, bastavam conselhos. Quase todos os castigos prescritos pelas leis régias e pela das Doze Tábuas foram abolidos na república, quer em consequência da lei Valéria, quer em consequência da lei pórcia. Não se notou que por isso a república ficasse mal regulamentada e que a ordem tivesse sido prejudicada. Esta lei Valéria, proibindo aos magistrados toda violência contra um cidadão que tivesse apelado ao povo, somente afligia a quem a contraviesse, com a pena de ser reputado perverso. CAPÍTULO XII Do poder das penas A experiência tem mostrado que nos países onde as penas são leves, o espírito do cidadão é atingido por elas como o é alhures pelas leis severas. Quando algum inconveniente se faz sentir num Estado, um governo violento quer corrigi-lo subitamente e, em vez de procurar executar as antigas leis, estabelece-se uma pena cruel que detém o mal imediatamente. Porém desgastam-se as bases do governo: a imaginação acostuma-se com esta grande pena como se tinha acostumado com a menor e, como diminui o temor por esta, logo é-se forçado a utilizar a outra para todos os casos. Os assaltos nas estradas eram comuns em alguns Estados; quiseram terminá-los; inventaram o suplício da roda que os paralisou durante algum tempo. Mas, depois disto, os assaltos nas estradas continuaram tal como antes. A deserção foi em nossos dias muito frequente; estabeleceu-se a pena de morte contra os desertores mas ela não diminuiu. A explicação é muito simples: um soldado acostumado diàriamente a expor sua vida, despreza ou gaba-se de desprezar o perigo. Mas ele foi diàriamente educado para temer a desonra: bastava, portanto, estabelecer uma pena que o estigmatizasse durante toda a vida. Pretenderam aumentar a pena mas, na realidade, diminuíram-na. Os homens não precisam, absolutamente, ser levados pelos caminhos extremos; deve-se procurar os meios que a natureza nos oferece para os conduzir. Que se examine a causa dos relaxamentos: ver-se-á que eles se originam da impunidade dos crimes e não da moderação das penas. Imitemos a Natureza que deu aos homens a vergonha como seu flagelo e a infâmia de sofrê-la como o maior castigo. Se há países em que a honra não é uma continuação do suplício, isto se deve à tirania que infligiu os mesmos castigos aos celerados e às pessoas de bem. E, se encontrardes outros países em que apenas suplícios cruéis contêm os homens, considerai que isto é, em grande parte, devido à violência do governo que utilizou esses suplícios para punir pequenas faltas. Amiúde um legislador que quer corrigir um mal pensa apenas nesta correção; seus olhos estão abertos para este objetivo e fechados para os inconvenientes. Quando o mal for corrigido, repara-se apenas na severidade do legislador mas subsiste um vício no Estado produzido por esta severidade: os espíritos estão corrompidos, acostumados ao despotismo. Tendo Lisandro sido vitorioso contra os atenienses, foram julgados os prisioneiros; os atenienses foram acusados de ter lançado ao mar todos os cativos de duas galeras e resolveu-se, em plena assembleia, decepar o punho de todos os prisioneiros que capturassem. Foram todos degolados, exceto Adimanto que se opusera a este decreto. Antes de mandar matá-lo, Lisandro exprobrou Filocles de ter depravado os espíritos e ter dado lições de crueldade a toda a Grécia. "Tendo os argienses, conta Plutarco, mandado matar mil e quinhentos de seus cidadãos, os atenienses fizeram sacrifícios de expiação, a fim de que os deuses desviassem do coração dos atenienses tão cruel pensamento”. Há dois gêneros de corrupção: um quando o povo não observa as leis e outro quando é corrompido por elas; mal incurável porque reside no próprio remédio. CAPÍTULO XIII Impotência das leis japonesas As penas excessivas podem corromper o próprio despotismo. Vejamos o Japão. Nesse país pune-se com a morte quase todos os crimes, pois a desobediência a um imperador tão poderoso, como o do Japão, é um crime horrível. Não se trata de corrigir o culpado mas de vingar o príncipe. Estas ideias são extraídas da servidão e provêm sobretudo de que, sendo o imperador proprietário de todos os bens, todos os crimes atingem diretamente seus interesses. Punem-se com a morte todas as mentiras pronunciadas diante dos magistrados, coisa contrária à defesa natural. O que não tem aparência de crime é severamente punido: por exemplo, um homem que arrisca dinheiro no jogo é punido com a morte. É verdade que o singular caráter desse povo obstinado, caprichoso, disposto, extravagante, e que arrosta todos os perigos e todos os infortúnios, parece, à primeira vista, absolver seus legisladores da atrocidade das leis. Porém, pessoas que naturalmente desprezam a morte e que frequentemente rasgam o ventre pelo capricho mais insignificante serão corrigidas ou constrangidas pela visão contínua dos suplícios? Será que não se familiarizam com eles? A respeito da educação dos japoneses as Relações informam que é necessário tratar as crianças com doçura pois elas se tornam obstinadas diante dos castigos, que os escravos não devem ser tratados com demasiada rudeza, pois eles logo se preparam para resistir. Pelo espírito que deve reinar no governo doméstico, não se teria podido julgar o que existiria no governo político e civil? Um legislador arguto teria procurado congraçar os espíritos através de uma moderação justa das penas e das recompensas, de máximas de filosofia, moral e religião, adequadas a esses caracteres, pela aplicação justa das regras da honra, pelo suplício da vergonha, pelo gozo de uma felicidade duradoura e de uma doce tranquilidade. Mas se ele tivesse temido que os espíritos acostumados a serem refreados unicamente através de uma pena cruel não pudessem mais sê-lo por uma mais suave, teria agido de maneira surda e insensível; teria, nos casos particularmente mais perdoáveis, moderado a pena do crime, até que pudesse chegar a modificá-la em todos os casos. Mas o despotismo não conhece tais impulsos e não procura tais caminhos. Pode abusar de si mas isto é a única coisa que pode fazer. No Japão, fez um esforço e excedeu a si próprio em crueldade. As almas, por toda parte espavoridas e tornadas mais atrozes, apenas podem ser orientadas por uma atrocidade ainda maior. Eis a origem, eis o espírito das leis do Japão. Entretanto, possuem mais furor que força. Conseguiram destruir o cristianismo mas seus esforços tão inauditos confirmam sua impotência. Quiseram impor uma severa disciplina e sua fraqueza revelou-se ainda mais. É importante ler a relação da entrevista do imperador e do daíro em Meaco. Foi incrível o número dos que foram sufocados ou mortos por vagabundos; raptaram moças e rapazes que eram reencontrados, todos os dias, expostos em lugares públicos, em horas impróprias, inteiramente nus, cosidos em sacos de pano, a fim de que não descobrissem os lugares por onde tinham passado; roubava-se o que bem se pretendia; para desmontar os cavaleiros, abriam-se ventres de cavalos; tombaram-se carruagens para despojar as damas. Os holandeses, a quem disseram que não podiam passar a noite em tablados sem que fossem assassinados, deles desceram etc. Passarei ràpidamente a outro fato. O imperador, entregue a prazeres infames, não se casava: corria o risco de morrer sem sucessor. O dairo enviou-lhe duas moças belíssimas: desposou uma em sinal de respeito mas não teve nenhuma relação com ela. Sua ama mandou buscar as mulheres mais belas do império: tudo era inútil; a filha de um armeiro impressionou seu gosto: decidiu-se, e dela teve um filho. As damas da corte sufocaram a criança, indignadas por terem sido preteridas por uma pessoa de tão baixa condição social. Este crime não foi revelado ao imperador, pois este teria feito verter uma torrente de sangue. Portanto, a atrocidade das leis impede sua execução. Quando a lei é desmedida, frequentemente se é obrigado a optar pela impunidade. CAPÍTULO XIV Do espírito do senado de Roma No consulado de Acílio Glábrio e de Pisão, para acabar com as conjurações, fez-se a lei Acília. Dion afirma que o senado obrigou os cônsules a propô-la, pois o tribuno C. Cornélio tinha resolvido estabelecer penas terríveis contra este crime, para o qual o povo era fortemente impelido. O senado acreditava que as penas desmedidas lançariam o terror nos espíritos mas teriam o efeito de não se encontrar mais ninguém para acusar nem para condenar, ao passo que, propondo penas leves, apareceriam juízes e acusadores. CAPÍTULO XV Das leis romanas em relação às penas Sinto-me seguro em minhas máximas quando me ocupo dos romanos e creio que os castigos dependem da natureza do governo quando vejo esse grande povo modificar, a esse respeito, as leis civis, à medida que alterava as leis políticas. Foram muito severas as leis reais feitas para um povo composto de fugitivos, de escravos e de ladrões. O espírito da república requeria que os decênviros não inserissem estas leis nas suas Doze Tábuas. Porém, pessoas que aspiravam à tirania não possuíam a preocupação de seguir o espírito da república. Tito Lívio diz, referindo- se ao suplício de Mécio Sufécio, ditador de Alba, condenado por Túlio Hostílio a ser arrastado por dois carros, que esse foi o primeiro e último suplício em que se testemunha uma perda de respeito pela humanidade. Ele se engana: as Leis das Doze Tábuas estão repletas de disposições muito cruéis. A pena capital pronunciada contra os autores de libelos e os poetas é a que melhor revela o propósito dos decênviros. Isto quase não é próprio do espírito da república, em que o povo gosta de ver os poderosos humilhados. Mas as pessoas que queriam destruir a liberdade temiam os escritos que podiam reanimar o espírito da liberdade. Após a exclusão dos decênviros, quase todas as leis que tinham estabelecido as penas foram revogadas. Não foram ab-rogadas expressamente, mas elas não tiveram aplicação, pois a lei Pórcia proibiu a condenação à morte de um cidadão romano. Eis aí a época em que se pode aplicar o que Tito Lívio disse dos romanos: nunca povo algum amou mais a moderação das penas. Acrescentando-se à suavidade das penas o direito que o acusado possuía de refugiar-se antes do julgamento, ver-se-à claramente que os romanos seguiram o espírito que eu disse ser natural à república. Sila, que confundiu a tirania, a anarquia e a liberdade, foi o responsável pelas leis cornelianas. Parecia que seus regulamentos só eram feitos para estabelecer crimes. Assim, qualificando uma infinidade de ações como assassínios, encontrou por toda parte assassinos. E, por uma prática logo imitada, preparou armadilhas, semeou espinhos, abriu abismos no caminho de todos os cidadãos. Quase todas as leis de Sila só continham a interdição da água e do fogo. A isso César acrescentou o confisco dos bens, pois os ricos, conservando no exílio seu patrimônio, eram mais audaciosos para cometer crimes. Tendo os imperadores estabelecido um governo militar, logo perceberam que este era menos terrível para seus súditos do que para eles. Assim, procuraram moderá-lo. Julgaram que as dignidades e o respeito que antes gozavam eram necessários. Aproximaram-se um pouco da monarquia e dividiram as penas em três classes: as que se relacionavam com as principais personagens do Estado e que eram assaz suaves; as que eram infligidas às pessoas de categoria inferior e que eram mais severas; finalmente, as que diziam respeito às pessoas de baixa condição social, que foram as penas mais rigorosas. O feroz e insensato Maximino irritou, por assim dizer, o governo militar, que ele deveria ter acalmado. O senado era informado, diz Capitolino, de que uns tinham sido crucificados, outros lançados às feras, ou embrulhados em peles de animais recentemente mortos, sem nenhuma consideração por suas dignidades. Ele parecia querer exercer a disciplina militar do mesmo modo como pretendia administrar os negócios civis. Encontrar-se-á nas Considerações sobre a Grandeza dos Romanos e sua Decadência, como Constantino transformou o despotismo militar num despotismo militar e civil, aproximando-se da monarquia. Pode-se acompanhar as diversas revoluções desse Estado e ver como se passou do rigor à indolência e da indolência à impunidade. CAPÍTULO XVI Da justa proporção das penas com o crime É essencial que as penas estejam harmoniosamente relacionadas entre si, pois é mais importante evitar antes um grande crime do que um menor, aquilo que ataca a sociedade antes daquilo que a prejudica menos. "Um impostor, que se apresentara como Constantino Ducas, suscitou grande sublevação em Constantinopla. Foi preso e condenado ao açoite; mas, como acusasse pessoas importantes, foi condenado a ser queimado como caluniador." É singular assim que se tivessem colocado em proporção as penas entre o crime de lesa-majestade e o de calúnia. Este fato nos relembra uma frase de Carlos II, rei da Inglaterra. Viu, ao passar, um homem no pelourinho e perguntou por que ele estava lá. "Sire", responderam-lhe, "é porque ele lançou alguns libelos contra vossos ministros." "Grande tolo!" retorquiu o rei, "porque não os lançou contra mim? Nada lhe teria acontecido”. "Setenta pessoas conspiraram contra o Imperador Basílio, que determinou que elas fossem açoitadas; queimaram-lhes os cabelos e o pelo. Tendo um cervo lhe prendido o cinto com sua galharia, alguém do séquito tomou da espada, cortou o cinto e o libertou. O imperador mandou decepar-lhe a cabeça, pois, como explicou, usara da espada contra ele." Quem poderia pensar que no governo do mesmo príncipe estes dois julgamentos pudessem ser proferidos? É, entre nós, um grande erro aplicar o mesmo castigo ao que assalta estradas e ao que rouba e assassina. É evidente, para a segurança pública, que se deveria estabelecer alguma diferença na pena. Na China, os ladrões cruéis são esquartejados, os outros não; essa diferença faz com que se roube mas que não se assassine. Na Moscóvia, onde a pena para ladrões e assassinos é a mesma, sempre se assassina. Os mortos, dizem, nada revelam. Quando não há diferença na pena, é necessário colocá-la na esperança do perdão. Na Inglaterra, não se assassina porque os ladrões podem esperar ser transportados para as colônias, mas os assassinos não. Outro grande apoio para os governos moderados são as cartas de perdão. Esse poder que o príncipe tem de perdoar, executado com sabedoria, pode ter efeitos admiráveis. O princípio do governo despótico, que não perdoa e não perdoará nunca, priva-o destas vantagens. CAPÍTULO XVII Da tortura ou da questão contra os criminosos Já que os homens são perversos, a lei é obrigada a supô-los melhores do que são. Assim, o depoimento de duas testemunhas é suficiente para a punição de todos os crimes. A lei crê nelas como se falassem pela boca da verdade. Julga-se, deste modo, que toda criança concebida durante o casamento é legítima. A lei confia na mãe como se ela fosse a própria pudicícia. Mas a questão contra os criminosos não se inclui em casos extremos como esse. Vemos atualmente uma nação muito civilizada rejeitá-la sem qualquer inconveniente. Portanto, ela não é naturalmente necessária, Tantas pessoas notáveis e tantos gênios escreveram contra esta prática que não ouso falar depois deles. Ia dizer que elas poderiam convir aos governos despóticos, onde tudo o que o medo inspira participa dos fundamentos do governo. Ia dizer que os escravos, entre os gregos e os romanos... Mas ouço a voz da natureza que grita contra mim. CAPÍTULO XVIII Das penas pecuniárias e das penas corporais Os germanos, nossos antepassados, apenas admitiam castigos pecuniários. Esses homens belicosos e livres consideravam que seu sangue apenas podia ser vertido em combate. Inversamente, os japoneses rejeitavam tais espécies de castigos sob pretexto de que os ricos burlariam as punições. Mas não receiam os ricos perder seus bens? Não podem as penas pecuniárias ser proporcionais às fortunas? E, finalmente, não pode a infâmia ser somada a estas penas? Um bom legislador adota o justo meio-termo: nem sempre ordena penas pecuniárias, nem sempre aplica penas corporais. CAPÍTULO XIX Da lei de talião Os Estados despóticos, que apreciam as leis simples, utilizam amiúde a lei de talião. Os Estados moderados aceitam-na algumas vezes. Entretanto, existe esta diferença: os primeiros a exercem rigorosamente, e os segundos a utilizam moderadamente. A Lei das Doze Tábuas admitia duas delas: só condenava à pena de talião quando não podia apaziguar o suplicante. Podia-se, após a condenação, pagar danos e perdas, convertendo a pena corporal em pecuniária. CAPÍTULO XX Da punição dos pais em lugar dos filhos Na China, pune-se os pais pelas faltas dos filhos. Isso era costume no Peru. Tal procedimento também é inspirado por ideias despóticas. Diz-se comumente que, na China, se pune o pai por não utilizar o poder paternal estabelecido pela Natureza e aumentado pelas próprias leis. Isto sempre supõe que não há honra entre os chineses. Entre nós, os pais cujos filhos são condenados ao suplício e os filhos cujos pais sofreram a mesma sorte, são punidos pela desonra, fato que corresponde à perda da vida na China. CAPÍTULO XXI Da clemência do príncipe A clemência é a qualidade distintiva dos monarcas. Ela é menos necessária na república cujo princípio é a virtude. No Estado despótico, em que predomina o temor, é menos utilizada, pois é preciso conter os grandes do Estado com exemplos de severidade. Nas monarquias, em que se é governado pela honra, que exige constantemente o que a lei proíbe, ela é mais necessária. A desgraça equivale, nas monarquias, ao castigo, e as próprias formalidades dos julgamentos são aí punições: a vergonha surge de todos os lados para formar gêneros particulares de penas. Os poderosos são tão severamente punidos pelo desvalimento, pela perda - muitas vezes imaginária - de sua fortuna, de seu crédito, de seus hábitos, de seus prazeres, que o rigor em relação a eles é inútil: só serve para extinguir o amor dos súditos pelo príncipe e o respeito que deveriam ter pelas hierarquias. Como a instabilidade dos poderosos é da natureza do governo despótico, sua segurança faz parte da natureza da monarquia. Os monarcas lucrarão tanto com a clemência, ela é seguida de tanto amor, dela tiram tanta glória, que quase sempre é uma felicidade para eles terem ocasião de exercê-la; e eles quase sempre podem exercê-la em nossos países. Ser-lhes-á disputado, talvez, alguma parcela da autoridade, mas quase nunca toda a autoridade e, se algumas vezes combatem pela coroa, de forma alguma combatem pela vida. Mas, dir-se-á, quando se deve punir? Quando se deve perdoar? É uma coisa que é melhor sentir do que prescrever. Quando há perigos na clemência, eles são muito visíveis; distingue-se fàcilmente a clemência dessa fraqueza que leva o príncipe ao desprezo e até à impotência de punir. O Imperador Maurício resolveu nunca verter o sangue de seus súditos. Anastácio não punia os crimes. Isaac, o Anjo, jurou que não mandaria matar pessoa alguma em seu reinado. Os imperadores gregos esqueceram que não era em vão que usavam espada. LIVRO SÉTIMO - Consequências dos diferentes princípios dos três governos em relação às leis suntuárias, ao luxo e à condição das mulheres. CAPÍTULO I Do luxo O luxo sempre é proporcional à desigualdade das fortunas. Se, num Estado, as riquezas são distribuídas proporcionalmente não haverá luxo, pois ele é baseado somente sobre os haveres obtidos pelo trabalho alheio. Para que as riquezas continuem igualmente divididas, cumpre que a lei apenas outorgue a cada um o necessário material. Se se obtiver mais do que isso, uns gastarão, outros adquirirão e a desigualdade estabelecer-se-á. Supondo o necessário físico igual a uma soma dada, o luxo dos que apenas terão o necessário será igual a zero; o que tiver o dobro possuirá um luxo igual a um; o que possuir o dobro dos bens deste último terá um luxo igual a três; quando se tenha ainda o dobro, ter-se-á um luxo igual a sete; de maneira que os bens do indivíduo imediatamente superior, e sempre considerados o dobro dos do precedente, o luxo aumentará do dobro mais a unidade, nesta progressão: 0, 1, 3, 7, 15, 31, 63, 127. Na república de Platão, o luxo poderia ser calculado exatamente. Havia quatro espécies de censo estabelecidos. O primeiro era precisamente o termo onde a pobreza terminava; o segundo era o dobro, o terceiro o triplo, o quarto o quádruplo do primeiro. No primeiro censo, o luxo era igual a zero, no segundo, igual a um, a dois no terceiro, a três no quarto; e ele seguia, assim, a proporção aritmética. Considerando o luxo dos diversos povos, uns em relação aos outros, ele se revela em cada Estado na razão composta da desigualdade das fortunas que há entre os cidadãos e a desigualdade de riquezas dos diversos Estados. Na Polônia, por exemplo, as fortunas são extremamente desiguais mas a pobreza do conjunto impede que haja tanto luxo quanto num Estado mais rico. O luxo é ainda proporcional à grandeza das cidades e sobretudo da capital; de maneira que está na razão composta das riquezas do Estado, da desigualdade da fortuna dos particulares e do número de homens que se aglomeram em determinados lugares. Quanto mais houver homens reunidos, tanto mais esses serão fúteis e sentirão nascer neles o desejo de se notabilizar por pequenas coisas. Se estão em número tão grande que a maioria se desconheça entre si, o desejo de se distinguir redobra, porque há mais esperança de êxito. O luxo confere esta esperança; cada um utiliza os atributos da condição que precede a sua. Mas à força de querer se distinguir, todos se tornam iguais e ninguém mais se notabiliza; como todos querem atrair a atenção para si, não se nota pessoa alguma. Resulta de tudo isso um transtorno geral. Os que se notabilizam numa profissão estipulam para seu ofício o preço que bem entendem; os talentos menores seguem esse exemplo e não há mais harmonia entre as necessidades e os recursos. Quando sou forçado a litigar, é necessário que possa pagar um advogado; quando estou doente, é necessário que possa chamar um médico. Pensaram alguns que reunindo tantas pessoas numa capital, diminuir-se-ia o comércio porque os homens não mais estão distanciados uns dos outros. Não creio; há mais desejo, mais necessidade, mais capricho quando se está reunido. CAPÍTULO II Das leis suntuárias na democracia Acabo de dizer que nas repúblicas em que as riquezas são distribuídas igualmente, não pode existir luxo e, como se viu no livro quinto, que esta igualdade na distribuição fazia a excelência de uma república, conclui-se que quanto menos luxo haja numa república, tanto mais perfeita será ela. Não havia luxo entre os primeiros romanos como também entre os lacedemônios e, nas repúblicas em que a igualdade não está completamente perdida, o espírito de comércio, de trabalho e de virtude faz com que todos possam e todos queiram viver de acordo com suas posses e que, consequentemente, exista pouco luxo. As leis da nova partilha dos campos, reclamada insistentemente em algumas repúblicas, eram naturalmente salutares. Elas apenas são perigosas como ação súbita. Suprimindo repentinamente as riquezas de uns e aumentando do mesmo modo as dos outros, produzem em cada família uma revolução e devem produzir outra, geral, no Estado. À medida que o luxo se estabelece numa república, o espírito volta-se para o interesse particular. Para as pessoas a quem o necessário é suficiente, só resta desejar a glória da pátria e a sua própria. Porém, uma alma corrompida pelo luxo possui muitos outros desejos: cedo se torna inimiga das leis que a constrangem. O luxo que a guarnição de Régio começou a conhecer arruinou os seus habitantes. Logo que os romanos se corromperam, seus desejos tornaram-se imensos. Isso pode ser julgado pelo preço que deram às coisas. Um cântaro de vinho de Falerno era vendido por cem denários romanos; um barril de carne salgada do Ponto custava quatrocentos; um bom cozinheiro, quatro talentos: os jovens não tinham preço. Quando por uma impetuosidade geral todos se entregavam à voluptuosidade, em que se transformava a virtude? CAPÍTULO III Das leis suntuárias na aristocracia A aristocracia mal constituída possui esta desgraça: os nobres são ricos e, entretanto, não devem gastar; o luxo contrário ao espírito de moderação deve ser banido. Só há, portanto, pobres que não podem receber, e ricos que não podem gastar. Em Veneza, as leis obrigam os nobres à modéstia. Acostumaram-se de tal modo a economizar que apenas as cortesãs podiam-lhes tirar dinheiro. Utiliza-se este meio para apoiar a indústria: mulheres mais desprezíveis gastam sem perigo, enquanto seus tributários levam a vida mais obscura do mundo. As boas repúblicas gregas tinham, a este respeito, instituições admiráveis. Os ricos empregavam dinheiro em festas, em coros de música, carros, cavalos de corrida, magistraturas onerosas. As riquezas eram tão pesadas como a pobreza. CAPÍTULO IV Das leis suntuárias nas monarquias "Os Suiãos, povo germânico, rendem homenagem às riquezas, diz Tácito, o que faz com que vivam sob o governo de um só." Isto significa que o luxo é singularmente característico das monarquias e que nelas não se necessita de leis suntuárias. Como, pela constituição das monarquias, as riquezas são distribuídas de maneira desigual, é realmente necessário que exista luxo. Se os ricos não despendem muito, os pobres morrerão de fome. É mesmo indispensável que os ricos gastem proporcionalmente à desigualdade das fortunas e, como dissemos, que o luxo aumente na mesma proporção. As riquezas particulares só aumentam porque suprimiram a uma parcela dos cidadãos o necessário físico; cumpre, portanto, que este lhe seja devolvido. Assim, para que o Estado monárquico se sustente, o luxo deve ir aumentando, do lavrador ao artesão, ao negociante, aos nobres, aos magistrados, aos grandes senhores, aos contratadores principais, aos príncipes, sem o quê tudo se perderia. No senado de Roma, composto de graves magistrados, de jurisconsultos e de homens imbuídos da ideia dos primeiros tempos, propôs-se, na época de Augusto, a correção dos costumes e do luxo das mulheres. É curioso ver em Dion com que arte ele eludiu as demandas importunas desses senadores. É que ele fundava uma monarquia e dissolvia uma república. Na época de Tibério os edis propuseram, no senado, o restabelecimento das antigas leis suntuárias. Este príncipe erudito opôs-se: "O Estado não poderia subsistir, dizia ele, no atual estado de coisas. Como poderia Roma viver? Como as províncias poderiam viver? Tínhamos a frugalidade quando éramos cidadãos de uma única cidade; hoje consumimos a riqueza de todo o universo; fazemos senhores e escravos trabalharem para nós". Ele via bem que não mais se necessitava de leis suntuárias. Quando, no reinado do mesmo imperador, propôs-se ao senado proibir os governadores de levarem suas mulheres para as províncias por causa dos desregramentos que aí introduziam, esta proposta foi rejeitada. Diz-se que os exemplos da inflexibilidade dos antigos tinham sido modificados em favor de um modo de vida mais agradável. Sentiu-se que havia necessidade de outros costumes. O luxo é, portanto, necessário nos Estados monárquicos e também nos Estados despóticos. Nos primeiros, é um uso que se faz do grau de liberdade possuída; nos outros, é um abuso feito das vantagens de sua servidão. Quando um senhor, inseguro quanto ao futuro de sua fortuna de cada dia, escolhe um escravo para tiranizar os outros escravos, a única felicidade que possui é saciar o orgulho, os desejos e as volúpias diárias. Tudo isso conduz a uma reflexão. As repúblicas morrem pelo luxo e as monarquias, pela pobreza. CAPÍTULO V Em que casos as leis suntuárias são úteis numa monarquia Foi no espírito da república, ou em alguns casos particulares que, em meados do século XIII, estabeleceram-se leis suntuárias em Aragão. Jaime I ordenou que tanto o rei como seus súditos não poderiam comer mais de duas espécies de carne em cada refeição e que cada uma seria preparada apenas de uma maneira, a menos que fosse da caça que a própria pessoa tivesse matado. Na Suécia, em nossos dias, fazem-se também leis suntuárias, mas elas possuem um objetivo diferente das de Aragão. Um Estado pode estabelecer leis suntuárias objetivando uma frugalidade absoluta; é o espírito das leis suntuárias nas repúblicas; e a natureza da coisa revela que esta foi a finalidade das leis de Aragão. As leis suntuárias também podem ter uma frugalidade relativa como objetivo, quando um Estado, verificando que mercadorias estrangeiras de preço muito elevado exigiriam tal exportação de suas próprias, que ele se privaria dessas mais do que se satisfaria com aquelas, proíbe terminantemente a entrada das mercadorias vindas de fora. Este é o espírito das leis feitas atualmente na Suécia, São as únicas leis suntuárias que convêm às monarquias. Em geral, quanto mais pobre é um Estado, tanto mais é arruinado por seu luxo relativo e tanto mais, consequentemente, necessita leis suntuárias relativas. Quanto mais um Estado é rico, tanto mais seu luxo relativo o enriquece e, nesse caso, é muito necessário evitar leis suntuárias relativas. Explicaremos melhor esta questão no livro sobre o comércio. Tratamos aqui apenas do luxo absoluto. CAPÍTULO VI Do luxo na China Razões particulares reclamam leis suntuárias em alguns Estados. Pela força do clima, o povo pode tornar-se tão numeroso e de outro lado os meios de subsistência tão precários que é conveniente aplicá-lo integralmente à cultura da terra. Nesses Estados, o luxo é perigoso e as leis suntuárias devem ser rigorosas. Assim, para saber se é necessário encorajar ou proscrever o luxo, primeiramente se deve observar a relação entre o número de habitantes e a facilidade de obtenção dos meios de fazê-los viver. Na Inglaterra, o solo produz muito mais cereais do que é necessário para nutrir os que cultivam as terras e os que procuram vestimentas. Portanto, pode-se aí cultivar artes frívolas e, consequentemente, o luxo. Na França, há trigo em quantidade suficiente para nutrir os lavradores e os empregados de manufaturas. Além disso, o comércio com os estrangeiros pode obter com coisas frívolas tantas coisas necessárias que quase não se deve temer o luxo. Na China, pelo contrário, as mulheres são tão fecundas e a espécie humana multiplica-se a tal ponto que as terras, por mais cultivadas que sejam, mal chegam para a alimentação dos habitantes. O luxo é, portanto, pernicioso e o espírito de trabalho e de economia é tão necessário como em qualquer outra república. É mister que se dediquem aos ofícios necessários e que se afastem da voluptuosidade. Eis aqui o espírito das belas ordenanças dos imperadores chineses: "Nossos antepassados, diz um imperador da família dos Tang, tinham por máxima que, existindo um homem que não lavrasse a terra, uma mulher que não fiasse, alguém sofreria frio ou fome no império... " E, baseado neste princípio, mandou arrasar uma infinidade de monastérios de bonzos. Um terceiro imperador da vigésima primeira dinastia, a quem levaram pedras preciosas achadas numa mina, não querendo que seu povo se fatigasse trabalhando por uma coisa que não o poderia nutrir nem vestir, mandou fechar a mina. "Nosso luxo é tão grande, diz Kiayventi, que o povo orna com bordados as sandálias dos mancebos e donzelas, que é obrigado a vender." Havendo tantos homens ocupados em fazer roupas para um único, como não haver muitas pessoas sem roupas? Há dez homens que usufruem a renda das terras para um lavrador: como não haver carência de alimentos para muitas pessoas? CAPÍTULO VII Fatal consequência do luxo na China Na história da China vê-se que ela possuiu vinte e duas dinastias sucessivas; quer dizer, ela experimentou vinte e duas revoluções gerais, sem contar uma infinidade de revoluções menores. As três primeiras dinastias duraram muito tempo, pois foram sàbiamente governadas e o império era menos extenso do que o foi mais tarde. Mas, de um modo geral, pode dizer-se que todas essas dinastias começaram muito bem. Na China, a virtude, a vigilância, a atenção são necessárias. Elas existiram no início das dinastias e faltaram no final. De fato, era natural que os imperadores, educados nas fadigas da guerra, conseguissem destronar uma família mergulhada numa vida cômoda, conservassem as virtudes que tinham verificado serem tão úteis e temessem as volúpias que tinham verificado serem tão funestas. Porém, após esses três ou quatro primeiros príncipes, a corrupção, o luxo, o ócio, as delícias apoderaram-se de seus sucessores; encerravam-se em seus palácios, seu espírito enfraquecia-se, sua vida encurtava, a família declinava; os poderosos fortalecem-se, os eunucos adquirem reputação e apenas crianças sobem ao trono; o palácio torna-se inimigo do império; um povo ocioso que o habita arruína os que trabalham, o imperador é morto ou destruído por um usurpador que estabelece uma dinastia, cujo terceiro ou quarto herdeiro ainda se encerrará no mesmo palácio. CAPÍTULO VIII Da continência pública Há tantas imperfeições relacionadas à perda da virtude nas mulheres; toda sua alma é tão fortemente degradada por esta perda e, Suprimindo este ponto capital, faz-se cair tantos outros, que se pode considerar, num Estado popular, a incontinência pública como a última das desgraças e a certeza de uma reforma na constituição. Destarte, os bons legisladores exigem das mulheres certa severidade de costumes. Proscreveram da república não somente o vício como também sua própria aparência. Baniram até mesmo esse comércio de galanteria que produz a ociosidade, que faz com que as mulheres corrompam antes mesmo de serem corrompidas, que dá um preço a todas as insignificâncias e rebaixa o que é importante, fazendo com que as pessoas se orientem apenas pelas máximas do ridículo que as mulheres julgam tão necessário estabelecer. CAPÍTULO IX Da condição das mulheres nos diferentes governos As mulheres têm pouco recato nas monarquias, pois as distinções sociais, chamando-as à corte onde o espírito de liberdade é quase o único tolerado, por ele tomarão gosto. Todos se servem de seus prazeres e de suas paixões para aumentar a fortuna; e como sua fraqueza não lhes permite o orgulho mas a vaidade, o luxo sempre impera com ela. Nos Estados despóticos, as mulheres não introduzem o luxo, pois elas próprias são um objeto de luxo e devem ser completamente escravizadas. Cada um acompanha o espírito do governo e leva para casa o que vê estabelecido alhures. Como as leis são severas e de imediata execução, teme-se que a liberdade das mulheres crie problemas. Suas tolices, suas indiscrições, suas repugnâncias, suas tendências, seus ciúmes, suas implicâncias, esta arte que os espíritos insignificantes possuem de predispor-se contra os grandes, não poderiam deixar de ter consequências. Além disso, como nesses Estados os príncipes divertem-se com a natureza humana, eles possuem várias mulheres e mil considerações obrigam-nos a conservá-las isoladas. Nas repúblicas, as mulheres são livres pelas leis e prisioneiras pelos costumes; o luxo é banido delas, levando consigo a corrupção e os vícios. Nas cidades gregas, em que não se vivia sob esta religião que estabelece que a pureza dos costumes, mesmo entre os homens, é uma parcela da virtude; nas cidades gregas, em que o vício cego reinava desenfreadamente, em que o amor possuía apenas uma forma que não ouso dizer qual seja, enquanto só a amizade refugiara-se no casamento; a virtude, a castidade, a simplicidade das mulheres eram tais que dificilmente se encontrou povo que tivesse tido a esse respeito melhores costumes. CAPÍTULO X Do tribunal doméstico entre os romanos Os romanos não possuíam, como os gregos, magistrados particulares que inspecionassem o procedimento das mulheres. Os censores apenas as vigiavam como o resto da república. A instituição do tribunal doméstico supriu a magistratura estabelecida entre os gregos. O marido convocava os pais da mulher e a julgava diante deles. Este tribunal mantinha os costumes na república, mas esses mesmos costumes mantinham esse tribunal que devia julgar não somente da violação das leis como também da dos costumes. Ora, para julgar da violação dos costumes é preciso tê-los, As penas desse tribunal deviam ser arbitrárias, e efetivamente o eram, pois tudo que se relaciona com os costumes, com os mandamentos da modéstia, quase não pode ser abrangido num código de leis. É fácil regulamentar com leis o que se deve aos outros; é difícil abranger nas leis tudo que se deve a si mesmo. O tribunal doméstico regulamentava o comportamento geral das mulheres. Porém havia um crime que, além da animada versão desse tribunal, era ainda submetido a uma acusação pública: era o adultério; seja porque, numa república, tão grande violação dos costumes interessasse ao governo, seja porque o desregramento da esposa levantasse suspeita sobre o do marido; seja, enfim, porque se temesse que as próprias pessoas honestas preferissem ocultar esse crime a puni-lo, ignorá-lo a vingá-lo. CAPÍTULO XI Como as instituições, em Roma, transformaram-se com o governo. Como o tribunal doméstico supunha a existência de costumes, a acusação pública também os supunha; e isto fez com que estas duas coisas caíssem com os costumes e desaparecessem com a república. O estabelecimento das questões perpétuas, isto é, da divisão da jurisdição entre os pretores, e o costume, cada vez mais generalizado, que esses próprios pretores julgassem todas as questões, enfraqueceram a prática do tribunal doméstico, fato que se revela pela surpresa dos historiadores que olhavam os julgamentos que Tibério mandou proferir por esse tribunal como acontecimentos singulares e como renovação da antiga prática. O estabelecimento da monarquia e as transformações dos costumes contribuíram ainda mais para o término da acusação pública. Temia-se que um cidadão desonesto, ofendido pelo desprezo de uma mulher, indignado com suas recusas e mesmo exasperado com sua virtude, resolvesse planejar sua perda. A lei Júlia ordenava que só se poderia acusar uma mulher de adultério depois de ter acusado seu marido de favorecer seus desregramentos; isso muito restringiu esta acusação e, por assim dizer, anulou-a. Sisto V pareceu querer renovar a acusação pública. Mas basta refletir um pouco para ver que esta lei, numa monarquia tal como a sua, era ainda mais imprópria que em qualquer outra. CAPÍTULO XII Da tutela das mulheres entre os romanos As instituições dos romanos colocavam as mulheres sob uma tutela perpétua, a menos que estivessem sob a autoridade do marido. Esta tutela era outorgada ao parente masculino mais próximo e parece, por uma expressão vulgar que elas ficavam muito constrangidas. Isto era conveniente na república e desnecessário na monarquia. Pelos diversos códigos das leis dos bárbaros percebe-se que, entre os primeiros germanos, as mulheres também estavam sob tutela perpétua. Este costume passou para as monarquias que eles fundaram, mas não subsistiu. CAPÍTULO XIII Das penas estabelecidas pelos imperadores contra a devassidão das mulheres. A lei Júlia estabeleceu uma pena contra o adultério. Mas muito longe de ser esta lei, e as que depois foram calcadas sobre ela, sinal de retidão dos costumes, foram, pelo contrário, uma marca de sua depravação. Na monarquia, todo sistema político relativo às mulheres transformou-se. Não se tratava mais de estabelecer a pureza dos costumes, entre elas, mas de punir esses crimes porque não mais se puniam as violações, que não eram absolutamente esses crimes. A espantosa dissolução dos costumes obrigava muitos imperadores a estabelecer leis para deter, até certo ponto, a impudicícia, mas sua intenção não foi corrigir os costumes em geral. Fatos positivos, relatados por historiadores, provam isso mais do que todas essas leis poderiam provar o contrário. Pode-se ver em Dion o procedimento de Augusto a este respeito e como ele se subtraiu, tanto em sua pretura como em sua censura, aos pedidos que lhe foram feitos. Nos historiadores encontram-se relatos de severos julgamentos proferidos, na época de Augusto e de Tibério, contra a impudicícia de algumas senhoras romanas; mas, ao nos fazerem conhecer o espírito destes reinados, permitem-nos também conhecer o espírito desses julgamentos. Augusto e Tibério pensaram principalmente em punir as devassidões de seus familiares. Não puniam o desregramento dos costumes mas um certo crime de impiedade ou de lesa-majestade que tinham inventado, útil para o respeito, útil para sua vingança. Por isso os autores romanos protestaram tão ardentemente contra esta tirania. A pena da lei Júlia era muito leve. Os imperadores quiseram que, nos julgamentos, se aumentasse a pena da lei que haviam feito. Isto foi objeto das invectivas dos historiadores. Eles não examinavam se as mulheres mereciam ser punidas, mas se para puni-las a lei tinha sido violada. Uma das principais tiranias de Tibério foi o abuso que fez das antigas leis. Quando queria punir alguma senhora romana, além da pena aplicada pela lei Júlia, restabeleceu contra ela o tribunal doméstico. Estas disposições concernentes às mulheres apenas diziam respeito às famílias dos senadores e não às do povo. Procuravam-se pretextos para acusações contra os poderosos e o mal comportamento das mulheres podia fornecer inúmeros. Disse eu, finalmente, que a bondade dos costumes não é o princípio do governo de uma só pessoa, fato que nunca se verificou tão bem como na época desses primeiros imperadores; e, se existisse dúvida quanto a isso, bastaria ler Tácito, Suetônio, Juvenal e Marcial. CAPÍTULO XIV Leis suntuárias entre os romanos Falamos da incontinência pública porque ela caminha com o luxo, o qual sempre a seguiu, e sempre por ela é seguido. Se deixardes em liberdade os movimentos do coração, como podereis conter as fraquezas do espírito? Em Roma, além das instituições gerais, os censores mandaram fazer, pelos magistrados, várias leis especiais para conservar as mulheres na frugalidade. As leis Fânia, Licínia e Ópia tiveram esse objetivo. É necessário ver em Tito Lívio como o senado agitou-se quando elas exigiram a revogação da lei Ópia. Valério Máximo atribui a época de luxo entre os romanos à ab-rogação desta lei. CAPÍTULO XV Dos dotes e das vantagens nupciais nas diversas constituições. Os dotes devem ser consideráveis nas monarquias a fim de que os maridos possam conservar sua posição social e o luxo estabelecido. Devem ser medíocres nas repúblicas em que o luxo não deve vigorar. Devem ser quase nulos nos Estados despóticos, em que as mulheres são, de alguma maneira, escravas. A comunidade dos bens, introduzi da pelas leis francesas entre o marido e a esposa, é muito conveniente no governo monárquico porque interessa as mulheres nos assuntos domésticos e as atrai, mesmo contra vontade, aos cuidados de suas casas. A comunidade dos bens não é menos conveniente na república, onde as mulheres são mais virtuosas; mas ela seria absurda nos Estados despóticos onde, quase sempre, as próprias mulheres são uma parte da propriedade do senhor. Como as mulheres, por seu estado, são deveras propensas ao casamento, os ganhos que a lei lhes confere sobre os bens de seus maridos são inúteis. Porém isso seria muito pernicioso numa república porque suas riquezas particulares produzem o luxo. Nos Estados despóticos, os dotes de núpcias devem constituir-se da sua subsistência e nada mais. CAPÍTULO XVI Belo costume dos samnitas Os samnitas tinham um costume que devia produzir efeitos admiráveis numa pequena república e sobretudo na situação em que se encontrava a deles. Todos os jovens eram reunidos e julgados. O que fosse declarado melhor de todos, tomava para esposa a jovem que desejasse; o que tivesse mais votos, depois dele, escolheria a seguir, e assim por diante. Era admirável considerar entre os bens dos jovens apenas as belas qualidades e os serviços prestados à pátria. O que possuísse em maior grau estas espécies de bens escolhia uma jovem em toda a nação. O amor, a beleza, a castidade, a virtude, o nascimento, as próprias riquezas, tudo isto, por assim dizer, era o dote da virtude. Seria difícil imaginar uma recompensa mais nobre, maior, menos onerosa para um pequeno Estado, mais capaz de atuar sobre ambos os sexos. Os samnitas descendiam dos lacedemônios e Platão, cujas instituições nada mais são do que o aperfeiçoamento das leis de Licurgo, criou uma lei quase semelhante. CAPÍTULO XVII Da administração das mulheres É contra a razão e contra a natureza que as mulheres sejam senhoras na casa, como estabeleceu-se entre os egípcios, mas não o é que governem um império. No primeiro caso, o estado de fraqueza em que se encontram não lhes permite a preeminência; no segundo, sua própria fraqueza lhes dá mais suavidade e moderação, virtudes que, mais do que a intransigência e a ferocidade, podem permitir um bom governo. Nas índias, acha-se muito naturais os governos das mulheres e estabeleceu-se que, se os varões não descendem de mãe do mesmo sangue, as filhas que possuem mãe de sangue real sucedem. Confere-se-lhes certo número de pessoas para ajudá-las a suportar o peso do governo. Na África, segundo Smith, também se encaram com naturalidade governos de mulheres. Se acrescentarmos a isso o exemplo da Moscóvia e da Inglaterra, veremos que elas obtiveram igualmente êxito, tanto no governo moderado como no despótico. LIVRO OITAVO - Da corrupção dos princípios nos três governos CAPÍTULO I Ideia geral deste livro A corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios. CAPÍTULO II Da corrupção do princípio da democracia Corrompe-se o espírito da democracia não somente quando se perde o espírito de igualdade, mas ainda quando se quer levar o espírito de igualdade ao extremo, procurando cada um ser igual àquele que escolheu para comandá-lo. Então o povo, não podendo suportar o próprio poder que escolheu, quer fazer tudo por si só: deliberar pelo senado, executar pelos magistrados e destituir todos os juízes. Não pode mais haver virtude na república. O povo quer exercer as funções dos magistrados que não são, portanto, mais respeitados. As deliberações do senado não têm mais força, não havendo, assim, mais consideração pelos senadores e consequentemente pelos anciãos. E, se não mais se respeita aos anciãos, também não se respeitará aos pais, e os maridos não merecerão, igualmente, mais deferências, nem os patrões tampouco merecerão submissão; todos passarão a apreciar essa libertinagem; a pressão do comando fatigará tanto como a da obediência. As mulheres, as crianças, os escravos não se submeterão a pessoa alguma. Os costumes, o amor pela ordem desaparecerão. Enfim, não mais existirá a virtude. Vê-se no Banquete de Xenofonte, uma pintura muito ingênua de uma república em que o povo abusou da igualdade. Explica cada conviva, por sua vez, a razão por que está contente consigo mesmo. "Estou contente comigo, diz Cármides, por causa de minha pobreza. Quando era rico, era obrigado a prestar homenagens aos caluniadores, sabendo muito bem que estava mais em condição de ser prejudicado por eles do que prejudicá-los: a república exigia-me sempre alguma nova contribuição; não podia ausentar-me. Desde que sou pobre, adquiri autoridade; ninguém me ameaça mas eu ameaço os outros; posso partir ou permanecer. Os ricos já se levantam de seus lugares e me cedem a prioridade. Sou um rei, era escravo; pagava um tributo à república, hoje ela me sustenta; não receio mais perder, espero adquirir." O povo cai nessa desgraça quando aqueles em quem confia, procurando ocultar sua própria corrupção, buscam corrompê-lo. Para que sua ambição não seja vista pelo povo, eles apenas falam da grandeza do povo; para que não se perceba sua avareza, elogiam incessantemente a do povo. A corrupção aumentará entre os corruptores e também entre os que já estão corrompidos. O povo distribuirá entre si toda a fazenda pública e, como terá unido a gestão dos negócios à sua preguiça, desejará reunir à sua pobreza os divertimentos do luxo. Mas com sua preguiça e seu luxo, terá como objetivo apenas o tesouro público. Ninguém deverá se espantar se votos forem comprados a dinheiro. Não se pode dar muito ao povo sem retirar dele ainda mais; porém para retirar dele é necessário subverter o Estado. Quanto mais o povo pensa aproveitar de sua liberdade, mais se aproximará do momento em que deve perdê-la. Cria pequenos tiranos que possuem todos os vícios de um só. Em breve, o que resta da liberdade torna-se insuportável: surge um único tirano; o povo perde tudo, até mesmo as vantagens de sua corrupção. A democracia deve, portanto, evitar dois excessos: o espírito de desigualdade, que a conduz à aristocracia ou ao governo de um só; e o espírito de igualdade extrema, que a conduz ao despotismo de um só, assim como o despotismo de um só acaba pela conquista. É verdade que aqueles que corromperam as repúblicas gregas nem sempre se tornaram tiranos. É que eles eram mais afeiçoados à eloquência do que à arte militar, além de existir no coração de todos os gregos um ódio implacável contra os que derrubavam o governo republicano. Isso fez com que a anarquia degenerasse em aniquilamento, ao invés de se transformar em tirania. Mas Siracusa, que se encontrou situada em meio de um grande número de pequenas oligarquias transformadas em tiranias; Siracusa, que tinha um senado quase nunca mencionado em sua história, experimentou desgraças que a simples corrupção não produz. Essa cidade, sempre na licença ou na opressão, igualmente trabalhada por sua liberdade e por sua servidão, recebendo sempre a uma e a outra como a uma tempestade, e, apesar de seu poderio no exterior, sempre conduzida a uma revolução pela mais fraca força estrangeira, tinha em seu seio um povo imenso, ao qual só restava essa cruel alternativa de se entregar a um tirano ou de sê-lo ele mesmo. CAPÍTULO III Do espírito de igualdade extrema Assim como o céu está afastado da terra, o verdadeiro espírito de igualdade o está do espírito de igualdade extrema. O primeiro não consiste em fazer de maneira que todos comandem ou ninguém seja governado; mas em obedecer e comandar seus iguais. Não procura não ter senhores, mas apenas ter seus iguais por senhores. No seu estado natural, os homens nascem numa verdadeira igualdade, mas não podem permanecer nela. A sociedade faz com que a percam e apenas retornam à igualdade pelas leis. Tal é a diferença entre a democracia regulamentada e a que não o é que, na primeira, é-se igual apenas como cidadão, e na outra ainda se é igual como magistrado, senador, juiz, pai, marido e senhor. O lugar natural da virtude é junto à liberdade; mas ela não se encontra mais perto da liberdade extrema do que da servidão. CAPÍTULO IV Causa particular da corrupção do povo Os grandes êxitos, sobretudo aqueles para os quais o povo contribui muito, lhe dão tal orgulho que não é mais possível conduzi-lo. Sua inveja dos magistrados transforma-se em inveja da magistratura; inimigo dos que governam, logo o é da constituição. Foi assim que a vitória de Salamina sobre os persas corrompeu a república de Atenas e foi dessa maneira que a derrota dos atenienses arruinou a república de Siracusa. A de Marselha nunca experimentou estas grandes transições da decadência à grandeza: destarte, ela governou-se sempre com sabedoria; assim, ela conservou seus princípios. CAPÍTULO V Da corrupção do princípio da aristocracia A aristocracia corrompe-se quando o poder dos nobres torna-se arbitrário: não mais pode haver virtude nos que governam nem nos que são governados. Quando as famílias reinantes observam as leis, trata-se de uma monarquia que possui vários monarcas e que é excelente por sua natureza; quase todos esses monarcas estão ligados pelas leis. Mas quando elas não são observadas, trata-se de um Estado despótico que possui vários déspotas. Nesse caso, a república só subsiste em relação aos nobres e somente entre eles, Ela está no corpo que governa e o Estado despótico está no corpo que é governado. Isso é o que faz com que eles sejam os dois corpos mais desunidos do mundo. Extrema corrupção existe quando os nobres tornam-se hereditários e quase não podem ter moderação. Se são em pequeno número, seu poder é maior mas sua segurança diminui; se são em maior número, seu poder é menor, e sua segurança, maior: de maneira que seu poder vai crescendo e a segurança diminuindo, até o déspota, em cuja cabeça está o excesso do poder e do perigo. O grande número de nobres na aristocracia hereditária torna, pois, o governo menos violento; mas, como existe pouca virtude, cair-se-á num espírito de negligência, de preguiça e de abandono, o que faz com que o Estado não tenha mais força nem iniciativa. Uma aristocracia pode manter a força de seu princípio se as leis são tais que façam sentir aos nobres mais os perigos e as fadigas do comando que suas delícias; e se o Estado está numa tal situação que tenha algo a temer; e que a segurança venha de dentro e a incerteza, de fora. Como certa confiança faz a glória e a segurança de uma monarquia, é mister, ao contrário, que uma república tema alguma coisa. O temor aos persas mantém a lei entre os gregos. Cartago e Roma intimidaram- se mutuamente e consolidaram-se. Coisa singular! Quanto mais segurança esses Estados possuem, mais, como as águas muito tranquilas, eles estão sujeitos a se corromper. CAPÍTULO VI Da corrupção do princípio da monarquia Assim como as democracias se arruínam quando o povo despoja de suas funções o senado, os magistrados e os juízes, as monarquias corrompem-se quando se suprimem pouco a pouco as prerrogativas dos corpos ou os privilégios das cidades. No primeiro caso, caminha-se para o despotismo de todos; no segundo, para o despotismo de um só. "O que arruinou as dinastias de Tsin e de Suei, diz um autor chinês, foi o fato de os príncipes, ao invés de se limitarem, como os antigos, a uma inspeção geral, a única digna do soberano, terem querido governar imediatamente por si mesmos." O autor chinês nos dá aqui a causa da corrupção de quase todas as monarquias. A monarquia arruína-se quando um príncipe crê que mostra mais seu poderio, transformando a ordem das coisas do que a seguindo, quando suprime as funções naturais de uns para outorgá-las arbitràriamente a outros, e quando aprecia mais seus caprichos que suas vontades. A monarquia arruína-se quando o príncipe, relacionando tudo unicamente a si, chama Estado à sua capital, capital à sua corte, e corte à sua única pessoa. Enfim, ela se arruína quando um príncipe desconhece sua autoridade, sua situação, o amor de seus súditos, e quando não percebe que o monarca deve julgar-se em segurança, como um déspota deve crer-se em perigo. CAPÍTULO VII Continuação do mesmo assunto O princípio da monarquia corrompe-se quando as primeiras dignidades são os indícios da primeira servidão, quando se suprime aos poderosos o respeito dos súditos, e quando os torna vis instrumentos do poder arbitrário. Ele se corrompe ainda mais quando a honra é colocada em contradição com as honrarias, quando se pode estar ao mesmo tempo coberto de infâmia e de dignidades. Corrompe-se quando o príncipe troca sua justiça pela severidade; quando põe, como os imperadores romanos, uma cabeça de Medusa em seu peito; quando toma esse aspecto ameaçador e terrível que Cômodo mandava dar às suas estátuas. O princípio da monarquia corrompe-se quando almas singularmente lassas se envaidecem da grandeza que possa ter sua servidão, e julgam que o que faz com que se deva tudo ao príncipe faz com que não se deva nada à pátria. Mas se é verdade (o que se viu em todos os tempos) que, à medida que o poder do monarca tornar-se imenso, sua segurança diminui, corromper esse poder até fazê-lo mudar de natureza não é um crime de lesa-majestade contra ele? CAPÍTULO VIII Perigo da corrupção do princípio do governo monárquico O inconveniente não surge quando o Estado passa de um governo moderado a outro governo moderado, como da república à monarquia, ou da monarquia à república, mas quando cai e se precipita do governo moderado ao despotismo. A maior parte dos povos da Europa é ainda governada pelos costumes. Porém, se por um longo abuso do poder, se por uma grande conquista, o despotismo se estabelecesse até certo ponto, não haveria costumes nem clima que o contivesse; e nesta bela parte do mundo, a natureza humana sofreria, ao menos por algum tempo, os insultos que lhe são feitos nas outras três. CAPÍTULO IX Até que ponto a nobreza é levada a defender o trono A nobreza inglesa amortalhou-se com Carlos I sob os destroços do trono; e, antes disso, quando Filipe II fez chegar aos ouvidos dos franceses a palavra de liberdade, a coroa foi sempre sustentada por esta nobreza que se atém à honra de obedecer a um rei, mas que considera suprema infâmia partilhar o poder com o povo. Viu-se a casa de Áustria trabalhar sem trégua para oprimir a nobreza húngara. Ignorava de que valor ela lhe seria um dia. Procurava, entre essas populações, dinheiro que aí não existia. Não via os homens que lá estavam. Quando tantos príncipes dividiam entre si seus Estados, todas as peças de sua monarquia, imóveis e sem ação, caíam, por assim dizer, umas sobre as outras. Só havia vida nessa nobreza que se indignou, esqueceu tudo para combater e acreditou que lhe era glorioso perecer e perdoar. CAPÍTULO X Da corrupção do princípio do governo despótico O princípio do governo despótico corrompe-se sem cessar, porque é corrompido por sua natureza. Os outros governos perecem porque acidentes particulares violam seu princípio: este perece por seu vício interior, quando causas acidentais não impedem seu princípio de se corromper. Ele só se mantém, portanto, quando circunstâncias provenientes do clima, da religião, da situação ou do temperamento do povo forçam-no a seguir alguma ordem e a submeter-se a alguma regra. Essas coisas forçam sua natureza sem mudá-la; sua ferocidade permanece; essa está, por algum tempo, domada. CAPÍTULO XI Efeitos naturais da bondade e da corrupção dos princípios Quando os princípios do governo são corrompidos uma vez, as melhores leis tornam-se más, e voltam-se contra o Estado; quando seus princípios são sadios, as más têm o efeito das boas; a força do princípio arrasta tudo. Os cretenses, para manterem os primeiros magistrados na dependência das leis, empregavam um meio muito singular; era o da insurreição. Parte dos cidadãos revoltava-se, afugentava os magistrados, e obrigava-os a voltar à vida privada. Considerava-se isso feito em consequência da lei. Tal instituição, que estabelecia a revolta para impedir o abuso do poder, parecia dever arruinar qualquer república, fosse qual fosse; ela não destruiu a de Creta. Eis por que: Quando os antigos queriam falar de um povo que mais amor tinha pela pátria, citavam os cretenses. A pátria, dizia Platão, nome tão doce aos cretenses. Chamavam-na com um nome que exprime o amor de uma mãe por seus filhos. Ora, o amor pela pátria corrige tudo. As leis da Polônia têm também sua insurreição. Mas os inconvenientes que dela resultam fazem ver que, na realidade, apenas o povo de Creta esteve em condições de empregar com êxito tal remédio. Os exercícios da ginástica estabelecidos entre os gregos não dependeram menos da bondade do princípio do governo. "Foram os lacedemônios e os cretenses" - diz Platão - "que abriram essas academias famosas, que as fizeram ocupar no mundo um lugar tão destacado. O pudor alarmou-se a princípio; mas cedeu à utilidade pública”. Ao tempo de Platão, essas instituições eram admiráveis, e relacionavam-se com um grande desígnio, que era a arte militar. Mas quando os gregos deixaram de ter virtude, elas destruíram a própria arte militar; não se descia mais à arena para se educar, mas para se corromper. Relata-nos Plutarco que, no seu tempo, os romanos julgavam que esses jogos foram a causa principal da servidão em que os gregos tinham caído. Entretanto, ocorrera o contrário: fora a servidão dos gregos que corrompera esses exercícios. Na época de Plutarco, as praças onde se combatia nu e os exercícios de luta tornavam covardes os jovens, induziam-nos a um amor degradante, só formando dançarinos; porém na época de Epaminondas a prática da luta permitiu aos tebanos vencer a batalha de Leuctra. Poucas são as leis que não sejam boas quando o Estado não perdeu seus princípios; e, como dizia Epicuro, referindo-se às riquezas: "Não é o licor que está estragado: é o vaso". CAPÍTULO XII Continuação do mesmo assunto Em Roma, escolhiam-se os juízes na ordem dos senadores. Os Gracos transferiram essa prerrogativa aos cavaleiros. Druso outorgou-a aos cavaleiros e aos senadores; Silas, apenas aos senadores; Cota, aos senadores, aos cavaleiros e aos tesoureiros do erário. César excluiu esses últimos; Antônio criou decúrias de senadores, de cavaleiros e de centuriões. Quando uma república corrompeu-se, só se pode remediar alguns de seus males nascentes, suprimindo a corrupção e estimulando os princípios: qualquer outra correção é inútil ou um novo mal. Enquanto Roma conservou seus princípios, os julgamentos puderam permanecer sem abusos nas mãos dos senadores, mas, quando ela corrompeu-se, qualquer que fosse o corpo ao qual se transferissem os julgamentos - aos senadores, aos cavaleiros, aos tesoureiros do erário, a dois desses corpos ou aos três em conjunto, ou a outro corpo qualquer - o mal sempre persistia. Os cavaleiros não possuíam mais virtude que os senadores, os tesoureiros do erário mais que os cavaleiros e estes tão pouca quanto os centuriões. Quando o povo de Roma obteve o direito de participar das magistraturas patrícias, era natural pensar que os aduladores seriam os árbitros do governo. Não: vimos esse povo, que conseguia a eleição de plebeus para as magistraturas comuns, eleger sempre patrícios. Por ser virtuoso, era magnânimo; por ser livre, desdenhava o poder. Entretanto, quando esse povo perdeu seus princípios, quando possuiu mais poder, menos contemplação teve; até que, por fim, tornado seu próprio tirano e seu próprio escravo, perdeu a força da liberdade para tombar na fraqueza de desregramento. CAPÍTULO XIII Efeito do juramento num povo virtuoso Não houve povo, diz Tito Lívio, em que a devassidão se tenha introduzido tão tardiamente e a moderação e a pobreza tenham sido tão longa mente honradas como entre os romanos. O juramento teve tanta força entre esse povo que nada o ligou mais às leis. Muitas vezes, ele fez, para cumpri-lo, coisas que nunca teria feito pela glória ou pela pátria. Quíncio Cincinato, cônsul, desejando levantar, na cidade, um exército contra os Equos e Volscos, chocou-se contra a oposição dos tribunos. Muito bem, exclamou ele, que todos os que prestaram juramento ao cônsul do ano precedente, marchem sob minha bandeira. Inutilmente os tribunos proclamaram que ninguém estava mais submetido a esse juramento, que quando o tinham feito Quíncio não era um homem público: o povo foi mais religioso do que os que pretenderam orientá-lo; não deu ouvidos nem às distinções nem às interpretações dos tribunos. Quando o mesmo povo quis retirar-se para o Monte Sagrado, sentiu-se preso ao juramento que havia feito aos cônsules de segui-los na guerra; fez planos de matá-los; fizeram-lhe compreender que o juramento ainda subsistia. Podemos avaliar, pelo crime que pretendia cometer, a ideia que esse povo tinha da violação do juramento. Depois da batalha de Canes, o povo aterrorizado quis refugiar-se na Sicília. Cipião obrigou-o a jurar que permaneceria em Roma; o temor de violar o juramento superou qualquer outro temor. Roma era um barco seguro por duas âncoras no meio da tempestade: a religião e os costumes. CAPÍTULO XIV Como a menor modificação na constituição acarreta a ruína dos princípios Aristóteles fala-nos da república de Cartago como de uma república muito bem regulamentada. Políbio diz-nos que, por ocasião da Segunda Guerra Púnica, existia em Cartago este inconveniente: o senado perdera quase toda a autoridade. Tito Lívio ensina-nos que, quando Aníbal retornou a Cartago, descobriu que os magistrados e os principais cidadãos desviavam em seu benefício a renda pública e exorbitavam seus poderes. A virtude dos magistrados decaiu, portanto, com a autoridade do senado; tudo decorreu do mesmo princípio. Conhecemos os prodígios da censura entre os romanos. Houve época, porém, em que ela se tornou molesta mas foi mantida porque existia mais luxo do que corrupção. Cláudio afrouxou-a e, com esse afrouxamento, a corrupção tornou-se ainda maior que o luxo; e a censura aboliu, por assim dizer, a si mesma. Perturbada, exigida, retomada, abandonada, a censura foi totalmente interrompida até a época em que se tornou inútil, isto é, no reinado de Augusto e de Cláudio. CAPÍTULO XV Meios muito eficazes para a conservação dos três princípios Só me poderei fazer entender quando os quatro capítulos seguintes forem lidos. CAPÍTULO XVI Propriedades distintivas da república É da natureza de uma república que seu território seja pequeno; sem isso, ela dificilmente pode subsistir. Numa grande república há grandes fortunas e, consequentemente, pouca moderação nos espíritos; há enormes depósitos a se colocar nas mãos de um cidadão; os interesses individualizam-se; um homem sente, em primeiro lugar, que poderá ser feliz, poderoso, sem sua pátria; e, logo, que só poderá ser poderoso sobre as ruínas da pátria. Numa grande república, o bem comum é sacrificado a mil considerações, é subordinado às exceções, depende dos acidentes. Numa república pequena, o bem comum é melhor percebido, melhor conhecido, mais próximo de cada cidadão; os abusos são menos amplos e, consequentemente, menos protegidos. O que fez a Lacedemônia subsistir tanto tempo foi que, após todas suas guerras, ela continuou sempre com seu território. O único objetivo da Lacedemônia era a liberdade; a única vantagem de sua liberdade era a glória. Foi próprio do espírito das repúblicas gregas contentar-se com suas terras e com suas leis. Atenas tornou-se ambiciosa e influenciou a Lacedemônia: mas isso foi mais para dirigir povos livres do que para governar escravos; mais para ser a cabeça da união do que para rompê-la. Tudo se perdeu quando uma monarquia, governo cujo espírito está mais voltado para o engrandecimento, surgiu. Sem circunstâncias específicas é difícil que qualquer outro governo que não fosse o republicano pudesse subsistir em apenas uma cidade. Um príncipe de um Estado tão pequeno procuraria, naturalmente, oprimir, porque disporia de um grande poder e de poucos meios para fruí-lo ou para fazê-lo respeitar: tripudiaria, portanto, sobre muitos de seus povos. Por outro lado, tal príncipe seria fàcilmente oprimido por uma força estrangeira ou mesmo por uma força interna; o povo poderia, a qualquer momento, coligar-se e reunir-se contra ele. Ora, quando um príncipe de uma cidade é expulso dela, o processo terminou; se ele possui várias cidades, o processo está apenas começando. CAPÍTULO XVII Propriedades distintivas da monarquia Um Estado monárquico deve ser de tamanho medíocre. Se fosse pequeno, transformar-se-ia em república; se fosse muito extenso, os principais do Estado, poderosos por si mesmos, não estando sob as vistas do príncipe, tendo suas cortes fora da corte do príncipe, protegidos, aliás, pelas leis e pelos costumes contra as execuções rápidas, poderiam deixar de obedecer: não temeriam uma punição muito lenta e muito longínqua. Assim, Carlos Magno, nem bem tendo acabado de fundar seu império, foi obrigado a dividi-lo, seja porque os governadores das províncias não obedeciam, seja porque, para obrigá-los a obedecer melhor, fosse necessário dividir o império em diversos reinados. Depois da morte de Alexandre, seu império foi dividido. Como os poderosos da Grécia e da Macedônia, livres ou pelo menos chefes de conquistadores, espalhados nessa vasta conquista, teriam podido obedecer? Depois da morte de Átila, seu império dissolveu-se: tantos reis que não eram mais refreados não podiam retomar as rédeas. O rápido estabelecimento do poder ilimitado é o único remédio que, nesses casos, pode evitar o desmembramento: novo flagelo depois do engrandecimento! Os rios correm para se juntar aos mares: as monarquias perdem-se no despotismo. CAPÍTULO XVIII De como a monarquia espanhola era um caso particular Que não se cite o exemplo da Espanha pois ele prova antes o que eu disse. Para conservar a América, ela fez o que o despotismo nunca fizera: aniquilou os habitantes. Fora preciso, para conservar sua colônia, mantê-la na dependência de sua própria subsistência. A monarquia espanhola experimentou implantar o despotismo nos Países-Baixos mas logo que o abandonou suas dificuldades aumentaram. Por um lado, os valões não quiseram ser governados pelos espanhóis e, por outro lado, os soldados espanhóis não quiseram obedecer aos oficiais valões. Ela só se manteve, na Itália, à força de enriquecê-la e de se arruinar, pois, os que tivessem querido desfazer-se do rei da Espanha, não estariam dispostos a renunciar a seu dinheiro. CAPÍTULO XIX Propriedades distintivas do governo despótico Um grande império supõe uma autoridade despótica naquele que governa. Cumpre que a presteza nas resoluções supra a distância dos lugares para onde são enviadas; que o temor impeça a negligência do governador ou do magistrado distante; que a lei seja ditada por apenas uma pessoa e que ela seja incessantemente substituída, tal como os acidentes que se multiplicam sempre no Estado, na proporção de sua grandeza. CAPÍTULO XX Consequência dos capítulos precedentes Sendo a propriedade natural dos pequenos Estados serem governados como república, a dos Estados de tamanho medíocre serem submetidos a um monarca, a dos grandes impérios serem dominados por um déspota, segue-se que, para manter os princípios do governo estabelecido é necessário manter o Estado na grandeza que já tinha; e que esse Estado mude de espírito à medida que seus limites forem reduzidos ou ampliados. CAPÍTULO XXI Do império da China Antes de terminar este livro, responderei a uma objeção que se poderá fazer sobre tudo o que disse até aqui. Nossos missionários falam-nos do vasto império da China como sendo um governo admirável que inclui ao mesmo tempo em seu espírito, o temor, a honra e a virtude. Terei estabelecido, portanto, uma diferenciação inútil quando coloquei os princípios dos três governos. Ignoro o que seja essa honra de que se fala entre povos que nada fazem senão a golpes de bastão. Demais, nossos comerciantes estão longe de nos darem a ideia desta virtude de que nos falam os missionários: podemos consultá-los a respeito das pilhagens dos mandarins. Recorro ainda ao testemunho do notável Milorde Anson. Aliás, as cartas do Pe. Parennin sobre o processo que o imperador moveu aos príncipes de sangue neófitos, que lhe tinham desagradado, permitem-nos perceber um plano constantemente seguido, e injúrias metodicamente feitas à natureza humana, isto é, a sangue frio. Temos ainda as cartas do Senhor de Mairan e do já citado Pe. Parennin sobre o governo da China. Após perguntas e respostas muito judiciosas, o maravilhoso dissipa-se. Não poderia acontecer que os missionários tivessem sido iludidos por uma aparência de ordem, que se tivessem impressionado com essa aplicação contínua da vontade de uma única pessoa, pela qual eles são governados e que tanto gostam de encontrar nas cortes dos reis da índia, porque lá indo apenas para realizar grandes reformas, lhes é mais cômodo convencer os príncipes de que podem fazer tudo, do que persuadir os povos que eles podem suportar tudo. Enfim, há frequentemente algo de verdade nos próprios erros. Circunstâncias específicas podem fazer com que o governo da China não seja tão corrompido como deveria sê-lo. Causas originadas, na maioria das vezes, do físico do clima, puderam forçar as causas morais neste país e fazer espécies de prodígios. O clima da China é de tal ordem que favorece prodigiosamente a propagação da espécie humana. As mulheres são de uma fecundidade tão grande que não encontramos, no mundo, nenhum exemplo semelhante. A mais cruel tirania não paralisa o progresso da propagação. O príncipe não pode dizer, como um Faraó: Oprimamo-los com prudência. Seria antes reduzido a formular a aspiração de Nero: que o gênero humano só possuísse uma cabeça. Apesar da tirania, a China, graças ao clima, povoar-se-á sempre e triunfará sobre a tirania. A China, como todos os países onde cresce o arroz, está sujeita a fomes constantes. Quando o povo morre de fome, ele se dispersa para procurar de que viver; em toda parte, formam-se bandos de três, quatro ou cinco assaltantes. A maioria é logo exterminada; os demais avolumam-se mas também são exterminados. Porém, com um número de províncias tão grandes e tão afastadas, pode acontecer que algum grupo obtenha êxito. Ele manter-se-á, fortificar-se-á, transformar-se-á em exército e marchará diretamente para a capital e o chefe ascenderá ao trono. A natureza da coisa é tal, que o mau governo será o primeiro a ser punido. A desordem nascerá repentinamente porque esse povo prodigioso carece de meios de subsistência. O que faz com que, em outros países, se corrijam tão dificilmente os abusos é que eles não têm efeitos sensíveis; o príncipe não é informado de um modo tão rápido e repentino como na China. Ele não sentirá, como nossos príncipes que, se governar mal, será menos feliz na outra vida, menos poderoso e menos rico nesta aqui e saberá que, se seu governo não for bom, perderá o império e a vida. Como, apesar do abandono dos filhos, a população, na China, continua aumentando, é necessário um trabalho infatigável para conseguir que a terra produza o que comer: isso exige uma grande atenção por parte do governo. Ele está sempre interessado em que todos possam trabalhar sem medo de serem frustrados em seus esforços. Deve ser menos um governo civil do que um governo doméstico. Eis o que produz a ordem de que tanto falam. Pretendeu-se aplicar as leis com despotismo mas o que está associado ao despotismo não mais possui força. Em vão esse despotismo, acossado por suas desgraças, quis se encadear; arma-se com suas cadeias e torna-se ainda mais terrível. A China é, portanto, um Estado despótico, cujo princípio é o temor. É possível que, nas primeiras dinastias, não sendo o império tão extenso, o governo afrouxasse um pouco esse espírito. Hoje, porém, isso não acontece. SEGUNDA PARTE LIVRO NONO - Das leis em sua relação com a força defensiva CAPÍTULO I Como as repúblicas garantem sua segurança Se uma república é pequena, ela é destruída por uma força estrangeira; se é grande, destrói-se por um vício interno. Esse duplo inconveniente contamina igualmente as democracias e as aristocracias, sejam elas boas ou más. O mal está na própria coisa: nada há que o possa remediar. Assim, há grandes indícios de que os homens teriam sido obrigados a viver sempre sob o governo de um só, se não tivessem imaginado um tipo de constituição que possui todas as vantagens internas do governo republicano e a força externa da monarquia. Refiro-me à república federativa. Esta forma de governo é uma convenção pela qual vários Corpos políticos consentem em tornar-se cidadãos de um Estado maior que querem formar. É uma sociedade de sociedades, que dela fazem uma nova, que pode ser aumentada pela união de novos associados. Foram essas associações que, durante tanto tempo, fizeram florescer o corpo da Grécia. Através delas os romanos atacaram o universo, e somente através delas o universo defendeu-se contra eles; e, quando Roma atingiu o ápice do poderio, foi por associações do outro lado do Danúbio e do Reno, associações que o terror construíra, que os bárbaros puderam resistir. É graças a tais associações que a Holanda, a Alemanha e as Ligas Suíças são encaradas, na Europa, como repúblicas eternas. As associações das cidades, outrora, eram mais necessárias do que atualmente. Uma cidade débil corria os maiores perigos. A conquista fazia-lhe perder não somente o poder executivo e legislativo, tal como acontece hoje, como ainda tudo a que há de propriedade entre os homens. Esse tipo de república, capaz de resistir à força exterior, pode manter-se em sua grandeza sem que o interior se corrompa: a forma dessa sociedade previne todos os inconvenientes. Quem pretendesse usurpar, dificilmente poderia ser acreditado em todos os Estados confederados, Se se tornasse muito poderoso em um, alarmaria todos os demais; se subjugasse uma parte, a que ainda estivesse livre, poderia resistir com forças independentes das que estariam usurpadas e vencê-lo antes que tivesse acabado de estabelecer-se. Se qualquer sedição ocorresse em um dos membros confederados, os outros poderiam apaziguá-lo. Se abusos se introduzissem em alguma parte, seriam corrigidos pelas outras partes sadias. Este Estado poderia perecer numa das partes sem que as demais também perecessem; a confederação poderia ser dissolvida permanecendo os confederados soberanos. Composta de pequenas repúblicas, gozaria da benignidade do governo interno de cada uma e, no que diz respeito ao exterior, teria, pela força da associação, todas as vantagens das grandes monarquias. CAPÍTULO II De como a constituição federal deve ser composta de Estados da mesma natureza, sobretudo de Estados republicanos. Os cananeus foram destruídos porque constituíam pequenas monarquias que não estavam confederadas e que não se defenderam conjuntamente. É que a confederação não é da natureza das pequenas monarquias. A república federativa da Alemanha compõe-se de cidades livres e de pequenos Estados submetidos a príncipes. A experiência demonstra que ela é mais imperfeita do que a da Holanda e a da Suíça. O espírito da monarquia é a guerra e o engrandecimento; o espírito da república é a paz e a moderação. Esses dois tipos de governos só podem subsistir numa república federativa de modo anormal. Desta maneira, vemos, na história romana que, quando os véios escolheram um rei, todas as pequenas repúblicas da Toscana os abandonaram. Na Grécia, tudo malogrou quando os reis da Macedônia obtiveram um lugar entre os anfictiões. A república federativa da Alemanha, composta de príncipes e cidades livres, subsiste porque possui um chefe que é, por assim dizer, o magistrado da união, e, por assim dizer, o monarca. CAPÍTULO III Outras coisas necessárias na república federativa Na república da Holanda, uma província não pode estabelecer uma aliança sem o consentimento das demais. Essa é uma lei muito boa e mesmo necessária na república federativa. Ela não existe na constituição germânica, onde preveniria as desgraças que podem ocorrer a todos os membros pela imprudência, pela ambição ou pela avareza de cada um. A república que se une a uma confederação política, entrega-se inteiramente e nada mais tem a entregar. É difícil que os Estados que se associam possuam a mesma grandeza e um poderio igual. A república dos lícios era uma associação composta de vinte e três cidades; as maiores possuíam, no conselho comum, direito a três votos; as medíocres, dois votos e as pequenas, um. A república da Holanda está formada por sete províncias, grandes ou pequenas, possuindo, cada província, um voto. As cidades da Licia pagavam tributos de acordo com os sufrágios. As províncias holandesas não podem estabelecer esta proporção; é necessário que estabeleçam de acordo com seu poderio. Na Lícia, os juízes e os magistrados das cidades eram eleitos para o conselho comum na proporção que acabamos de dizer. Na república da Holanda, eles não são eleitos para o conselho comum e cada cidade nomeia seus magistrados. Se fosse preciso apresentar um modelo de uma bela república federativa, ofereceria o da república da Lícia. CAPÍTULO IV Como os Estados despóticos garantem sua segurança Da mesma maneira como as repúblicas garantem sua segurança, unindo-se, os Estados despóticos garantem-na, separando-se e mantendo-se, por assim dizer, isolados. Sacrificam uma parte do país, devastam as fronteiras e tornam-nas desertas; o corpo do império torna-se inacessível. Admite-se, em geometria, que quanto mais os corpos se estendem, mais sua circunferência torna-se relativamente pequena. Esta prática de devastar as fronteiras é, portanto, mais tolerável nos grandes Estados do que nos medíocres. Esse Estado comete contra ele próprio todo o mal que poderia cometer um inimigo cruel, mas um inimigo que não se poderia deter. O Estado despótico se mantém por outra espécie de separação, que é feita, colocando-se as províncias afastadas nas mãos de um príncipe que fica como seu feudatário. A Mongólia, a Pérsia, os imperadores da China possuem seu feudatário; e os turcos ficaram muito satisfeitos por terem colocado, entre seus inimigos e eles, os tártaros, os moldavos, os valáquios e, outrora, os transilvanos. CAPÍTULO V Como a monarquia garante sua segurança A monarquia não se destrói a si mesma como o Estado despótico. Entretanto, um Estado de tamanho medíocre poderia ser invadido fàcilmente. Ele possui, portanto, praças fortes que defendem suas fronteiras, e exércitos para proteger essas praças fortes. A menor porção de território é defendida com arte, coragem, perseverança. Os Estados despóticos invadem-se entre si; só as monarquias fazem a guerra. As praças fortes pertencem às monarquias; os Estados despóticos temem possuí-las. Não se atrevem a confiá-las a ninguém, pois ninguém ama o Estado e o príncipe. CAPÍTULO VI Da força defensiva dos Estados em geral Para que um Estado esteja em pleno poderio, cumpre que sua grandeza seja tal que exista uma relação entre a rapidez com a qual se pode executar contra ele qualquer ataque, e a prontidão que ele pode empregar para neutralizá-lo. Como o agressor pode atacar em qualquer parte, é necessário que os defensores também possam defender-se em qualquer parte e, consequentemente, que o Estado seja de tamanho medíocre a fim de que seja proporcional ao grau de rapidez que a natureza ofereceu aos homens para se transportarem de um lugar a outro. A França e a Espanha são precisamente do tamanho requerido. As forças comunicam-se tão bem que se transportam no primeiro momento para onde se pretende; os exércitos reúnem-se e passam ràpidamente de uma fronteira a outra e não se teme nenhuma das coisas que precisam ser executadas num certo prazo. Na França, por admirável felicidade, a capital encontra-se mais perto das diferentes fronteiras, justamente na proporção da fraqueza delas e o príncipe vê melhor cada parte de seu país, na medida em que está mais exposta. Porém, quando um vasto Estado, tal como a Pérsia, é atacado, são necessários vários meses para que as tropas dispersas possam reunir-se e não se pode forçar sua marcha durante tanto tempo como se faz durante quinze dias. Se o exército que guarnece as fronteiras é derrotado, certamente ele dispersar-se-á porque suas retiradas não podem ser curtas. O exército vitorioso, que não encontra resistência, avança ràpidamente, surge diante da capital e estabelece o sítio, quando os governadores das províncias mal puderam ser avisados para enviar socorro. Os que julgam estar próxima a revolução, apressam-na não obedecendo mais, pois os súditos, fiéis unicamente porque a punição está próxima, não mais o serão a partir do momento em que a punição está afastada: trabalham por seus interesses particulares. O império dissolve-se, a capital é conquistada e o conquistador disputa as províncias aos governadores. O verdadeiro poder de um príncipe não consiste tanto na sua facilidade de conquistar mas na dificuldade que há em atacá-lo e, se assim ouso falar, na imutabilidade de sua condição. Mas o engrandecimento dos Estados lhes revela novos lados por onde podem ser conquistados. Desta forma, como os monarcas devem agir com sabedoria para aumentar seu poder, não devem ter menos prudência a fim de limitá-la. Fazendo cessar os inconvenientes da pequenez, é mister que tenham em mente os inconvenientes da grandeza. CAPÍTULO VII Reflexões Os inimigos de um grande príncipe, que reinou durante longo períodos, acusaram-no mil vezes, antes, creio, pelos temores que alimentavam, do que por suas razões, de ter formado e levado adiante o projeto da monarquia universal. Se ele tivesse obtido êxito, nada teria sido mais funesto à Europa, a seus antigos súditos, a ele, à sua família. O céu, que conhece as verdadeiras vantagens, serviu-o melhor pelas derrotas do que o teria feito pelas vitórias. Em lugar de torná-lo o único rei da Europa, favoreceu- o mais, tornando-o o mais poderoso de todos. Seu povo que, nos países estrangeiros, só se comove por aquilo que abandonou; que, saindo de sua casa, considera a glória como o supremo bem e, nos países distantes, como um obstáculo a seu retorno; que descontenta por suas próprias boas qualidades, porque a elas parece acrescentar o desprezo; que pode suportar os ferimentos, os perigos e as fadigas, mas não a perda de seus prazeres; que nada aprecia tanto como sua alegria, e se consola de uma batalha perdida louvando o general, nunca teria chegado até o fim de uma empresa, que não pode falhar num país sem falhar em todos os demais, nem falhar um momento sem falhar para sempre. CAPÍTULO VIII Caso em que a força defensiva de um Estado é inferior à sua força ofensiva Disse o Senhor de Coucy ao Rei Carlos "que os ingleses nunca foram tão fracos nem tão fáceis de serem vencidos como em seu país". É o que se dizia dos romanos; foi o que os cartagineses experimentaram fazer; é o que sucederá a toda potência que enviar exércitos para longe a fim de reunir, pela força da disciplina e do poder militar, os que estão divididos entre si por interesses políticos ou civis. O Estado acha-se enfraquecido por causa do mal que subsiste sempre, e é ainda enfraquecido pelo remédio. A máxima do Senhor de Coucy é uma exceção à regra geral, que ensina que não se empreendam guerras longínquas, e esta exceção confirma bem a regra, visto que só se aplica àqueles mesmos que a violaram. CAPÍTULO IX Da força relativa dos Estados Toda grandeza, toda força, todo poderio é relativo. É mister tomar cuidado para que ao se procurar aumentar a grandeza real, não se diminua a grandeza relativa. Pelos meados do reinado de Luís XIV, a França atingiu o ponto mais alto de sua grandeza relativa. A Alemanha não possuía ainda os grandes monarcas que posteriormente possuiu. A Itália estava no mesmo caso. A Escócia e a Inglaterra não formavam um corpo de monarquia. Aragão não estava unido a Castela; as partes separadas da Espanha estavam enfraqueci das por isso e enfraqueciam-na. A Moscóvia não era mais conhecida na Europa do que na Criméia. CAPÍTULO X Da fraqueza dos Estados vizinhos Quando se tem por vizinho um Estado que se encontra em decadência, deve-se abster de apressar sua ruína, porque se está, a este respeito, na mais feliz situação, nada havendo de mais cômodo para um príncipe que estar junto de outro que receba por ele todos os golpes e todos os ultrajes da fortuna. É raro que, pela conquista de tal Estado, se aumente tanto em poder efetivo quanto se perdeu em poder relativo. LIVRO DÉCIMO - Das leis em suas relações com a força ofensiva CAPÍTULO I Da força ofensiva A força ofensiva é regulada pelo direito das gentes, que é a lei política das nações, consideradas na relação que possuem entre si. CAPÍTULO II Da guerra A vida dos Estados é como a dos homens; estes têm direito de matar em caso de defesa natural; aqueles têm direito de fazer a guerra para a sua própria conservação. No caso de defesa natural, tenho direito de matar porque minha vida me pertence, como a vida do que me ataca lhe pertence; do mesmo modo, um Estado faz a guerra porque sua conservação é justa como qualquer outra conservação. Entre cidadãos, o direito de defesa natural não se relaciona com a necessidade de ataque. Em lugar de atacar, basta recorrer aos tribunais. Só podem, portanto, exercer o direito desta defesa em casos momentâneos em que se estaria perdido se se esperasse o auxílio das leis. Mas entre sociedades, o direito de defesa natural acarreta, algumas vezes, a necessidade de atacar, quando um povo vê que uma paz mais longa poria o outro em condição de destruí-lo, e que o ataque é, neste caso, o único meio de impedir esta destruição. Disso resulta que as pequenas sociedades têm, mais amiúde, o direito de guerrear do que as grandes, porque estão mais constantemente no caso de temer ser destruídas. O direito de guerra decorre, portanto, da necessidade e do justo exato. Se os que dirigem a consciência ou os conselhos dos príncipes não se atêm a isso, tudo está perdido; e, quando nos baseamos em princípios arbitrários de glória, conveniência, utilidade, ondas de sangue inundarão a terra. Sobretudo, que não se fale da glória do príncipe: sua glória seria seu orgulho; é uma paixão e não um direito legítimo. Verdade é que a reputação de seu poder poderia aumentar as forças de seu Estado, mas a reputação de sua justiça também as aumentaria. CAPÍTULO III Do direito de conquista Do direito da guerra decorre o da conquista, que lhe é consequente; deve, portanto, seguir-lhe o espírito. Quando um povo é conquistado, o direito que o conquistador tem sobre ele obedece a quatro gêneros de leis: a lei da Natureza, que determina que tudo tenda para a conservação das espécies; a lei do saber natural, que determina que façamos aos outros o que queremos que nos façam; a lei que forma as sociedades políticas, que são de tal ordem que a Natureza não lhes limitou a duração; finalmente, a lei extraída da própria coisa. A conquista é uma aquisição; o espírito de aquisição traz consigo o de conservação e de usufruto, e não o de destruição. Um Estado que conquistou outro trata-o de uma das quatro maneiras seguintes: continua a governá-lo segundo suas leis e só toma para si o exercício do governo político e civil; ou lhe dá novo governo político e civil; ou destrói a sociedade e a dispersa em outra; ou, enfim, extermina todos os cidadãos. O primeiro modo é conforme o direito das gentes que observamos atualmente; o quarto é mais conforme ao direito das gentes dos romanos, no que deixo para julgar até que ponto nos tornamos melhores. É necessário, aqui, render homenagem a nossos tempos modernos, à razão presente, à religião de hoje, à nossa filosofia, a nossos costumes. Os autores de nosso direito público, baseados nas histórias antigas, tendo saído dos casos rígidos, incidiram em grandes erros. Opinaram arbitràriamente; presumiram nos conquistadores um direito, não sei qual, de matar; o que lhes fez inferir consequências terríveis, como o princípio de estabelecer máximas que os próprios conquistadores, quando tiveram um mínimo de juízo, jamais seguiram. É evidente que, uma vez consumada a conquista, o conquistador perde o direito de matar, já que não se trata mais de defesa natural e de sua própria conservação. O que os fez pensar desse modo foi terem acreditado que o conquistador tinha direito de destruir a sociedade; de onde concluíram que tinha o de destruir os homens que a compõem, o que é consequência falsamente deduzi da de um princípio falaz; pois, pelo fato de ser aniquilada a sociedade, não decorre que os homens que a formam devam também ser aniquilados. A sociedade é a união dos homens e não os homens; o cidadão pode desaparecer, e o homem subsistir. Do direito de matar na conquista, os políticos inferiram o de reduzir à escravidão, mas a consequência é tão mal fundamentada quanto o princípio. Não se tem o direito de reduzir à servidão, a não ser quando isso é necessário para a conservação da conquista. O objetivo da conquista é a conservação; a servidão nunca é o objetivo da conquista, mas pode acontecer que seja um meio necessário para a conservação. Neste caso, é contrário à natureza da coisa que esta servidão seja eterna. É necessário que o povo escravizado possa tornar-se súdito. A escravidão na conquista é coisa acidental. Quando, depois de certo tempo, todas as partes do Estado conquistador ligaram-se às do Estado conquistado, por costumes, casamentos, leis, associações e certa conformidade de espírito, a servidão deve cessar, pois os direitos do conquistador só estão baseados no que aquelas coisas não são, e há tal distância entre as duas nações que uma não pode ter confiança na outra. Assim, o conquistador que reduz o povo à servidão deve sempre reservar-se meios (e esses meios são inumeráveis) para fazê-lo sair dela. Não afirmo aqui coisas vagas. Nossos antepassados que conquistaram o império romano, assim agiram. As leis que fizeram no fogo, na ação, na impetuosidade, no orgulho da vitória, eles as amenizaram: suas leis eram duras, eles tornaram-nas imparciais. Os borguinhões, os gôdos e os lombardos queriam sempre que os romanos fossem o povo vencido: as leis de Eurico, de Dondovaldo e de Rotáris fizeram do bárbaro e do romano concidadãos. Carlos Magno, para domar os saxões, tirou-lhes a condição de ingênuos e a propriedade dos bens. Luís, o Bonacheirão, libertou-os. Nada fez de melhor em todo seu reinado. O tempo e a servidão tinham abrandado seus costumes: foram-lhe sempre fiéis. CAPÍTULO IV Algumas vantagens do povo conquistado Em vez de extraírem do direito de conquista consequências tão fatais, os políticos teriam feito melhor se tivessem falado das vantagens que este direito pode, algumas vezes, trazer ao povo vencido. Tê-las-iam sentido melhor se nosso direito das gentes fosse exatamente seguido e estabelecido em toda a terra. Os Estados conquistados não estão, geralmente, no vigor de sua instituição; a corrupção neles se introduziu; as leis deixaram de ser executadas; o governo tornou-se opressor. Quem pode duvidar que semelhante Estado não aproveitasse e não tirasse algumas vantagens da própria conquista, se esta não fosse destrutiva! Um governo que chegou ao ponto em que não pode mais reformar a si mesmo, que perderia em ser refundido? Um conquistador que invadiu um país em que, por meio de mil astúcias e de mil artifícios, o rico utilizou-se, insensivelmente, de uma infinidade de meios de usurpar, em que o infeliz que geme, vendo, o que julgava, abusos transformarem-se em leis, vivendo sob a opressão, e julgando não ter razão de suportá-la, um conquistador, repito, pode transformar tudo, e a tirania surda é a primeira coisa que sofre a violência. Vimos, por exemplo, Estados oprimidos pelos contratadores serem aliviados pelo conquistador, que não tinha nem os compromissos nem as necessidades que tinha o príncipe legítimo. Os abusos eram corrigidos mesmo sem que o conquistador os corrigisse. Algumas vezes, a frugalidade da nação conquistadora coloca-a em condição de deixar aos vencidos o necessário que lhes era negado sob o reinado do príncipe legítimo. Uma conquista pode destruir os preconceitos nocivos e colocar, se ouso assim falar, um povo sob um melhor governo. Que benefícios os espanhóis podiam prestar aos mexicanos? Tinham para dar-lhes uma religião amena: levaram-lhes uma superstição furiosa, Teriam podido tornar livres os escravos, e tornaram os homens livres escravos. Podiam esclarecê-las sobre o abuso dos sacrifícios humanos; em vez disso, exterminaram-nos. Não acabaria nunca se quisesse relatar todos os benefícios que não fizeram e todos os males que fizeram. Cabe a um conquistador reparar parte dos males que causou. Defino da seguinte maneira o direito de conquista: um direito necessário, legítimo e negativo, que deixa sempre imensa dívida a ser paga, a fim de ficar quites com a natureza humana. CAPÍTULO V Gelon, rei de Siracusa O mais belo tratado de paz de que nos fala a História foi, creio, o que Gelon estabeleceu com os cartagineses. Quis que abolissem o costume de imolar seus filhos. Coisa admirável! Após ter derrotado trezentos mil cartagineses, exigia uma condição, que só era útil para esses últimos; ou, antes, estipulava a favor do gênero humano. Os bactrianos faziam com que os seus velhos pais fossem comidos por grandes cães: Alexandre proibiu-lhes esta prática; e foi um triunfo que ele alcançou sobre a superstição. CAPÍTULO VI Da república que conquista É contra a natureza das coisas que, numa constituição federativa, um Estado confederado subjugue outro, como vimos em nossos dias entre os suíços. Nas repúblicas federativas mistas, em que a associação se realiza entre pequenas repúblicas e pequenas monarquias isso é menos chocante. É ainda contra a natureza da coisa que uma república democrática conquiste cidades que se recusaram a participar da esfera da democracia. Cumpre que o povo conquistado possa fruir dos privilégios da soberania, tal como os romanos estabeleceram inicialmente. Deve-se limitar a conquista ao número de cidadãos que se fixará para a democracia. Se uma democracia conquista um povo para governá-lo como súdito, ela arriscará sua própria liberdade porque confiará um poder muito grande aos magistrados que enviará ao Estado conquistado. Em que perigo cairia a república de Cartago se Aníbal se tivesse apoderado de Roma? Que não teria feito à sua cidade, depois da vitória, ele que ocasionou tantas revoluções após sua derrota. Hanon nunca teria podido persuadir o senado a não enviar auxílio a Aníbal, se não tivesse feito apenas a sua inveja falar. Este senado, que Aristóteles conta-nos ter sido sábio (coisa que a prosperidade dessa república tão bem nos prova), só poderia ser determinado por motivos sensatos. Teria sido necessário ser muito estúpido para não perceber que um exército a trezentas léguas de distância, necessàriamente sofria perdas que deveriam ser reparadas. O partido de Hanon queria que se entregasse Aníbal aos romanos. Se no momento não se podia temer os romanos, temia-se Aníbal. Não se podia acreditar, dizem, nos êxitos de Aníbal; mas como duvidar deles: os cartagineses, disseminados por toda a terra, ignoravam o que se passava na Itália? Foi por não o ignorarem que não se quis enviar reforços a Aníbal. Hanon tornou-se mais obstinado depois de Trébia, depois de Trasimeno, depois de Canes: não foi sua incredulidade que aumentou; foi seu temor. CAPÍTULO VII Continuação do mesmo assunto As conquistas feitas pelas democracias acarretam ainda um inconveniente. Seu governo é sempre odioso para os Estados subjugados. É monárquico por ficção mas, na verdade, é mais duro do que o monárquico, como no-lo demonstra a experiência de todos os tempos e de todos os países. Os povos conquistados encontram-se numa lamentável condição; não usufruem nem das vantagens da república, nem das da monarquia. O que disse do Estado popular pode-se aplicar à aristocracia. CAPÍTULO VIII Continuação do mesmo assunto Deste modo, quando uma república mantém algum povo sob sua dependência, é necessário que procure reparar os inconvenientes surgidos da natureza da coisa, outorgando-lhe um bom direito político e boas leis civis. Uma república da Itália mantinha insulares sob sua obediência. Entretanto, o direito político e civil que lhes oferecia era corrompido. Lembramo-nos deste ato de anistia estipulando que só se condene a penas aflitivas estando o governador informado. Vimos frequentemente povos exigirem privilégios: aqui o soberano concede o direito de todas as nações. CAPÍTULO IX Da monarquia que conquista em torno de si Se uma monarquia pode agir durante longo tempo antes que o engrandecimento a tenha enfraquecido, ela se tornará temível e sua força perdurará por todo o tempo em que estiver pressionada por monarquias circunvizinhas. Portanto, ela não deve conquistar senão enquanto permanecer nos limites naturais de seu governo. A prudência manda que pare tão logo ultrapasse esses limites. É mister nesse gênero de conquista deixar as coisas tal como foram encontradas: os mesmos tribunais, as mesmas leis, os mesmos costumes, os mesmos privilégios. Somente o exército e o nome do soberano devem ser modificados. Quando a monarquia, pela conquista de algumas províncias vizinhas, ampliou seus limites, cumpre que ela as trate com grande brandura. Numa monarquia que durante muito tempo se esforçou para conquistar, as províncias de seu antigo domínio serão normalmente sobrecarregadas de exações. Elas devem suportar os novos e antigos abusos e, amiúde, uma vasta capital, que tudo absorve, as despovoa. Ora, se após ter conquistado em torno desse domínio, se tratasse aos povos vencidos como se trata aos antigos súditos, o Estado estaria perdido; o que as províncias conquistadas enviassem de tributo à capital não mais lhes retornaria; as fronteiras seriam arruinadas e, consequentemente, mais fracas; os povos seriam menos dedicados; a subsistência dos exércitos que devem aí permanecer e atuar seria mais precária. Tal é a situação necessária de uma monarquia conquistadora: luxo desenfreado na capital, miséria nas províncias que dela se afastam, abundância nas extremidades. É o que acontece com nosso planeta: o fogo está no centro, a vegetação na superfície, entre os dois, uma terra árida, fria e estéril. CAPÍTULO X De uma monarquia que conquista outra monarquia Ocorre, algumas vezes, uma monarquia conquistar outra. Quanto mais esta última for pequena, mais fàcilmente será contida por fortalezas; quanto maior for, mais fàcilmente será conservada pelas colônias. CAPÍTULO XI Dos costumes do povo vencido Nas conquistas, não basta permitir que a nação vencida conserve suas leis; possivelmente será mais necessário conservar seus costumes porque um povo sempre conhece, ama e defende mais seus costumes do que suas leis. Dizem os historiadores que os franceses foram expulsos nove vezes da Itália por causa da sua insolência com relação às mulheres e às moças, É demais para uma nação ter de suportar o orgulho do vencedor, sua incontinência e também sua indiscrição, indubitavelmente mais desagradável porque multiplica infinitamente os ultrajes. CAPÍTULO XII De uma lei de Ciro Não considero boa a lei que Ciro estabeleceu para que os lídios só pudessem exercer profissões vis, ou profissões infames. Vai-se às coisas mais urgentes; pensa-se nas revoltas e não nas invasões. Porém essas logo virão; os dois povos unem-se e corromper-se-ão mutuamente. Eu preferiria antes manter pelas leis a rudeza do povo vencedor do que sustentar com elas a indolência do povo vencido. Aristodemo, tirano de Cumes, procurou debilitar a coragem da juventude. Quis que os jovens deixassem crescer os cabelos, como moças, que os ornassem com flores e usassem vestidos de diferentes cores até o calcanhar; quis ele que, quando fossem à casa de seus professores de dança e de música, mulheres lhes trouxessem para-sóis, perfumes e leques; que, durante o banho, lhes trouxessem pentes e espelhos. Esta educação deveria durar até a idade de 20 anos. Isso só poderia convir a um pequeno tirano que arrisca sua soberania para defender a vida. CAPÍTULO XIII Carlos XII Este príncipe, que não fez uso senão de suas próprias forças, determinou sua queda ao formular desígnios que só poderiam ser executados através de uma longa guerra que o reino não poderia sustentar. Não foi um Estado decadente que ele procurou derrubar mas um império nascente. Os moscovitas serviram-se da guerra que ele lhes movia como uma escola. A cada derrota, mais aproximavam-se da vitória e, sendo derrotados no exterior, aprendiam a defender-se internamente. Carlos acreditava-se senhor do mundo nos desertos da Polônia, onde errava, e onde a Suécia estava como espalhada, enquanto seu principal inimigo se fortificava contra ele, cercava-o, estabelecia-se no mar Báltico, destruía e apoderava-se da Livônia. A Suécia assemelhava-se a um rio cujas águas eram interceptadas na nascente e desviadas em seu curso. Não foi Poltava que arruinou Carlos pois, se este não fosse derrotado neste lugar, o seria em outro. Os acidentes do acaso são fàcilmente reparáveis, mas não se pode conter acontecimentos que afloram continuamente da natureza das coisas. Porém a natureza e o acaso nunca foram mais poderosos contra Carlos XII do que ele próprio. Ele não se orientava pela disposição atual das coisas mas sobre certo modelo que tomara; e também o seguia muito mal. Não era Alexandre mas teria sido o melhor soldado de Alexandre. O projeto de Alexandre só foi bem sucedido porque este era sensato. Os malogros dos persas nas invasões que empreenderam contra os gregos, as conquistas de Agesilau e a retirada dos Dez Mil permitiram que se conhecesse com exatidão a superioridade grega na maneira de combater e no tipo de suas armas; e sabia-se bem que os persas eram muito poderosos para se corrigirem. Eles não podiam enfraquecer a Grécia dividindo-a, pois ela estava, então, reunida sob um chefe, o que não teria encontrado melhor meio para ocultar a servidão dos gregos do que deslumbrando-os pela destruição de seus inimigos eternos e pela esperança da conquista da Ásia. Um império cultivado pelo povo mais industrioso do mundo e que, pelo princípio da religião, lavrava a terra, fértil e abundante em todas as coisas, oferecia a um inimigo todo tipo de facilidades para aí subsistir. Poder-se-ia julgar, pelo orgulho de seus reis, sempre vamente mortificados pelas derrotas, que eles precipitariam sua queda, oferecendo-lhes sempre combate, e que a lisonja nunca permitiria que pudessem duvidar de sua grandeza. E não somente o projeto era sábio como foi sàbiamente executado. Alexandre, na rapidez de suas ações, no ardor de suas próprias paixões, possuía, se ouso me utilizar desse termo, um impulso de razão que o conduzia e que os que pretenderam fazer de sua história um romance e que tinham um espírito mais corrompido do que ele não puderam nos extorquir. Falemos dele com toda liberdade. CAPÍTULO XIV Alexandre Ele só partiu depois de ter garantido a Macedônia contra os povos bárbaros vizinhos e de ter acabado de submeter os gregos; só utilizou essa vitória para assegurar a execução de sua empresa; tornou impotente a inveja dos lacedemônios; atacou as províncias marítimas; fez com que seu exército bordejasse as costas para não ficar separado de sua frota; utilizou-se admiràvelmente bem da disciplina contra o número; não faltaram abastecimentos e, se é verdade que a vitória lhe deu tudo, ele também envidou todos os esforços para alcançar a vitória. No início de sua empresa, isto é, no momento em que uma derrota poderia derrubá-lo, deixou pouca coisa ao acaso; quando o êxito o colocou acima dos acontecimentos, a temeridade, algumas vezes, foi um de seus meios. Quando, antes de sua partida, marchou contra os tribalianos e os ilírios, assistimos a uma guerra semelhante a que César travou posteriormente contra os gauleses. Quando retornou à Grécia, foi como que contra sua vontade que tomou e destruiu Tebas: acampando cerca dessa cidade, esperou que os tebanos viessem estabelecer a paz; mas eles próprios precipitaram sua ruína. Quando se tratou de combater as forças marítimas da Pérsia, foi antes Parmênio que teve a audácia mas foi Alexandre que teve a sabedoria. Sua arte foi isolar os persas das costas marítimas e obrigar a que eles mesmos abandonassem sua marinha, no que eram superiores. Tiro era, por princípio, ligado aos persas, não podendo prescindir de seu comércio e de sua marinha; Alexandre destruiu-a. Conquistou o Egito que Dario deixara desguarnecido de tropas, enquanto mobilizava enormes exércitos em outro universo. A passagem de Granico fez com que Alexandre se tornasse senhor das colônias gregas; a batalha de Issus lhe deu Tiro e o Egito; a batalha de Arbelas lhe deu toda a terra. Depois da batalha de Isso, deixou que Dario escapasse, ocupando-se unicamente em garantir e organizar suas conquistas; depois da batalha de Arbelas, perseguiu-o tão de perto que não lhe deixou nenhum refúgio em seu império. Dario só entrava em suas cidades para tornar a sair: as marchas de Alexandre foram tão rápidas que acreditaríamos ver o império do universo antes como prêmio da corrida, como nos jogos gregos, do que como prêmio da vitória. Se assim obteve suas conquistas, vejamos como as conservou. Resistiu aos que pretendiam que ele tratasse os gregos como senhores e os persas como escravos; só pensou em unir as duas nações e em extinguir as diferenças entre povo conquistador e povo vencido. Abandonou, após a vitória, todos os preconceitos que lhe tinham proporcionado. Adotou os costumes dos persas para não afligi-los, fazendo-os adotar os costumes gregos. Isso é que fez com que mostrasse tanto respeito pela esposa e pela mãe de Dario e que revelasse tanta continência. Quem é esse conquistador cuja morte foi lamentada por todos os povos que dominou? Quem é esse usurpador, a cuja morte a família que destronou verteu tantas lágrimas? É um traço de sua vida, do qual os historiadores não nos contam que qualquer outro conquistador possa vangloriar-se. Nada consolida tanto uma conquista como a união feita entre dois povos pelos casamentos. Alexandre tomou por esposa mulheres das nações que submetera: quis que os de sua corte também as tomassem: os outros macedônios seguiram seu exemplo. Os francos e os borguinhões permitiram esse tipo de casamento; os visigodos, na Espanha, proibiram-no mas logo o permitiram; os lombardos não somente o permitiram como o favoreceram. Quando os romanos pretenderam enfraquecer a Macedônia, estipularam que não se poderiam realizar uniões pelo casamento entre os povos das províncias. Alexandre, que procurava unir os dois povos, pensou em criar, na Pérsia, numerosas colônias gregas. Construiu uma infinidade de cidades e cimentou tão bem todas as partes deste novo império que, depois de sua morte, na perturbação e confusão das mais horrorosas guerras civis, depois que os gregos, por assim dizer, aniquilaram a eles próprios, nenhuma província persa revoltou-se. Para não esgotar a Grécia e a Macedônia, enviou a Alexandria uma colônia de judeus: não lhe importava os costumes desses povos, desde que lhe fossem fiéis. Não apenas deixou aos povos vencidos seus costumes, como ainda lhes conservou suas leis civis e, frequentemente, reis e governadores que encontrara. Colocou os macedônios à frente das tropas e os habitantes do país na direção do governo; preferia arriscar-se a alguma infidelidade particular (o que algumas vezes lhe aconteceu) do que a uma revolta geral. Respeitou as antigas tradições e todos os movimentos da glória ou da vaidade dos povos. Os reis da Pérsia tinham destruído os templos dos gregos, dos babilônios e dos egípcios; eles restabeleceu-os; poucas foram as nações que se lhe submeteram, em cujos altares não fez sacrifícios. Parecia que só tinha conquistado para ser o monarca particular de cada nação e o primeiro cidadão de cada cidade. Os romanos conquistaram tudo para tudo destruir; ele quis tudo conquistar para tudo conservar e, qualquer que fosse o país que percorresse, suas primeiras ideias, seus primeiros desígnios, foram sempre fazer alguma coisa que pudesse aumentar sua prosperidade e poder. Na grandeza de seu gênio, encontrou os primeiros meios; os segundos, em sua frugalidade e em sua economia particular, os terceiros, em sua imensa prodigalidade pelas grandes-coisas. Sua mão se fechava para as despesas privadas e só se abria para as despesas públicas. Se era necessário organizar sua casa, ele era um macedônio; se era necessário pagar os soldos dos soldados, partilhar com os gregos sua conquista, fazer a fortuna de cada homem de seu exército, ele era Alexandre. Cometeu duas más ações: queimou Persépolis e assassinou Clito. Tornou-os célebres por seu arrependimento, de modo que esquecemos suas ações criminosas para lembrarmo-nos de seu respeito pela virtude; assim, foram elas consideradas antes como desgraça do que como coisas que lhe eram próprias; assim, a posteridade encontra a beleza de sua alma quase ao lado de seus arrebatamentos e de suas fraquezas; assim, foi possível lamentá-lo mas não foi possível odiá-lo. Compará-lo-ei a César. Quando César quis imitar os reis da Ásia, atormentou os romanos, por uma coisa de pura ostentação; quando Alexandre quis imitar os reis da Ásia, fez uma coisa que entrava no plano de sua conquista. CAPÍTULO XV Novos meios de conservar a conquista Quando um monarca conquista um grande Estado, há um costume admirável, igualmente capaz de moderar o despotismo e conservar a conquista; os conquistadores da China utilizaram- no. Para não desesperar o povo vencido e para não ensoberbecer o vencedor, para impedir que o governo se torne militar e para manter os dois povos no dever, a família tártara, que atualmente reina na China, estabeleceu que cada corpo de tropas, nas províncias, seria composto, metade de chineses e metade de tártaros, a fim de que a inveja se contivesse no dever. Também os tribunais eram compostos, metade de chineses, metade de tártaros. Isso produziu vários efeitos positivos: 1º, as duas nações se contêm mutuamente; 2º, ambas conservam o poderio militar e civil e uma não destrói a outra; 3º, a nação conquistadora pode expandir-se por toda parte sem se enfraquecer e se arruinar, tornando-se capaz de resistir às guerras civis e estrangeiras. Trata-se de uma instituição muito sensata, e a ausência de solução semelhante perdeu quase todos que conquistaram a terra. CAPÍTULO XVI De um Estado despótico que conquista Quando a conquista é imensa, ela acarreta o despotismo, pois, nestas condições, o exército espalhado nas províncias não é suficiente. Cumpre que sempre exista em torno do príncipe um corpo particular de absoluta confiança, sempre pronto a lançar-se sobre a parte do império que possa agitar-se. Esta milícia deve conter as demais e aterrorizar todos os que, no império, foram obrigados a perder certa autoridade. Há, em torno do imperador da China, um poderoso corpo de tártaros sempre preparados para qualquer eventualidade. Entre os mongóis, entre os turcos, no Japão, há uma guarda a soldo do príncipe, independentemente da que é mantida pela renda das terras. Essas forças particulares mantêm o respeito das gerais. CAPÍTULO XVII Continuação do mesmo assunto Dissemos que os Estados conquistados pelo monarca despótico devem ser feudatários. Os historiadores esgotam-se em elogios sobre as generosidades dos conquistadores que restituíram a coroa aos príncipes que derrotaram. Os romanos eram, portanto, muito generosos, pois em toda parte, criavam reis, a fim de possuir instrumento de servidão. Tal ação é um ato necessário. Se o conquistador conserva o Estado conquistado, os governadores que enviar não poderão conter os súditos, nem ele próprio seus governadores. Será obrigado a desguarnecer de tropas seu antigo patrimônio para garantir o novo. Todas as desgraças dos dois Estados serão comuns: a guerra civil de um será a guerra civil de outro. Mas se, ao contrário, o conquistador devolve o trono ao príncipe legítimo, terá um aliado necessário que, com forças que lhe serão próprias, aumentará as suas. Acabamos de ver Xá-Nadir conquistar os tesouros do Mogol e deixar-lhe o Hindustão. LIVRO DÉCIMO PRIMEIRO - Das leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição. CAPÍTULO I Ideia geral Distingo as leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição, das leis que a formam em sua relação com o cidadão. As primeiras serão o assunto deste livro; tratarei das segundas no livro seguinte. CAPÍTULO II Diversas significações dadas à palavra liberdade Não há palavra que tenha recebido as mais diferentes significações e que, de tantas maneiras, tenha impressionado os espíritos como a palavra liberdade. Uns tomaram-na pela facilidade em depor aquele a quem outorgaram um poder tirânico; outros, pela faculdade de eleger aquele a quem deveriam obedecer; outros, pelo direito de se armar, e de exercer a violência; estes, pelo privilégio de só serem governados por um homem de sua nação, ou por suas próprias leis. Certo povo considerou, por muito tempo, como liberdade o hábito de usar barbas compridas. Estes ligaram esse nome a uma forma de governo, excluindo as demais. Os que haviam experimentado o governo republicano situaram-na neste governo; os que haviam gozado do governo monárquico situaram-na na monarquia. Enfim, cada um chamou liberdade ao governo que se adequava aos seus costumes ou às suas inclinações; e, como, numa república, nem sempre temos diante dos olhos e de forma tão presente, os instrumentos dos males de que nos queixamos e, mesmo, como, nesta forma de governo, as leis parecem falar mais e os executores da lei menos, ela é colocada geralmente nas repúblicas e excluída das monarquias. Finalmente, como nas democracias o povo parece quase fazer o que deseja, ligou-se a liberdade a essas formas de governo e confundiu-se o poder do povo com sua liberdade. CAPÍTULO III O que é a liberdade É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso, Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdades é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. CAPÍTULO IV Continuação do mesmo assunto A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Estados livres. Encontra-se a liberdade política unicamente nos governos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos Estados moderados: só existe nesses últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele ; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite. CAPÍTULO V Do objetivo dos diversos Estados Apesar de todos os Estados possuírem, em geral, um mesmo objetivo, que é manter-se, cada Estado possui, entretanto, um que lhe é particular. A expansão era o objetivo de Roma; a guerra, da Lacedemônia; a religião, o das leis judaicas; o comércio, de Marselha; a tranquilidade pública, o das leis da China; a navegação, o das leis dos ródios; a liberdade natural é o objetivo do modo de vida dos selvagens; as delícias dos príncipes, o dos Estados despóticos; sua glória e a do Estado, o das monarquias; a independência de cada indivíduo é o objetivo das leis da Polônia, e o que disso resulta é a opressão de todos. Há também uma nação no mundo que tem por objetivo direto de sua constituição a liberdade política. Examinaremos os princípios sobre os quais ela a baseia. Se são bons, a liberdade aparecerá como num espelho. Para descobrir a liberdade política na constituição, não é necessário tanto esforço. Se essa pode ser vista onde se acha, se já foi encontrada, por que procurá-la? CAPÍTULO VI Da constituição da Inglaterra Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado. A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos. Na maior parte dos reinos da Europa, o governo é moderado, porque o príncipe, que tem os dois primeiros poderes, deixa a seus súditos o exercício do terceiro. Entre os turcos, onde esses três poderes estão reunidos na pessoa do sultão, reina um despotismo horroroso. Nas repúblicas da Itália, onde esses três poderes estão reunidos, há menos liberdade do que em nossas monarquias. Por isso, governo necessita, para manter-se, de meios tão violentos quanto governo dos turcos; provam-no os inquisidores de Estado, e o tronco em que todo delator pode, a qualquer momento, jogar um bilhete com sua acusação. Vede qual poderá ser a situação de um cidadão nessas repúblicas. O mesmo corpo de magistratura tem, como executor das leis, todo o poder que, como legislador, ele se atribuiu. Pode devastar o Estado com suas vontades gerais e, como possui também o poder de julgar, pode destruir cada cidadão por suas vontades particulares. Todo poder, nessas repúblicas, é uno; e, apesar de não haver pompa exterior que denuncie um príncipe despótico, percebemo-lo a cada instante. Desta maneira, os príncipes que quiseram tornar-se despóticos começaram sempre reunindo em sua pessoa todas as magistraturas; e vários reis da Europa, todos os grandes cargos de seu Estado. Creio, efetivamente, que a pura aristocracia hereditária das repúblicas da Itália não corresponde exatamente ao despotismo da Ásia. A multidão de magistrados algumas vezes suaviza a magistratura; nem sempre todos os nobres concorrem para os mesmos desígnios; formam-se diversos tribunais que se moderam. Assim, em Veneza, ao grande conselho cabe a legislação; ao pregadi, a execução; ao quaranties, o poder de julgar. Mas o mal é que esses tribunais diferentes são formados por magistrados do mesmo corpo, o que quase faz com que componham um mesmo poder. O poder de julgar não deve ser outorgado a um senado permanente mas exercido por pessoas extraídas do corpo do povo, num certo período do ano, de modo prescrito pela lei, para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessário. Desta maneira, o poder de julgar, tão terrível entre os homens, não estando ligado nem a certa situação, nem a certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não se tem constantemente juízes diante dos olhos e teme-se a magistratura mas não os magistrados. Cumpre mesmo que, nos grandes processos, o criminoso, juntamente com a lei, escolha os juízes, ou que, pelo menos, possa recusar tão grande número deles que os que sobrarem sejam tidos como de sua escolha. Os outros dois poderes poderiam, preferivelmente, ser outorgados a magistrados ou a corpos permanentes, porque não se exercem sobre nenhum indivíduo, sendo um somente a vontade geral do Estado e, outro, somente a execução dessa vontade geral. Porém, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos. É mister inclusive que os juízes sejam da condição do acusado ou seus pares, para que ele não possa persuadir-se de que caiu em mãos de pessoas inclinadas a lhe praticarem violências. Se o poder legislativo deixa ao executivo o direito de prender cidadãos que podem dar caução de seu procedimento, não há mais liberdade, a não ser que sejam detidos para responderem, sem prazo, a uma acusação que a lei tornou capital, caso em que são realmente livres, visto que só são submetidos ao poder da lei. Porém se o poder legislativo se julgasse em perigo, em virtude de alguma conjuração secreta contra o Estado ou algum acordo com os inimigos externos, poderia, por um prazo curto e limitado, permitir ao poder executivo mandar prender os cidadãos suspeitos, que só perderiam momentaneamente a liberdade, a fim de poder conservá-la para sempre. E o único meio concorde com a razão é substituir a tirânica magistratura dos éforos e dos inquisidores de Estado de Veneza, igualmente despóticos. Já que, num Estado livre, todo homem que supõe ter uma alma livre deve governar a si próprio, é necessário que o povo, no seu conjunto, possua o poder legislativo. Mas como isso é impossível nos grandes Estados, e sendo sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo, através de seus representantes, faça tudo o que não pode fazer por si mesmo. Conhecemos muito melhor as necessidades de nossa cidade do que as das outras e julgamos melhor da capacidade de nossos vizinhos do que das capacidades de nossos outros compatriotas. Não é necessário, portanto, que os membros do corpo legislativo sejam escolhidos geralmente do corpo da nação; mas convém que, em cada localidade principal, os habitantes elejam entre si um representante. A grande vantagem dos representantes é que são capazes de discutir os negócios públicos. O povo não é, de modo algum, capaz disso, fato que constitui um dos graves inconvenientes da democracia. Não é necessário que os representantes, que receberam dos que os elegeram uma instrução geral, recebam outra particular para cada questão, tal como se procede nas dietas da Alemanha. É verdade que deste modo a palavra dos deputados expressaria melhor a voz do povo; mas isso ocasionaria infinitas delongas, tornaria cada deputado senhor de todos os demais e, nas ocasiões mais urgentes, um capricho paralisaria toda a força da nação. Quando os deputados, diz muito corretamente Sidney, representam uma camada do povo, como na Holanda, devem prestar contas aos que os elegeram; a situação é diferente quando se trata de deputados eleitos pelos burgos, como na Inglaterra. Todos os cidadãos, nos diversos distritos, devem ter direito a dar seu voto para escolher o representante, exceto os que estão em tal estado de baixeza que são consideradas sem vontade própria. Havia um grande vício na maior parte das antigas repúblicas, pois que nelas o povo tinha direito de tomar resoluções ativas que exigem certa execução, coisa de que é inteiramente incapaz. Ele só deve participar do governo para escolher seus representantes, procedimento para o qual é bastante capaz. Portanto, se há poucos indivíduos que conhecem o grau exato da capacidade dos homens, cada um, contudo, é capaz de saber, em geral, se quem escolheu é mais lúcido do que a maioria dos outros. O corpo representante também não deve ser escolhido para tomar qualquer resolução ativa, coisa que não executaria bem, mas, sim, para fazer leis ou para ver se as que fez são bem executados, coisa que pode realizar muito bem, e que ninguém pode fazer melhor do que ele. Num Estado, há sempre pessoas dignificadas pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas honrarias; mas se se confundissem com o povo e só tivessem, como os outros, um voto, a liberdade comum seria sua escravidão e não teriam nenhum interesse em defendê-la, porque a maioria das resoluções seriam contra elas. A participação que tomam na legislação deve ser, portanto, proporcional às outras vantagens que têm no Estado, o que acontecerá se formarem um corpo que tenha o direito de sustar as iniciativas do povo, tal como o povo tem o direito de sustar as deles. Deste modo, o poder legislativo será confiado tanto à nobreza como ao corpo escolhido para representar o povo, cada qual com suas assembleias e deliberações à parte e objetivos e interesses separados. Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de algum modo, nulo. Restam apenas dois e, como esses poderes têm necessidade de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta de nobres é bastante capaz de produzir esse efeito. O corpo dos nobres deve ser hereditário. Ele o é primeiramente por sua natureza e, além disso, cumpre que tenha interesse muito forte para conservar suas prerrogativas, odiosas por si mesmas, e que, num Estado livre, devem estar sempre ameaçadas. Porém, como um poder hereditário poderia ser induzido a seguir seus interesses particulares e a esquecer os do povo, é necessário que nas coisas em que se tem supremo interesse em corrompê-lo, como nas leis referentes à arrecadação de dinheiro, ele só tome parte na legislação por sua faculdade de impedir e não por sua faculdade de estatuir. Chamo faculdade de estatuir o direito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado por outrem. Chamo faculdade de impedir o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro, o que constitui o poder dos tribunos de Roma. E, embora quem tenha a faculdade de impedir possa ter também o direito de aprovar, esta aprovação, entretanto, não é mais do que uma declaração de que não utilizará sua faculdade de impedir; e, portanto, a faculdade de aprovar deriva da de impedir. O poder executivo deve permanecer nas mãos de um monarca porque esta parte do governo, que quase sempre tem necessidade de uma ação momentânea, é melhor administrada por um do que por muitos; ao passo que o que depende do poder legislativo é, amiúde, mais bem ordenado por muitos do que por um só. Porque, se não houvesse monarca, e se o poder executivo fosse confiado a certo número de pessoas extraídas do corpo legislativo, não haveria mais liberdade, pois os dois poderes estariam unidos, neles tomando parte, algumas vezes ou sempre, as mesmas pessoas. Se o corpo legislativo ficasse durante muito tempo sem se reunir, não haveria mais liberdade pois, de duas coisas, uma aconteceria: ou não haveria mais resolução legislativa, e o Estado mergulharia na anarquia, ou estas resoluções seriam tomadas pelo poder executivo e ele tornar-se-ia absoluto. Seria inútil que o corpo legislativo estivesse sempre reunido. Isto seria incômodo para os representantes e além disso ocuparia muito o poder executivo que não pensaria em executar mas em defender suas prerrogativas e seu direito de executar. Demais, se o corpo legislativo estivesse continuamente reunido, poderia acontecer que apenas se ocupasse em suprir com novos deputados o lugar dos que morressem e, neste caso, se o corpo legislativo fosse uma vez corrompido, o mal seria irremediável. Quando diversos corpos legislativos se sucedem mutuamente, o povo, que tem má opinião do corpo legislativo atual, transfere, com razão, suas esperanças para o que virá depois. Mas tratando-se sempre do mesmo corpo, o povo, vendo-o uma vez corrompido, nada mais esperaria de suas leis: tornar-se- ia furioso ou cairia na indolência. O corpo legislativo não deve convocar a si próprio, pois um corpo só é considerado como tendo vontade quando está reunido. E, se ele não se convocasse por unanimidade, não se poderia dizer que parte representaria verdadeiramente o corpo legislativo: a que se reuniu ou a que não se reuniu. Pois se tivesse direito a prorrogar a si próprio, poderia acontecer que ele nunca se prorrogasse, o que seria perigoso no caso em que se pretendesse atentar contra o poder executivo. Aliás, alguns períodos são mais convenientes do que outros para a assembleia do corpo legislativo; é necessário, portanto, que seja o poder executivo quem regulamente o momento da convocação e da duração dessas assembleias, com relação às circunstâncias que ele conhece. Se o poder executivo não tem o direito de vetar os empreendimentos do corpo legislativo, este último seria despótico porque, como pode atribuir a si próprio todo o poder que possa imaginar, destruiria todos os demais poderes. Mas não é preciso que o corpo legislativo tenha reciprocamente a faculdade de paralisar o poder executivo porque, tendo a execução limites por sua natureza, é inútil limitá-la, considerando-se também que o poder executivo exerce-se sempre sobre coisas momentâneas: o poder dos tribunos de Roma era pernicioso, porque vetava não apenas a legislação, como também a execução, fato que acarretava grandes males. Porém, se num Estado livre, o poder legislativo não deve ter o direito de sustar o poder executivo, tem o direito e deve ter a faculdade de examinar de que maneira as leis que promulga devem ser executadas. Esta é a vantagem que este governo possui sobre o de Creta e o da Lacedemônia, onde os cosmos e os éforos não prestam contas de sua administração. Entretanto, qualquer que seja esse exame, o corpo legislativo não deve ter o direito de julgar a pessoa e, por conseguinte, a conduta de quem executa. Sua pessoa deve ser sagrada porque, sendo necessária ao Estado a fim de que o corpo legislativo não se torne tirânico, desde o momento em que for acusada ou julgada, a liberdade desapareceria. Em tais casos, o Estado não seria uma monarquia mas uma república não livre. Mas, como quem executa, não pode executar mal sem ter maus conselheiros, que, como ministros, odeiam as leis, apesar de favorecê-las como homens, estes últimos podem ser perseguidos e punidos. E esta é a vantagem de tal governo, sobre o de Gnido, em que a lei não permite levar a julgamento os amimonas, não podendo o povo, mesmo após a sua administração, obter reparação pelas injustiças cometidas contra si. Apesar de que, em geral, o poder de julgar não deva estar ligado a nenhuma parte do legislativo, isso está sujeito a três exceções, baseadas no interesse particular de quem deve ser julgado. Os poderosos estão sempre expostos à inveja e se fossem julgados pelo povo, não fruiriam do privilégio que, num Estado livre, o mais humilde cidadão possui de ser julgado pelos seus pares. Cumpre, portanto, que os nobres sejam levados, não diante dos tribunais ordinários da nação, mais diante da parte do corpo legislativo composta de nobres. Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, fosse em certos casos muito rigorosa. Porém, os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor. É, portanto, a parte do corpo legislativo, que noutra ocasião dissemos ser um tribunal necessário, que aqui também é necessária; cabe à sua autoridade suprema moderar a lei em favor dela própria, pronunciando-a menos rigorosamente do que ela. Poderia ainda ocorrer que algum cidadão, nos negócios públicos, violasse os direitos do povo, cometendo crimes que os magistrados estabelecidos não saberiam ou não poderiam punir. Porém, em geral, o poder legislativo não pode julgar e o pode ainda menos neste caso específico, em que representa a parte interessada que é o povo. Assim, o poder legislativo só pode ser acusador. Mas diante de que ele acusaria? Rebaixar-se-ia diante dos tribunais da lei que lhe são inferiores e compostos, além disso, de pessoas que sendo povo como ele, seriam impressionadas pela autoridade de tão poderoso acusador? Não; para conservar a dignidade do povo e a segurança do indivíduo, é mister que a parte legislativa do povo faça suas acusações diante da parte legislativa dos nobres, a qual não possui nem os mesmos interesses que ele, nem as mesmas paixões. Esta é a vantagem que esse governo possui sobre a maioria das repúblicas antigas, onde este abuso existia: o povo era, ao mesmo tempo, juiz e acusador. O poder executivo, como dissemos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado de suas prerrogativas. Mas se o poder legislativo participar da execução, o poder executivo estará igualmente perdido. Se o monarca participasse da legislação pela faculdade de estatuir, não mais haveria liberdade. Porém, como é preciso que ele participe da legislação para se defender, cumpre que ele aí tome parte pela sua faculdade de impedir. A causa da mudança do governo em Roma foi que o senado, que tinha uma parte do poder executivo, e os magistrados, que possuíam a outra, não tinham, como o povo, a faculdade de impedir. Eis, assim, a constituição fundamental do governo de que falamos, O corpo legislativo, sendo composto de duas partes, uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir. Todas as duas serão paralisadas pelo poder executivo que o será, por sua vez, pelo poder legislativo. Estes três poderes deveriam formar uma pausa ou uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a caminhar, serão forçados a caminhar de acordo, O poder executivo, fazendo parte do legislativo apenas pela sua faculdade de impedir, não poderia participar dos debates das questões públicas. Não é mesmo necessário que as propostas partam dele porque, podendo sempre desaprovar as resoluções, pode rejeitar as decisões das proposições que desejaria não fossem feitas. Em algumas repúblicas antigas, em que o povo, em conjunto, participava dos debates dos negócios, era natural que o poder executivo os propusesse e os debatesse com o povo, sem o quê haveria nas resoluções uma confusão fora do comum. Se o poder executivo não estatui sobre a arrecadação do dinheiro público apenas pelo seu consentimento, não mais existiria liberdade, porque ele tornar-se-ia legislador no ponto mais importante da legislação. Se o poder legislativo estatui, não de ano em ano, mas para sempre, sobre a arrecadação do dinheiro público, corre o risco de perder sua liberdade, porque o poder executivo não mais dependerá dele e, quando se possui para sempre tal direito é assaz indiferente que o mantenha para si ou para outro. Acontece o mesmo se ele estatui, não de ano em ano mas para sempre, sobre as forças da terra e do mar, as quais deve confiar ao poder executivo. Para que quem execute não possa oprimir, é necessário que o exército que se lhe confie seja povo e que tenha o mesmo espírito que o povo, como aconteceu em Roma, até o período de Mário. E, para que assim seja, só há dois meios: ou que aqueles que participam dos exércitos possuam bens suficientes para responder por sua conduta diante dos outros cidadãos e que só sejam recrutados por um ano, tal como se praticava em Roma; ou, se se possui um corpo permanente de tropa em que os soldados são uma das partes mais vis da nação, é mister que o poder legislativo possa destituí-lo assim que desejar, que os soldados convivam com os cidadãos e que não tenham nem campo separado, nem casernas, nem praças de guerra. O exército, uma vez estabelecido, não deve depender, imediatamente, do corpo legislativo, mas do poder executivo; e isso pela natureza da coisa; seu feito consiste mais na ação do que na deliberação. É próprio da maneira de pensar dos homens que se dê mais importância à coragem do que à timidez, mais à atividade do que à prudência, mais à força do que aos conselhos. O exército desprezará sempre o senado e respeitará seus oficiais. Não dará atenção às ordens que lhe serão enviadas de um corpo composto de gente que crê tímida e, por isso, indigna de comandar. Assim, tão logo dependa o exército unicamente do corpo legislativo, o governo tornar-se-á militar. E, se alguma vez o contrário aconteceu, isso se deve à ação de algumas circunstâncias extraordinárias; ao fato de o exército estar sempre separado; ao fato de ser ele composto de vários corpos que dependem cada um de sua província particular; ao fato de as cidades capitais serem excelentes sítios que se defendem apenas por sua situação, e onde não há tropas. A Holanda encontra-se ainda em maior segurança do que Veneza; ela submergiria as tropas sublevadas, fá-las-ia morrer de fome. Estas não estão em cidades que lhes poderiam prover a subsistência; esta subsistência é, portanto, precária. E se, no caso em que o exército é governado pelo corpo legislativo, circunstâncias particulares impedem o governo de tornar-se militar, cair-se-á em outros inconvenientes; de duas, uma: ou será necessário que o exército destrua o governo, ou que o governo enfraqueça o exército. E este enfraquecimento teria uma causa bem fatal: originar-se-ia das próprias fraquezas do governo. Quem ler a admirável obra de Tácito Sobre os Costumes dos Germanos verá que foi deles que os ingleses extraíram a ideia do governo político. Este ótimo sistema foi encontrado na floresta. Assim como todas as coisas humanas têm um fim, o Estado ao qual nos referimos perderá sua liberdade, perecerá. Roma, Lacedemônia e Cartago pereceram completamente. Ele extinguir-se-á quando o poder legislativo for mais corrompido que o executivo. Não me cabe examinar se atualmente os ingleses gozam ou não dessa liberdade. É-me suficiente dizer que ela é estabeleci da pelas leis e eu nada mais procuro. Não pretendo com isso depreciar os demais governos, nem afirmar que esta liberdade política extremada deve mortificar os que apenas possuem uma liberdade limitada. Como poderia afirmar isso, eu que acredito que o próprio excesso da razão nem sempre é desejável e que os homens, quase sempre, se acomodam melhor no meio do que nas extremidades? Harrington, em seu Oceana, também examinou qual era o mais alto grau de liberdade que a constituição de um Estado podia atingir. Porém podemos dizer que ele só procurou esta liberdade depois de tê-la desprezado e que construiu Calcedônia tendo a costa de Bizâncio diante dos olhos. CAPÍTULO VII Das monarquias que conhecemos As monarquias que conhecemos não têm, como aquela a que acabamos de nos referir, a liberdade como seu objetivo direto; buscam somente a glória dos cidadãos, do Estado e do príncipe. Mas desta glória resulta um espírito de liberdade que, nesses Estados, pode também construir grandes coisas e talvez contribuir tanto para a felicidade como a própria liberdade. Os três poderes, nessas monarquias, não são divididos e calcados no modelo da constituição à qual nos referimos. Cada um deles possui uma divisão particular, segundo a qual eles se aproximam mais ou menos da liberdade política e, se dela não se aproximassem, a monarquia degeneraria em despotismo. CAPÍTULO VIII Por que os Antigos não tinham uma ideia bem clara da monarquia Os Antigos não conheciam o governo baseado num corpo de nobreza e ainda menos o governo baseado num corpo legislativo formado pelos representantes de uma nação. As repúblicas da Grécia e da Itália eram cidades que possuíam, cada uma delas, seu governo e que reuniam seus cidadãos em suas muralhas. Antes que os romanos tivessem absorvido todas as repúblicas, quase não existia rei em parte alguma, na Itália, na Gália, na Espanha, na Alemanha; todas essas regiões eram constituídas de pequenos povos ou de pequenas repúblicas; a própria África estava submetida a outra maior; a Ásia Menor estava ocupada pelas colônias gregas. Não havia, portanto, exemplo de deputados de cidades, nem de assembleias de Estados; seria preciso ir até a Pérsia para encontrar o governo de um só. É verdade que existiam repúblicas federativas e várias cidades enviavam deputados a uma assembleia. Mas afirmo que não havia monarquia calcada naquele modelo. Eis como se formou o primeiro esboço das monarquias que conhecemos. As nações germânicas que conquistaram o império romano eram, como sabemos, muito livres. Sobre isso é suficiente ver Tácito, Sobre os Costumes dos Germanos. Os conquistadores disseminaram-se pela região; habitavam os campos e pouco as cidades. Quando estavam na Germânia, todo o povo podia ser reunido. Quando, pela conquista, foram dispersados, isso não mais era possível. Era mister, entretanto, que a nação deliberasse sobre seus problemas tal como fazia antes da conquista, e ela o fez através de seus representantes. Eis a origem do governo gótico entre nós. Foi inicialmente um misto de aristocracia e de monarquia. Havia o inconveniente de o baixo povo ser aí escravo. Era um bom governo que tinha em si a possibilidade de tornar-se melhor. Surgiu o costume de conceder cartas de alforria e logo a liberdade civil do povo, as prerrogativas da nobreza e do clero, o poderio dos reis, encontraram-se tão bem concertados que não creio que tivesse existido na terra governo tão bem harmonizado como este que existiu em cada parte da Europa, durante o período que subsistiu. E é admirável que a corrupção do governo de um povo conquistador tenha formado a melhor forma de governo que os homens puderam imaginar. CAPÍTULO IX Maneira de pensar de Aristóteles A confusão de Aristóteles aparece claramente quando ele trata da monarquia. Estabelece cinco espécies e não as diferencia pela forma da constituição mas pelas coisas acidentais, como as virtudes ou os vícios do príncipe, ou pelas coisas estranhas, como a usurpação da tirania ou a sucessão da tirania. Aristóteles coloca na classe das monarquias o império dos persas e o reino da Lacedemônia. Mas quem não vê que um era um Estado despótico e outro uma república? Os Antigos, que não conheciam a divisão dos três poderes no governo de um só, não podiam ter uma ideia correta da monarquia. CAPÍTULO X Maneira de pensar dos outros políticos Para amenizar o governo de um só, Arribas, Rei de Epiro, não imaginou senão uma república. Os molossos, não sabendo como restringir o mesmo poder, escolheram dois reis: com isso enfraqueciam mais o Estado do que o comando; quiseram rivais e tiveram inimigos. Somente na Lacedemônia dois reis eram toleráveis; eles não formavam a constituição, mas eram uma de suas partes. CAPÍTULO XI Dos reis dos tempos heroicos entre os gregos Entre os gregos, nos tempos heroicos, estabeleceu-se uma espécie de monarquia que não subsistiu. Os que tinham inventado as artes, feito a guerra pelo povo, reunido os homens dispersos, ou que lhes tinham distribuído terras, obtinham para si o reino e legavam-no para seus filhos. Eram reis, sacerdotes ou juízes. Trata-se de uma das cinco espécies de monarquia de que nos fala Aristóteles é a única que pode lembrar a ideia da constituição monárquica. Mas o plano desta constituição é oposto ao das monarquias atuais. Os três poderes estavam divididos de maneira que o povo tinha o poder legislativo, e o rei o poder executivo, juntamente com o poder de julgar, enquanto nas monarquias que conhecemos, o príncipe possui o poder executivo e legislativo ou, pelo menos, uma parte do legislativo, mas não julga. No governo dos reis dos tempos heroicos, os três poderes eram mal distribuídos. Estas monarquias não podiam subsistir porque, desde que possuía a legislação, o povo podia, ao menor capricho, destruir o reinado, tal como o fez em toda parte. Num povo livre, possuidor do poder legislativo; num povo encerrado numa cidade, onde tudo que é odioso torna-se ainda mais odioso, a obra-prima da legislação é saber situar bem o poder de julgar. Mas ele não podia estar mais mal colocado do que nas mãos de quem já tinha o poder executivo. A partir deste momento, o monarca tornou-se terrível. Porém, como ele não possuía a legislação, não podia defender-se contra ela e, ao mesmo tempo, tinha muito poder mas não tinha o suficiente. Não se descobrira ainda que a verdadeira função do príncipe era estabelecer juízes e não ele próprio julgar. A política contrária tornava o governo de um só insuportável. Todos esses reis foram expulsos. Os gregos não imaginaram a verdadeira distribuição dos três poderes no governo de um só; só o imaginaram no governo de vários e denominaram esse tipo de constituição, policia. CAPÍTULO XII Do governo dos reis de Roma e de como os três poderes foram distribuídos O governo dos reis de Roma tinha alguma relação com o dos reis dos tempos heroicos entre os gregos. Esse poder caiu, tal como os demais, por seu vício geral, apesar de que, em si mesmo e em sua natureza particular, fosse ótimo. Para explicar esse governo, distinguiria o dos cinco primeiros reis, o de Sérvio Túlio e o de Tarquínio. A coroa era eletiva e, durante os cinco primeiros reis, cabia ao senado a parte mais importante da eleição. Depois da morte do rei, o senado examinava se seria conservada a forma de governo que estava estabelecida. Se considerava útil conservá-la, nomeava um magistrado extraído de seu corpo, que elegia um rei; o senado deveria aprovar a eleição, o povo confirmá-la e os auspícios garanti-la. Se uma das três condições falhasse, seria necessário realizar outra eleição. A constituição era monárquica, aristocrática e popular, e tal nem inveja, nem disputa. O rei comandava os exércitos e tinha a intendência dos sacrifícios; tinha o poder de julgar as questões foi a harmonia do poder que não se viu, nos primeiros reinados, civis e criminais; convocava o senado, reunia o povo, atribuía-lhe certas questões e regulamentava as demais com o senado. O senado possuía grande autoridade. Os reis amiúde convidavam os senadores para julgar com eles; não levavam nenhuma questão ao povo antes que ela tivesse sido deliberada no senado. O povo tinha direito de eleger os magistrados, de aceitar novas leis e, quando o rei o permitia, de declarar guerra e concluir a paz. Não tinha de maneira alguma o poder de julgar. Quando Túlio Hostílio atribuiu ao povo o julgamento de Horácio, ele teve razões particulares, que se encontram em Dionísio de Halicarnasso. Na época de Sérvio Túlio a constituição mudou. O senado não participou de sua eleição; ele se fez proclamar pelo povo, despojou-se dos julgamentos civis, reservando para si apenas os criminais, entregou diretamente ao povo todas as questões, amenizou-o das taxas e colocou todo o peso delas sobre os patrícios. Assim, à medida que enfraquecia o poder real e a autoridade do senado, aumentava o poder do povo. Tarquínio não se fez eleger nem pelo senado, nem pelo povo. Considerava Sérvio Túlio um usurpador e tomou a coroa como um direito hereditário; exterminou a maioria dos senadores, não mais consultou os que sobraram e nem mesmo os convidou para seus julgamentos. Seu poderio aumentou, porém o que havia de odioso nesse poderio tornou-se ainda mais odioso. Ele usurpou o poder do povo; estabeleceu leis sem ele e fê-las mesmo contra ele. Teria reunido os três poderes em sua pessoa, mas o povo lembrou-se por um momento que era legislador e Tarquínio deixou de existir. CAPÍTULO XIII Reflexões gerais sobre o Estado de Roma depois da expulsão dos reis Nunca se pode abandonar os romanos. Assim é que ainda hoje, em sua capital, deixam-se os novos palácios para ir-se à procura de ruínas; assim é que o olho que repousou no esmalte das pradarias aspira a rever as rochas e as montanhas. As famílias patrícias tiveram, em todos os períodos, grandes prerrogativas. Tais privilégios, importantes na época dos reis, tornaram-se ainda mais depois da expulsão deles. Isso acarretou a inveja dos plebeus que pretenderam rebaixá-los. As contestações chocavam-se contra a constituição sem enfraquecer o governo, porque, dado que os magistrados conservassem sua autoridade, era assaz indiferente a família a que pertencessem os magistrados. Uma monarquia eletiva, como a de Roma, supõe necessàriamente um corpo aristocrático poderoso que a garanta, sem o que ela se transforma, de início, em tirania ou em Estado popular. Porém um Estado popular não tem necessidade dessa distinção de famílias para se manter. Isso fez com que os patrícios, os quais, na época dos reis, eram partes necessárias da constituição, se tornassem uma parte supérflua no tempo dos cônsules; o povo pôde rebaixá-los sem destruir a si próprio, e mudar a constituição sem corrompê-la. Quando Sérvio Túlio aviltou os patrícios, Roma foi obrigada a passar das mãos dos reis para as do povo. Mas o povo, rebaixando os patrícios, não precisou temer cair novamente nas mãos dos reis. De duas maneiras um Estado pode transformar-se: ou porque a constituição se corrige ou porque ela se corrompe. Se conservou seus princípios e a constituição modifica-se, é porque ela se corrige; se perdeu seus princípios e a constituição vem a ser modificada, é que ela se corrompe. Roma, após a expulsão dos reis, deveria ser uma democracia. O povo já possuía o poder legislativo: fora seu sufrágio unânime que expulsara os reis; e se não persistisse nesta vontade, os Tarquínios, em qualquer momento, poderiam retomar. Não é lógico supor que o povo pretendeu expulsá-los para cair na escravidão de algumas famílias. A situação exigia, portanto, que Roma fosse uma democracia, e entretanto ela não o era. Teria sido necessário moderar o poder dos principais e que as leis tendessem para a democracia. Frequentemente os Estados florescem mais na passagem insensível de uma constituição a outra do que o fazem em uma ou outra dessas constituições. É então que todas as molas do governo estão distendidas, que todos os cidadãos têm pretensões, que se hostiliza ou bajula e que há uma nobre emulação entre os que defendem a constituição que agoniza e os que levam avante a que prevalece. CAPÍTULO XIV Como a distribuição dos três poderes começou a mudar depois da expulsão dos reis. Quatro coisas principalmente obstavam a liberdade de Roma. Apenas os patrícios obtinham todos os empregos sagrados, políticos, civis e militares; havia-se atribuído ao consulado um poder exorbitante, ultrajava-se o povo e, finalmente, não se lhe deixava quase nenhuma influência nos sufrágios. Foram esses quatro abusos que o povo corrigiu. 1º Estabeleceu que existiriam magistraturas as quais os plebeus pudessem pretender e obteve, paulatinamente, que o povo participaria de todas, exceto da do entre-rei. 2º O consulado foi decomposto e formaram-se diversas magistraturas. Criaram-se pretores+=, aos quais se outorgou o direito de julgar as questões privadas; nomearam-se questores para mandar julgar os crimes públicos; estabeleceram-se edis, aos quais se entregou a polícia; criaram-se tesoureiros que tiveram a administração do dinheiro público; finalmente, pela criação de censores, retirou-se aos cônsules a parte do poder legislativo que regulamentava os costumes dos cidadãos, e o controle momentâneo dos diversos corpos do Estado. As principais prerrogativas que restaram aos cônsules foram: presidir aos grandes Estados do povo, convocar o senado e comandar os exércitos. 3º As leis sagradas estabeleceram tribunos que podiam, a qualquer momento, sustar os empreendimentos dos patrícios, impedindo não somente as injúrias particulares como também as gerais. Enfim, os plebeus aumentaram sua influência nas decisões públicas. O povo romano estava dividido de três maneiras: por centúrias, por cúrias e por tribos; e quando ele dava seu sufrágio estava reunido e formado de uma dessas três maneiras. Na primeira, os patrícios, os principais, os ricos, o senado, o que era quase a mesma coisa, possuíam quase toda a autoridade; na segunda, tinham-na menos e, na terceira, ainda menos. A divisão por centúrias era antes uma divisão de censo e de riquezas do que uma divisão de pessoas. O povo todo estava distribuído em cento e noventa e três centúrias, possuindo um voto cada uma. Os patrícios e os principais formavam as noventa e oito primeiras centúrias; os cidadãos restantes estavam distribuídos em noventa e cinco outras. Eram os patrícios, portanto, nesta divisão, senhores dos sufrágios. Na divisão por cúrias, os patrícios não gozavam das mesmas vantagens. Todavia, possuíam-nas. Cumpria consultar os auspícios, dos quais os patrícios eram senhores; não se podia apresentar uma proposição ao povo se ela não tivesse sido, anteriormente, apresentada ao senado e aprovada por um senatus-consulto. Mas na divisão por tribo não havia nem auspícios, nem senatus-consulto, não sendo os patrícios aí admitidos. Ora, o povo procurou sempre fazer por cúrias as assembleias que se costumava fazer por centúrias, e a fazer por tribos as assembleias que se faziam pelas cúrias, fato que transferiu os negócios das mãos dos patrícios para a dos plebeus. Assim, quando os plebeus obtiveram o direito de julgar os patrícios, o que teve início quando do caso de Coriolano, os plebeus quiseram julgá-los reunidos por tribo e não por centúrias; e quando se estabeleceu em favor do povo as novas magistraturas de tribunos e de edis, o povo conseguiu que se reunisse por cúrias a fim de nomeá-los; e, quando seu poder foi consolidado, obteve que eles fossem nomeados numa assembleia por tribos. CAPÍTULO XV Como, no florescente Estado da república, Roma perdeu, subitamente, sua liberdade. No auge das disputas entre patrícios e plebeus, estes reclamaram que se lhes dessem leis fixas, a fim de que os julgamentos não fossem o resultado de uma vontade caprichosa ou de um poder arbitrário. Depois de muita resistência, o senado aquiesceu. Para fazer essas leis, nomearam-se decênviros. Pensou-se que se deveria outorgar-lhas grande poder, pois deveriam dar leis a facções que eram quase incompatíveis. Suspendeu-se a nomeação de todos os magistrados e, nos comícios, eles foram eleitos os únicos administradores da república e encontraram-se revestidos do poder consular e tribunício. O primeiro concedia-lhes o direito de convocar o senado e o outro o de convocar o povo; porém, eles não convocaram o senado nem o povo. Dez homens sozinhos possuíram, na república, todo o poder legislativo, todo o poder executivo, todo o poder dos julgamentos. Roma viu-se submetida a uma tirania tão cruel como a de Tarquínio. Quando este praticava suas arbitrariedades, Roma estava indignada com o poder que ele usurpara; quando os decênviros cometeram as suas, ela admirou-se do poder que lhes concedera. Mas qual era este sistema de tirania, construído por pessoas que somente obtiveram o poder político e militar pelo conhecimento dos negócios civis, e que, nessas circunstâncias, tinham, por dentro, necessidade da pusilanimidade dos cidadãos para que se deixassem governar e, por fora, necessidade da coragem deles para defendê-los? O espetáculo da morte de Virgínia, imolada por seu pai ao pudor e à liberdade, fez desvanecer o poder dos decênviros. Cada um se encontrou livre, porque cada um foi ofendido; todos tornaram-se cidadãos porque todos se acreditaram pai. O senado e o povo recuperaram uma liberdade que fora confiada a tiranos ridículos. O povo romano, mais que qualquer outro, comovia-se com os espetáculos. O do corpo ensanguentado de Lucrécio pôs fim à realeza; o devedor que apareceu na praça coberto de pragas fez mudar a forma da república; a visão de Virgínia ocasionou a expulsão dos decênviros, Para conseguir a condenação de Mânlio, seria preciso tirar do povo a visão do Capitólio. A túnica ensanguentada de César reconduziu Roma à servidão. CAPÍTULO XVI Do poder legislativo na república romana Não se tinha direito a disputar, na época dos decênviros. Porém, quando se recuperou a liberdade, viram-se as invejas renascer: enquanto restaram alguns privilégios aos patrícios, os plebeus lhos retiraram. Teria havido pouco mal se os plebeus se tivessem contentado em privar os patrícios de suas prerrogativas e se não os tivessem ofendido na sua própria qualidade de cidadãos. Quando o povo estava agrupado por cúrias ou por centúrias, era composto de senadores, patrícios e plebeus. Nas disputas, os plebeus ganharam esta questão: sozinhos, sem os patrícios e sem o senado, poderiam fazer leis, que se chamaram plebiscitos; e os comícios onde foram feitas chamaram-se comícios por tribo. Assim, houve casos em que os patrícios não tiveram nenhuma participação no poder legislativo; em que foram submetidos ao poder legislativo de outro corpo de Estado. Foi um delírio da liberdade. O povo, para estabelecer a democracia, feriu os próprios princípios da democracia. Parecia que um poder tão exorbitante teria podido destruir a autoridade do senado. Mas Roma possuía instituições admiráveis, principalmente duas delas: através de uma o poder legislativo do povo era regulamentado; através de outra, era limitado. Os censores, e antes deles, os cônsules, formavam e criavam, por assim dizer, cada cinco anos, o corpo do povo; legislavam sobre o próprio corpo que possuía o poder legislativo. "Tibério Graco, censor, diz Cícero, transferiu os libertos às tribos da cidade, não pela força de sua eloquência, mas por uma palavra e por um gesto; e se não o tivesse feito, não teríamos mais esta república que hoje mal sustentamos." De outro lado, o senado tinha o poder de retirar, por assim dizer, a república das mãos do povo, pela criação de um ditador, diante do qual o soberano abaixava a cabeça e as leis mais populares permaneciam silenciosas. CAPÍTULO XVII Do poder executivo na mesma república Se o povo foi cioso de seu poder legislativo, o foi menos de seu poder executivo: deixou-o quase inteiramente nas mãos do senado e dos cônsules e quase só se reservou o direito de eleger os magistrados e de confirmar os atos do senado e dos generais. Roma, cuja paixão era comandar, cuja ambição era tudo submeter, que sempre usurpara, que ainda usurpava, tinha continuamente grandes preocupações: seus inimigos conjuravam contra ela, ou ela conjurava contra seus inimigos. Obrigada a se conduzir, de um lado, com coragem heroica e, de outro, com sabedoria consumada, o estado de coisas exigia que o senado tivesse a direção dos negócios. O povo disputava ao senado todos os ramos do poder legislativo, porque era cioso de sua liberdade; não lhe disputava os ramos do poder executivo, porque era cioso de sua glória. A participação do senado no poder executivo era tão grande que Políbio diz que todos os estrangeiros pensavam que Roma era uma aristocracia. O senado dispunha do dinheiro público e dava os impostos em arrendamento. Era o árbitro dos negócios dos aliados; decidia da guerra e da paz e orientava os cônsules nesse assunto; fixava o número das tropas romanas e das tropas aliadas, distribuía as províncias e os exércitos aos cônsules ou aos pretores e, quando o ano de comando expirava, podia determinar-lhe o sucessor; concedia os triunfos, recebia e enviava embaixadas; nomeava os reis, recompensava-os, punia-os, julgava-os, concedia-lhes ou retirava-lhes o título de aliados do povo romano. Os cônsules procediam ao levantamento das tropas que deveriam ir à guerra; comandavam os exércitos de terra ou do mar, dispunham dos aliados; tinham nas províncias todo o poder da república; faziam a paz com os povos vencidos, impunham-lhes as condições ou enviavam-nas ao senado. Nos primeiros tempos, quando o povo tinha alguma participação nos negócios da guerra e da paz, ele exercia antes seu poder legislativo do que seu poder executivo. Quase só confirmava o que os reis, e depois deles, os cônsules ou o senado, tinham feito. Longe de ser o povo o árbitro da guerra, vemos que os cônsules ou o senado a faziam frequentemente malgrado a oposição de seus tribunos. Mas na embriaguez das prosperidades, o povo aumentou seu poder executivo. Destarte, ele próprio criou os tribunos das legiões que até então os generais nomeavam e, pouco tempo antes da primeira guerra púnica, estabeleceu que apenas ele teria o direito de declarar guerra. CAPÍTULO XVIII Do poder de julgar no governo de Roma O poder de julgar foi atribuído ao povo, ao senado, aos magistrados, a certos juízes. Devemos ver como ele foi distribuído. Começaremos pelas questões civis. Os cônsules julgaram depois dos reis, como os pretores julgaram depois dos cônsules. Sérvio Túlio despojara-se do julgamento das questões civis; os cônsules também não as julgaram, a não ser em casos muito raros, que foram chamados, por esta razão, extraordinários. Eles contentaram-se com nomear os juízes e compor os tribunais que deveriam julgar. Parece, pelo discurso de Ápio Cláudio, em Dionísio de Halicarnasso que, desde o ano 259 de Roma, isso era considerado como um costume estabelecido entre os romanos e atribuí-l o a Sérvio Túlio não significa remontá-lo para muito tempo atrás. Cada ano, o preto r fazia uma lista ou rol dos que escolhia para exercer a função de juiz durante o ano de sua magistratura. Escolhia-se, para cada questão, um número suficiente. Isso se pratica quase da mesma maneira na Inglaterra. E, fato que muito favorecia a liberdade, era que o pretor escolhia os juízes de comum acordo com as partes. O grande número de recusas que atualmente se pode fazer na Inglaterra assemelha-se quase inteiramente a esse hábito. Os juízes apenas decidiam sobre as questões de fato. Por exemplo: se uma soma tinha ou não sido paga; se uma ação tinha ou não sido cometida. Porém, quando se tratava de questões de direito, eram levadas ao tribunal dos centúnviros. Os reis reservavam para si o julgamento dos casos criminais e os cônsules sucederam-lhes nesta função. Foi em consequência desta autoridade que o cônsul Bruto mandou matar seus filhos e todos os que tinham conjurado em favor dos Tarquínios. Esse poder era exorbitante. Possuindo o poder militar, os cônsules exerciam-no mesmo nos negócios da cidade; e o procedimento deles, alheio às formas de justiça, eram mais ações violentas do que julgamentos. Isso originou a lei Valeriana, que permitia o apelo ao povo contra todas as ordenanças dos cônsules que colocassem em perigo a vida de um cidadão. Os cônsules não puderam mais pronunciar uma pena capital contra um cidadão romano contra a vontade do povo. Vemos, na primeira conjuração pelo retorno dos Tarquínios, que o cônsul Bruto julga os culpados; na segunda, convocam-se o senado e os comícios para julgar. As leis, que se chamaram sagradas, concederam tribunos aos plebeus, formando um corpo que teve inicialmente imensas pretensões. Não se sabe qual foi a maior: se a vil ousadia dos plebeus em demandar, ou se a condescendência e a facilidade de conceder do senado. A lei Valeriana permitira os apelos ao povo, isto é, ao povo composto de senadores, de patrícios e de plebeus. Estes últimos estabeleceram que seria diante deles que as apelações seriam levadas. Logo se questionou se os plebeus poderiam julgar um patrício. Isso foi assunto de uma disputa que o caso Coriolano originou e que foi resolvida com este caso. Coriolano, acusado pelos tribunos diante do povo, afirmava, contra o espírito da lei Valéria, que, sendo patrício, não podia ser julgado senão pelos cônsules; os plebeus, contra o espírito da mesma lei, pretendiam que só eles poderiam julgá-lo, e julgaram-no. A Lei das Doze Tábuas modificou essa questão: ordenou que somente se poderia decidir da vida de um cidadão nos grandes Estados do povo. Assim, o corpo dos plebeus, ou, o que é a mesma coisa, os comícios por tribos, apenas julgaram os crimes cuja pena não passasse de uma multa pecuniária. Era necessário uma lei para infligir a pena capital; para condenar a uma pena pecuniária bastava um plebiscito. Essa disposição da Lei das Doze Tábuas foi muito sábia. Ela conciliou admiràvelmente o corpo dos plebeus e o senado. Pois, como a competência de uns e de outros dependia da grandeza da pena e da natureza do crime, era preciso que elas estivessem harmonizadas. A lei Valeriana suprimiu tudo o que restava em Roma do governo que tivera relação com os dois reis gregos dos tempos heroicos. Os cônsules viram-se sem poder para punir os crimes. Apesar de todos os crimes serem públicos, cumpria, entretanto, distinguir os que interessavam mais os cidadãos entre si, daqueles que interessavam mais o Estado nas suas relações com um cidadão. Os primeiros chamam-se privados; os segundos, crimes públicos. O próprio povo julgava os crimes públicos; com relação aos privados, para cada crime, por intermédio de uma comissão específica, nomeava um questor para dar-lhe andamento. Frequentemente, era um dos magistrados, algumas vezes um particular, que o povo escolhia. Chamavam-no questor do parricídio, ao qual se faz menção nas leis das Doze Tábuas. O questor nomeava o que se chamava juiz da questão, o qual sorteava os jurados, formava o tribunal e presidia ao julgamento. Convém observar aqui a parte que cabia ao senado na nomeação do questor, a fim de que se perceba como os poderes eram, a esse respeito, equilibrados. Algumas vezes, o senado elegia um ditador para cumprir a função de questor, outras vezes, ordenava que o povo fosse convocado por um tribuno, para que nomeasse um questor; enfim, o povo nomeava, por vezes, um magistrado para apresentar seu relatório ao senado a respeito de um determinado crime e demandar-lhe um questor, como se vê no julgamento de Lúcio Cipião, em Tito Lívio. No ano de Roma de 604, algumas dessas comissões tornaram-se permanentes. Dividiu-se progressivamente todas as matérias criminais em diversas partes, que foram chamadas questões perpétuas. Criaram-se diversos pretores e atribuíram-se a cada um algumas dessas questões. Entregou-se-lhes, por um ano, o poder de julgar os crimes que deles dependiam e, em seguida, iam governar sua província. Em Cartago, o senado dos cem era composto de juízes vitalícios, mas em Roma os pretores eram anuais e os juízes não o eram nem por um ano, visto que eram escolhidos para cada caso. Viu- se, no capítulo sexto deste livro, como, em certos governos, esta disposição era favorável à liberdade. Até o tempo dos Gracos, os juízes foram escolhidos na ordem dos senadores. Tibério Graco ordenou que eles fossem escolhidos na ordem dos cavaleiros, mudança tão considerável que o tribuno se vangloriava de, com apenas uma rogação, ter cortado os nervos da ordem dos senadores. Deve-se notar que os três poderes podem ser bem distribuídos com relação à liberdade da constituição, apesar de não o serem tão bem em relação à liberdade do cidadão. Em Roma, tendo o povo a maior parte do poder legislativo, parte do poder executivo e parte do poder de julgar, esse grande poder necessitava ser contrabalançado por outro. O senado tinha parte do poder executivo e um ramo do legislativo, mas isso não era suficiente para compensar o poder do povo. Cumpria que ele participasse do poder de julgar e isso acontecia quando os juízes eram escolhidos entre os senadores. Quando os Gracos privaram os senadores de seu poder de julgar, o senado não mais pôde resistir ao povo. Estes atingiram, portanto, a liberdade da constituição para favorecer a liberdade do cidadão; mas essa desapareceu com aquela. Disso resultaram infinitos males. Mudou-se a constituição num momento em que, no fogo das discórdias civis, mal havia uma constituição. Os cavaleiros deixaram de ser essa ordem intermediária que unia o povo ao senado e a continuidade da constituição rompeu-se. Havia mesmo motivos particulares que deveriam impedir que os julgamentos passassem aos cavaleiros. A constituição de Roma alicerçava-se neste princípio: aqueles deviam ser soldados com posse suficiente para responder, com sua conduta, à república. Os cavaleiros, sendo os ricos, formavam a cavalaria das legiões. Quando sua dignidade aumentou, eles não mais quiseram servir nesta milícia; foi necessário recrutar outra cavalaria; Mário recrutou todo tipo de gente nas legiões e a república perdeu-se. Demais, os cavaleiros eram os contratadores da república, causavam desgraça sobre desgraça e faziam aparecer necessidades públicas das necessidades públicas. Em vez de conferir a tais pessoas o poder de julgar, teria sido necessário que elas estivessem incessantemente sob os olhos dos juízes. Em louvor às antigas leis francesas, é preciso que se diga isto: elas estipularam com os homens de negócio, com a desconfiança que se tem pelos inimigos. Quando, em Roma, os julgamentos foram entregues aos contratadores, não mais houve virtude, ordem, leis, magistratura, magistrados. Encontramos um retrato bem ingênuo dessa situação em alguns fragmentos de Diodoro da Sicília e de Dion. "Múcio Cévola, conta Diodoro; quis restabelecer os antigos costumes e viver frugal e integralmente de seus próprios bens, pois, tendo seus predecessores formado uma sociedade com os contratadores, que então tinham, em Roma, os julgamentos, cobriram a província de toda sorte de crimes. Mas Cévola mostrou quem eram realmente os publicanos e mandou prender os que arrastavam os outros para esse caminho." Relata-nos Dion que Públio Rutílio, seu lugar-tenente, que não era menos odioso aos cavaleiros, foi acusado, à sua volta, de ter recebido presentes, e foi condenado com uma multa. Ele procedeu imediatamente a cessão de bens. Sua inocência foi comprovada, pois encontraram-lhe muito menos bens do que se lhe acusava de ter roubado, e ele mostrou os títulos de sua propriedade. Não quis mais permanecer na cidade com gente dessa espécie. "Os italianos, conta ainda Diodoro, compravam na Sicília tropas de escravos para lavrar seus campos e cuidar de seus rebanhos; recusavam-lhes alimentos. Esses infelizes eram obrigados a assaltar nas estradas, armados de lanças e de maças, cobertos com peles de animais e rodeados por grandes cães. Toda a província foi devastada e os habitantes da região só podiam dizer que tinham como propriedade particular o que estivesse dentro das muralhas da cidade. Não existia nem pro cônsul, nem pretor que pudesse ou quisesse opor-se a tal desordem, e que ousasse punir esses escravos, porque eles pertenciam aos cavaleiros que, em Roma, tinham o poder de julgar." Isso foi, entretanto, uma das causas da guerra dos escravos. Direi apenas uma palavra: uma profissão que só tem, e só pode ter como objetivo o lucro, uma profissão que exigia sempre e da qual nada se exigia, uma profissão surda e inexorável, que empobrecia as riquezas e a própria miséria, não deveria, em Roma, possuir o poder de julgar. CAPÍTULO XIX Do governo das províncias romanas Foi assim que os três poderes foram distribuídos na cidade, mas nas províncias a situação estava longe de ser igual. A liberdade estava no centro e a tirania nas extremidades. Enquanto Roma só dominou na Itália, os povos foram governados como confederados. Obedecia-se às leis de cada república. Mas quando ela estendeu suas conquistas, quando o senado não mantinha diretamente as províncias sob suas vistas, quando os magistrados que estavam em Roma não mais puderam governar o império, foi preciso enviar pretores e pro cônsules. Então, essa harmonia entre os três poderes desapareceu. Os que eram enviados tinham um poder que agrupava o de todas as magistraturas romanas; que digo? O próprio poder do senado, o próprio poder do povo. Eram magistrados despóticos, que muito convinham aos longínquos lugares a que eram enviados. Exerciam os três poderes e eram, se ouso servir-me do termo, os paxás da república. Dissemos alhures que, na república, os próprios cidadãos tinham, pela natureza das coisas, os empregos civis e militares. Isso faz com que uma república que conquista quase não possa comunicar seu governo e reger o Estado conquistado de acordo com a forma de sua constituição. Com efeito, tendo o magistrado que envia para governar o poder executivo, civil e militar, é muito necessário que ele possua também o poder legislativo, pois quem faria leis sem ele? É mister também que ele tenha o poder de julgar, pois quem julgaria independentemente dele? Cumpre, portanto, que o governador enviado pela república possua os três poderes, como aconteceu nas províncias romanas. Uma monarquia pode comunicar mais fàcilmente seu governo, porque os oficiais que envia têm, uns, o poder executivo civil e, outros, o poder executivo militar, o que não traz consigo o despotismo. Constituía um privilégio de grande importância para um cidadão romano só poder ser julgado pelo povo. Sem isso, ele teria sido submetido, nas províncias, ao poder arbitrário de um pro cônsul ou de um pro pretor. A cidade não sentia a tirania que apenas se exercia sobre as nações submetidas. Assim, no mundo romano, como na Lacedemônia, os que eram livres eram extremamente livres e os que eram escravos eram extremamente escravos. Enquanto os cidadãos pagavam tributos, estes eram arrecadados com uma equidade muito grande. Obedecia-se à determinação de Sérvio Túlio, que distribuíra todos os cidadãos em seis classes, segundo a ordem de suas riquezas e fixara a parte de imposto proporcionalmente à parte que cada cidadão possuía no governo. Disso resultava que se sofria a grandeza do tributo por causa da grandeza do crédito e se consolava com a pequenez do crédito pela pequenez do tributo. Havia ainda uma coisa admirável; sendo a divisão de Sérvio Túlio por classe, por assim dizer, o princípio fundamental da constituição, acontecia que a equidade na arrecadação dos tributos atinha-se ao princípio fundamental do governo e só poderia ser suprimida com ele. Mas enquanto a cidade pagava sem dificuldade os tributos, ou mesmo não os pagava, as províncias eram devastadas pelos cavaleiros, que eram os contratadores da república. Já nos referimos às afrontas que realizaram e toda a história delas está repleta. "Toda a Ásia espera-me como seu libertador, dizia Mitridates, tanto ódio excitaram contra os romanos as rapinas dos pro cônsules, as exações dos homens de negócio e as calúnias dos julgamentos”. Eis o que fez com que a força das províncias nada acrescentasse à da república mas, ao contrário, só a enfraquecesse. Eis o que fez com que as províncias considerassem a perda da liberdade de Roma como a época do estabelecimento da sua. CAPÍTULO XX Fim deste livro Desejaria verificar, em todos os governos moderados que conhecemos, qual é a distribuição dos três poderes e daí calcular os graus de liberdade que cada um pode fruir. Mas nem sempre deve-se esgotar a ponto de nada deixar a cargo do leitor. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar. LIVRO DÉCIMO SEGUNDO - Das leis que formam a liberdade política na sua relação com o cidadão. CAPÍTULO I Ideia deste livro Não basta ter tratado da liberdade política em sua relação com a constituição; é necessário verificá-la na relação que mantém com o cidadão. Disse que, no primeiro caso, é formada por certa distribuição dos três poderes; porém, no segundo, cumpre considerá-la de outro ângulo. Consiste ela na segurança, ou na opinião que se tem de sua segurança. Poderá ocorrer que a constituição seja livre e que o cidadão não o seja. O cidadão poderá ser livre e a constituição não o ser. Nesses casos, a constituição será livre de direito mas não de fato; o cidadão será livre de fato e não de direito. Não há senão a disposição das leis, e mesmo das leis fundamentais, que forma a liberdade em sua relação com a constituição. Mas na relação com o cidadão, costumes, maneiras, exemplos recebidos podem fazê-la nascer, e certas leis civis favorecê-la, como veremos neste livro. Demais, na maioria dos Estados, sendo a liberdade mais restringida, abalada ou destruída do que o exige a constituição, é conveniente falar das leis particulares que, em cada constituição, podem favorecer ou prejudicar o princípio da liberdade da qual cada um deles pode ser suscetível. CAPÍTULO II Da liberdade do cidadão A liberdade filosófica consiste no exercício de sua vontade, ou pelo menos (se é preciso falar em todos os sistemas), na opinião que se tem do exercício da vontade. A liberdade política consiste na segurança, ou pelo menos, na opinião que se tem de sua segurança. Esta segurança nunca é mais atacada do que nas acusações públicas ou privadas. É, portanto, da brandura das leis criminais que depende principalmente a liberdade do cidadão. As leis criminais não foram aperfeiçoadas de repente. Nos próprios lugares onde mais se procurou a liberdade, nem sempre ela foi encontrada. Aristóteles conta-nos que, em Cumes, os pais do acusador podiam ser testemunhas. Na época dos reis de Roma, a lei era tão imperfeita que Sérvio Túlio pronunciou a sentença contra os filhos de Anco Márcio, acusado de ter assassinado o rei, seu sogro. No período dos primeiros reis dos francos, Clotário fez uma lei pela qual um acusado não poderia ser condenado sem ser ouvido, o que prova uma prática contrária em algum caso particular ou entre algum povo bárbaro. Charondas foi quem introduziu os julgamentos contra os falsos testemunhos. Quando a inocência dos cidadãos não é garantida, a liberdade também não o é. Os conhecimentos que se tem adquirido em alguns países e se adquirirão em outros sobre os regulamentos mais corretos que possam ser aplicados nos julgamentos criminais, interessam ao gênero humano mais que qualquer outra coisa no mundo. É apenas na prática desses conhecimentos que a liberdade pode ser alicerçada e, num Estado que possuísse a este respeito as melhores leis possíveis, um homem que fosse processado e que devesse ser enforcado no dia seguinte seria mais livre que um paxá na Turquia. CAPÍTULO III Continuação do mesmo assunto As leis que condenam à morte segundo o depoimento de uma única testemunha são fatais à liberdade. A razão exige duas testemunhas, pois uma que afirma e um acusado que nega resultam num empate, e é necessário um terceiro para decidi-lo. Os gregos e os romanos exigiam um voto a mais para condenar. Nossas leis francesas exigem dois. Os gregos pretendiam que seu costume fora estabelecido pelos deuses; entretanto, esse costume também é o nosso. CAPÍTULO IV Como a liberdade é favorecida pela natureza das penas e pela proporção delas Quando as leis criminais extraem cada pena da natureza específica do crime, há o triunfo da liberdade. Todo o arbitrário desaparece, a pena não mais se origina do capricho do legislador, mas da natureza da coisa, e não é um homem que comete violência contra outro. Há quatro tipos de crime; os da primeira espécie atentam contra a religião; os da segunda, contra os costumes; os da terceira, contra a tranquilidade; os da quarta, contra a segurança dos cidadãos. As penas a serem aplicadas devem derivar da natureza de cada espécie. Não classifico entre os crimes que afetam a religião os que a atacam diretamente, como todos os sacrilégios simples, pois os crimes que perturbam seu exercício são da natureza dos que afetam a tranquilidade dos cidadãos ou sua segurança e devem ser colocados nesta classe. Para que a pena dos sacrilégios seja extraída da natureza da coisa, deve ela consistir na privação de todas as vantagens que a religião oferece; expulsão dos templos; privação da sociedade dos fiéis, por um certo tempo ou para sempre; fuga de sua presença; execrações, detestações, conjurações. Nas coisas que perturbam a tranquilidade ou a segurança do Estado, as ações ocultas são da alçada da justiça humana. Mas nas que afetam a Divindade, onde não existe nenhuma ação pública, não há objeto de crime; tudo diz respeito ao homem e Deus, que conhece a medida e o momento de suas vinganças. Porque, se o magistrado, confundindo as coisas, procura também o sacrilégio oculto, ele dirige uma inquisição sobre um gênero de ação onde ela não é necessária e destrói a liberdade dos cidadãos, levantando contra eles o zelo das consciências tímidas e o das consciências atrevidas. O mal decorre da ideia de que é necessário vingar a Divindade. Porém, deve-se honrar a Divindade e nunca vingá-la. Com efeito, se nos orientássemos por esta última ideia, qual seria o objetivo dos suplícios? Se as leis dos homens devem vingar um ser infinito, elas se basearão em sua infinidade e não sobre suas fraquezas, sobre as ignorâncias, sobre os caprichos da natureza humana. Um historiador da Provença relata um fato que nos dá bem uma imagem do efeito que produz sobre os espíritos fracos a ideia de vingar a Divindade. Um judeu, acusado de ter blasfemado contra a Santa Virgem, foi condenado a ser escorchado. Cavaleiros mascarados, punhais à mão, subiram ao cadafalso, expulsaram o carrasco, a fim de vingarem, eles próprios, a honra da Santa Virgem... mas não quero influenciar as reflexões do leitor. A segunda classe é a dos crimes cometidos contra os costumes, como o são a violação da continência pública ou particular; isto é, da vigilância sobre a maneira como se deve fruir dos prazeres relacionados ao uso dos sentidos e à união dos corpos. As penas para tais crimes devem igualmente ser extraídas da natureza da coisa. A privação das vantagens que a sociedade atribui à pureza dos costumes, as multas, a desonra, a coerção que obriga a ocultar-se, a infâmia pública, a expulsão da cidade e da sociedade, enfim, todos os castigos que são atributos da jurisdição correcional bastam para reprimir os atrevimentos de ambos os sexos. Com efeito, essas coisas estão menos baseadas na malevolência do que no esquecimento ou no desprezo de si mesmo. Trata-se aqui tão só dos crimes que dizem respeito unicamente aos costumes e não dos que afetam também a segurança pública, tais como o rapto e a violação, que são da quarta espécie. Os crimes da terceira classe são os que afetam a tranquilidade dos cidadãos, e as penas a esse respeito devem ser extraídas da natureza da coisa, e se relacionam a esta tranquilidade, como a prisão, o exílio, as correções e outras penas que reorientam os espíritos inquietos e os fazem entrar na ordem estabelecida. Restrinjo os crimes contra a tranquilidade às coisas que encerram uma simples violação da ordem, pois os que, perturbando a tranquilidade, atingem ao mesmo tempo a segurança, devem ser colocados na quarta classe. As penas para esses últimos crimes são as que chamamos suplícios. É uma espécie de talião, que leva a sociedade a recusar garantia ao cidadão que a privou dela, ou que quis privar outro cidadão. Essa pena é extraída da natureza da coisa, tirada da razão e das fontes do bem e do mal. Um cidadão merece a morte quando violou a segurança a ponto de suprimir uma vida, ou quando tentou suprimi-la. Esta pena de morte é como o remédio de uma sociedade doente. Quando se viola a segurança relativa aos bens, podem existir, neste caso, motivos para que a pena seja capital; mas seria talvez melhor, e mais natural, que a pena dos crimes contra a segurança dos bens fosse punida com a perda destes bens; e deveria ser assim, se as fortunas fossem comuns ou iguais. Porém, sendo os que não possuem bens os que habitualmente atentam contra os bens de outrem, foi necessário que a pena corporal suprisse a pecuniária. Tudo o que disse foi extraído da natureza e é muito favorável à liberdade do cidadão. CAPÍTULO V De certas acusações que necessitam especialmente moderação e prudência Máxima importante: cumpre ser muito circunspecto no combate à magia e à heresia. A acusação desses dois crimes pode afetar extremamente a liberdade e ser a fonte de uma infinidade de tiranias, se o legislador não souber restringi-la, pois, como ela não diz respeito diretamente às ações de um cidadão, mas principalmente à ideia que se faz de seu caráter, ela torna-se perigosa na proporção da ignorância do povo e, desde então, um cidadão encontra-se sempre em perigo, porquanto a melhor conduta que se possa ter, a moral mais pura, o cumprimento de todos os deveres, não constituem garantias contra as suspeitas desses crimes. Na época de Manuel Comneno, o protestator: foi acusado de ter conspirado contra o imperador e de se ter servido para isso de certos segredos que tornam os homens invisíveis. Narra a biografia dês se imperador que se surpreendeu Aarão lendo um livro de Salomão, cuja leitura ocasionava o aparecimento de uma legião de demônios. Ora, atribui-se à magia um poder que engendra o inferno e, partindo-se daí, considera-se o que se chama um mágico como o homem mais apto em todo o mundo para perturbar e para subverter a sociedade, e é-se levado a puni-lo indiscriminadamente. A indignação aumenta quando se acrescenta à magia o poder de destruir a religião. A história de Constantinopla ensina-nos que, com base numa revelação que teve um bispo de que um milagre havia falhado por causa da magia de um indivíduo, este e seu filho foram condenados à morte. De quantas coisas prodigiosas não dependia esse crime? Que não sejam raras as revelações; que o bispo tenha tido uma; que ela fosse verdadeira; que tivesse havido um milagre; que esse milagre tivesse malogrado; que a magia pudesse subverter a religião; que o referido indivíduo fosse mágico; que ele tivesse, finalmente, cometido essa magia. O Imperador Teodoro Lascaris atribuía sua moléstia à magia. Aos que disso eram acusados só restava o recurso de tocar um ferro em brasa sem se queimar. Seria bom, entre os gregos, ser mágico para se inocentar da magia. Sua idiotice era tão grande que, para o crime mais incerto, reuniam as provas mais incertas. No reinado de Filipe, o Longo, os judeus foram expulsos da França, acusados de terem envenenado as fontes por meio de leprosos. Esta absurda acusação deve servir muito bem para pôr em dúvida todas aquelas que são baseadas no ódio público. Não disse, aqui, que não se deve punir a heresia; disse que cumpre ser muito circunspecto ao puni-la. CAPÍTULO VI Do crime contra a natureza Não permita Deus que eu diminua o horror que se tem por um crime que a religião, a moral e a política condenam alternativamente. Seria necessário proscrevê-lo ainda quando só desse a um sexo as fraquezas do outro e preparasse para uma velhice infame por uma juventude vergonhosa. O que dele direi deixar-lhe-á todas ignomínias e só atingirá a tirania que pode abusar do próprio horror que dele se deve ter. Como é da natureza desse crime ser oculto, ocorre amiúde que os legisladores o têm punido segundo o depoimento de uma criança. Isso significava abrir uma porta muito ampla à calúnia. "Justiniano, relata Procópio, publicou uma lei contra esse crime; mandou buscar todos os que dele eram culpados, não somente após a promulgação da lei mas também antes. O depoimento de uma bastava, sobretudo contra os ricos e contra os que eram da facção dos verdes." É curioso que, entre nós, três crimes tenham sido, todos os três, castigados com a pena do fogo: a magia, a heresia e o crime contra a natureza, dos quais poder-se-ia provar, quanto ao primeiro, que não existe; quanto ao segundo, que é suscetível de uma infinidade de distinções, interpretações, limitações; quanto ao terceiro, que é frequentemente obscuro. Afirmo que o crime não realizará grandes progressos numa sociedade se o povo a isso não for levado por algum costume, como entre os gregos, onde os jovens praticavam nus todos os seus exercícios, como entre nós, onde a educação doméstica está fora de uso ou como entre os asiáticos, onde certos cidadãos possuem um grande número de mulheres, as quais desprezam, enquanto outros não podem tê-las. Que não se prepare esse crime, que seja proscrito por uma correta vigilância, como qualquer violação dos costumes, e ver-se-á subitamente a Natureza defender seus direitos ou retomá-los. Suave, amável, encantadora, ela distribuiu seus prazeres com uma mão liberal e, em nos cumulando de delícias, prepara-nos, pelos filhos que nos fazem, por assim dizer, renascer para satisfações maiores que esses próprios prazeres. CAPÍTULO VII Do crime de lesa-majestade As leis da China estipulam que quem desrespeitar o imperador deve ser punido com a morte. Como não definem o que é essa falta de respeito, qualquer coisa pode fornecer pretexto para suprimir a vida e exterminar a família que se queira. Tendo duas pessoas encarregadas de fazer o diário da corte incluído num fato circunstâncias que não se revelaram verdadeiras, afirmou-se que mentir num diário da corte significava falta de respeito à corte; e condenaram-nas à morte. Tendo um príncipe de sangue colocado, por descuido, uma observação num memorial assinado com pincel vermelho pelo imperador, decidiu-se que ele faltara com o respeito a esse, fato que acarretou contra essa família uma das mais terríveis perseguições que a história já conheceu. Basta que o crime de lesa-majestade não seja especificado para que o governo degenere em despotismo. Ater-me-ei mais longamente sobre isso no livro Da Composição das Leis. CAPÍTULO VIII Da má aplicação do nome do crime de sacrilégio e de lesa-majestade Constitui também abuso violento chamar de crime de lesa-majestade a uma ação que não o é. Uma lei dos imperadores castigava como sacrílegos os que colocavam em dúvida o julgamento do príncipe, e duvidavam do mérito dos que tinham sido escolhido para alguma função. Foram precisamente o gabinete e os favoritos que estabeleceram esse crime. Outra lei declarara que os que atentam contra os ministros e oficiais do príncipe são criminosos de lesa-majestade, como se atentassem contra o próprio príncipe. Devemos essa lei a dois príncipes cuja fraqueza é célebre na história; dois príncipes que foram guiados por seus ministros como os rebanhos são guiados pelos pastores; dois príncipes, escravos no palácio, crianças no conselho, estranhos aos exércitos, que só conservaram o império porque o entregaram diariamente. Alguns desses favoritos conspiraram contra seus imperadores. Fizeram mais: conspiraram contra o império, atraíram os bárbaros e, quando se pretendeu sustá-los, o Estado estava tão fraco que foi necessário violar sua lei e expor-se ao crime de lesa-majestade para puni-los, Foi, entretanto, nesta lei que se fundamentou o acusador do Senhor de Cinq-Mars, quando, pretendendo provar que ele era culpado do crime de lesa-majestade por ter desejado afastar o Cardeal de Richelieu dos negócios, disse: "O crime que afeta a pessoa dos ministros dos príncipes é reputado, pelas constituições dos imperadores, tão grave como o que afeta os próprios príncipes. Um ministro serve lealmente a seu príncipe e a seu Estado; tiram-no a ambos; é como se se privasse o primeiro de um braço e o segundo de uma parte de seu poder". Quando a própria servidão dominar na terra, ela não falará de outro modo. Outra lei de Valentiniano, Teodósio e Arcádio declara os falsos moedeiros culpados do crime de lesa-majestade. Mas isso não significa confundir as ideias das coisas? Atribuir a outro crime o nome de lesa-majestade não é diminuir o horror do crime de lesa-majestade? CAPÍTULO IX Continuação do mesmo assunto Tendo Paulino informado o Imperador Alexandre "que ele se preparava para condenar como criminoso de lesa-majestade um juiz que se manifestara contra suas ordenanças"; o imperador respondeu-lhe "que, num século como aquele, os crimes indiretos de lesa-majestade não tinham cabimento". Havendo Faustiniano escrito ao mesmo imperador que, tendo jurado pela vida do príncipe que nunca perdoaria seu escravo, via-se obrigado a perpetuar sua cólera para não se tornar culpado do crime de lesa-majestade: "Estais possuído de terrores vãos, respondeu-lhe o imperador, e não conheceis minhas máximas". Um senatus-consulto ordenou que aquele que fundira estátuas do imperador que tinham sido reprovadas, não seria culpado do crime de lesa-majestade. Os imperadores Severo e Antonino escreveram a Pôncio que quem vendesse estátuas do imperador não consagradas não incidiria no crime de lesa-majestade. Os mesmos imperadores escreveram a Júlio Cassiano que quem atirasse, por acaso, uma pedra contra uma estátua do imperador não deveria ser condenado como criminoso de lesa-majestade. A lei Júlia exigia estes tipos de modificações, porquanto tornara culpados de lesa-majestade não somente os que fundiam as estátuas dos imperadores como os que cometiam qualquer ação semelhante, coisa que tornava arbitrário o crime. Quando se estabeleceram muitos crimes de lesa-majestade, foi preciso necessàriamente distinguir esses crimes. Destarte, o jurisconsulto Ulpiano, depois de ter afirmado que a acusação do crime de lesa-majestade não terminava com a morte do culpado, acrescenta que isso não diz respeito a todos os crimes de lesa-majestade estabelecidos pela lei Júlia, mas somente aos que implicam um atentado contra o império ou contra a vida do imperador. CAPÍTULO X Continuação do mesmo assunto Uma lei da Inglaterra, promulgada no reinado de Henrique VIII, declarava culpados de alta traição todos os que predissessem a morte do rei. Essa lei era muito vaga. O despotismo é tão terrível que se volta mesmo contra os que o praticam. Quando da última enfermidade do rei, os médicos nunca ousaram dizer que ele estava em perigo. Assim fizeram, sem dúvida, em consequência da referida lei. CAPÍTULO XI Dos pensamentos Um tal Mársias sonhou que cortava a garganta de Dionísio. Este mandou matá-lo, afirmando que ele não teria sonhado à noite se não tivesse pensado nisso de dia. Era uma grande tirania porque, mesmo que Mársias tivesse pensado, não teria perpetrado o atentado. Às leis não cabe punir senão as ações exteriores. CAPÍTULO XII Das palavras indiscretas Nada torna os crimes de lesa-majestade ainda mais arbitrários do que quando palavras indiscretas tornam-se seu motivo. Os discursos são tão sujeitos à interpretação, há tanta diferença entre a indiscrição e a malícia e tão pouca nas expressões que elas empregam, que a lei quase não pode submeter as palavras a uma pena capital, a menos que declare expressamente as que submete a essa pena. As palavras não formam um corpo de delito; elas só ficam na ideia. Geralmente, nada significam em si mesmas, mas pela maneira como são pronunciadas. Frequentemente, repetindo-se as mesmas palavras, atribuímos a elas um sentido diferente, dependendo esse sentido de sua relação com outras coisas. Algumas vezes, o silêncio é mais expressivo que todos os discursos. Nada é tão equívoco como tudo isso. Como, pois, distinguir um crime de lesa-majestade? Em toda parte em que ele é estabelecido, não somente a liberdade desaparece como ainda sua própria sombra. No manifesto da falecida Czarina, dirigido contra a família Dolgoruki, um desses príncipes é condenado à morte por ter proferido palavras indecentes relacionadas à sua pessoa; outro, por ter malignamente interpretado suas sábias disposições para o império, e ofendido sua sagrada pessoa por palavras pouco respeitosas. Não pretendo diminuir a indignação que se deve ter contra os que querem macular a glória de seu príncipe, mas deixo claro que se se pretende moderar o despotismo, uma simples correção, nestas ocasiões, será mais adequada do que uma acusação de lesa-majestade sempre terrível à própria inocência. As ações não são diárias; muitas pessoas podem observá-las; uma falsa acusação sobre fatos pode ser fàcilmente esclarecida. As palavras que são ligadas a uma ação adquirem a natureza desta ação. Assim, um homem que numa praça pública exorta os súditos à revolta torna-se culpado de lesa-majestade, porque as palavras são ligadas à ação e dela participam. Não se punem as palavras mas uma ação cometida, na qual empregam-se as palavras. Elas só se transformam em crime quando preparam, acompanham ou seguem uma ação criminosa. Invertemos tudo se fazemos das palavras um crime capital, em vez de considerá-las como indício de um crime capital. Os imperadores Teodósio, Arcádio e Honório escreveram a Rufino, prefeito do pretório: "Se alguém fala mal de nossa pessoa ou de nosso governo, não o puniremos: se falou por leviandade, cumpre desprezá-lo; se foi por insensatez, cumpre lamentá-lo; se foi por injúria, cumpre perdoá-lo. Destarte, deixando as coisas tal como estão, dai-nos informações sobre elas, a fim de que julguemos as palavras pelas pessoas e analisemos corretamente se devemos submetê-las a julgamento ou negligenciá-las". CAPÍTULO XIII Dos escritos Os escritos contêm alguma coisa de mais permanente do que as palavras, mas quando não preparam o crime de lesa-majestade não constituem uma questão de lesa-majestade. Augusto e Tibério, entretanto, atribuíram aos escritos a pena de lesa-majestade; Augusto o fez quando de certos escritos dirigidos contra homens e mulheres ilustres; Tibério o fez por causa dos crimes que pensou serem cometidos contra ele. Nada foi mais fatal à liberdade romana. Cremúcio Cordo foi acusado porque, em seus anais, chamara Cássio de último dos romanos. Os escritos satíricos são pouco conhecidos nos Estados despóticos, onde o desalento, de um lado, e a ignorância, de outro, não dão nem talento nem vontade de escrevê-los. Na democracia eles não são impedidos pelo mesmo motivo que no governo de um só o são. Como eles são geralmente compostos contra pessoas poderosas, lisonjeiam na democracia a malignidade do povo que governa. Na monarquia são proibidos, mas fizeram-nos antes um caso de polícia do que um crime. Podem eles agradar à malignidade geral, consolar os descontentes, diminuir a inveja que se tem dos altos cargos, dar ao povo a paciência de sofrer e fazê-lo rir de seus sofrimentos. A aristocracia é o governo que mais proíbe as obras satíricas. Os magistrados são pequenos soberanos que não são suficientemente poderosos para desprezar as injúrias. Se, na monarquia, um escrito é dirigido contra o monarca, ele está colocado tão alto que não é alcançado. Um senhor aristocrata é por ele atravessado de lado a lado. Dessa maneira, os decênviros, que formavam a aristocracia, puniram com a morte os escritos satíricos. CAPÍTULO XIV Violação do pudor na punição dos crimes Há regras de pudor observadas em quase todas as nações do mundo; seria absurdo violá-las na punição dos crimes, a qual deve sempre objetivar o restabelecimento da ordem. Os orientais que expuseram mulheres a elefantes amestrados para um abominável gênero de suplício quiseram violar a lei pela lei? Uma antiga prática romana proibia condenar à morte as jovens que não fossem núbeis. Tibério encontrou o expediente de mandar violentá-las pelo carrasco antes de enviá-las ao suplício; tirano sutil e cruel, para conservar os costumes, destruiu-os. Quando a magistratura japonesa determinou que mulheres nuas fossem expostas em praças públicas e obrigou-as a andar como animais, fez fremir o pudor, mas quando quis coagir uma mãe... quando quis coagir um filho... não posso concluir, fez fremir a própria natureza. CAPÍTULO XV Da libertação do escravo para acusar o senhor Augusto determinou que os escravos dos que tivessem conspirado contra ele seriam vendidos ao público, a fim de que pudessem depor contra seus senhores. Não se deve desprezar nada que possibilite a descoberta de um grande crime. Destarte, num Estado em que existam escravos, é natural que eles possam ser informantes; mas não poderiam ser testemunhas. Víndex informou sobre a conspiração organizada em favor de Tarquínio, mas não foi testemunha contra os filhos de Bruto. Era justo conceder liberdade aos que tinham prestado tão grande serviço à pátria; mas não lha deram a fim de que prestassem este serviço à pátria. Desta maneira, o Imperador Tácito ordenou que escravos não poderiam testemunhar contra o seu senhor, inclusive no crime de lesa-majestade, lei que não foi incluída na compilação de Jutiniano. CAPÍTULO XVI Calúnia no crime de lesa-majestade É necessário fazer justiça aos Césares, pois não foram os primeiros a imaginar as tristes leis que fizeram. Foi Sila quem lhes ensinou que não se devia punir os caluniadores. Logo se chegaria mesmo a recompensá-los. CAPÍTULO XVII Da revelação das conspirações "Quando teu irmão, teu filho, tua filha, tua bem-amada esposa ou teu amigo, que é como tua alma, te disserem em segredo: Vamos a outros deuses, tu os apedrejarás; primeiro tua mão estará sobre ele, logo a de todo o povo." Esta lei do Deuteronômio não poderia ser uma lei civil na maioria dos povos que conhecemos porque abriria as portas a todos os crimes. A lei que em vários Estados ordena, sob pena de morte, revelar as conspirações das quais não se foi nem mesmo cúmplice, não é menos dura. Quando é transportada para o governo monárquico, é muito conveniente restringi-la. Ela só deve ser aplicada com toda sua severidade ao crime de lesa-majestade de primeiro grau. Nesses Estados é muito importante não confundir os diferentes graus desse crime. No Japão, onde as leis anulam todas as ideias da razão humana, o crime de não revelação aplica-se aos casos mais comuns. Uma relação fala-nos de duas jovens que foram encerradas até a morte num cofre eriçado de farpas; uma por ter tido uma intriga amorosa qualquer; outra, por não a ter revelado. CAPÍTULO XVIII Como é perigoso, nas repúblicas, punir muito severamente o crime de lesa-majestade. Quando uma república chegou a exterminar os que pretenderam derrubá-la é necessário terminar logo com as vinganças, com as penas e com as próprias recompensas. Não se pode aplicar grandes punições e, consequentemente, grandes modificações, sem colocar nas mãos de alguns cidadãos um grande poder. É melhor, portanto, nesses casos, muito perdoar do que muito punir; exilar pouco do que exilar muito; deixar os bens do que multiplicar os confiscos. Estabelecer-se-ia a tirania dos vingadores sob o pretexto da vingar a república. Não se trata de destruir quem domina mas a dominação. Cumpre retornar tão logo seja possível a esse ritmo normal de governo em que as leis tudo protegem e não se armam contra ninguém. Os gregos não colocaram limites às vinganças que tomaram contra os tiranos ou contra os que suspeitaram sê-lo. Mandaram matar os filhos, algumas vezes cinco dos parentes mais próximos. Expulsaram uma infinidade de famílias. Com isso enfraqueceram suas repúblicas; o exílio ou o retorno dos exilados foram sempre épocas que assinalaram a modificação da constituição. Os romanos foram mais sábios. Quando Cássio foi condenado por ter aspirado à tirania, discutiu-se se seus filhos deveriam ser mortos; eles não foram condenados a nenhuma pena. "Os que pretenderam, diz Dionísio de Halicarnasso, mudar esta lei, no fim da guerra dos Marsos e da guerra civil e destituir dos cargos os filhos dos proscritos por Sila, são muito criminosos." Vê-se, nas guerras de Mário e de Sila, até que ponto as almas dos romanos se tinham paulatinamente depravado. Parecia que coisas tão funestas não mais seriam vistas. Porém na época dos triúnviros quis-se ser mais cruel parecendo sê-lo menos. Afligimo-nos ao ver os sofismas que a crueldade utilizou. Encontramos em Apiano a fórmula das proscrições. Diríeis que seu único objetivo era o bem da república, tanto nos fala de sangue frio, tanto nos mostra as vantagens, tanto os meios que emprega são superiores aos outros, tanto os ricos estarão em segurança, tanto o baixo povo estará tranquilo, tanto se teme pôr em perigo a vida dos cidadãos, tanto se quer apaziguar os soldados e tanto, finalmente, se será feliz. Roma estava inundada de sangue quando Lépido venceu na Espanha e, por um absurdo sem precedentes, ordenou que se regozijasse, sob pena de ser proscrito. CAPÍTULO XIX Como se suspende o uso da liberdade na república Há, nos Estados onde mais se cuida da liberdade, leis que a violam contra um só, a fim de conservá-la para todos. Tais são, na Inglaterra, os bills denominados de atingir. Eles remontam às leis de Atenas que estatuíam contra um indivíduo, posto que fossem estabelecidas pelo sufrágio de seis mil cidadãos. Eles remontam às leis que se estabelecia em Roma contra os cidadãos particulares, e que se chamavam privilégios. Só eram feitas nos grandes Estados do povo. Mas qualquer que fosse a maneira com que os povos as outorgassem, Cícero desejava que fossem abolidas, pois só existe a força da lei quando ela estatui para todos. Confesso, entretanto, que a prática dos povos mais livres que já existiram sobre a terra faz-me acreditar que existem casos em que é mister, por certo tempo, colocar um véu sobre a liberdade, tal como se esconde a estátua dos deuses. CAPÍTULO XX Das leis favoráveis à liberdade do cidadão na república Sucede, amiúde, nos Estados populares, que as acusações sejam públicas, e que seja permitido a todo homem acusar quem desejar. Isso acarretou o estabelecimento de leis capazes de defender a inocência dos cidadãos. Em Atenas, o acusador que não obtivesse a quinta parte dos votos, pagava uma multa de mil dracmas. Ésquines, que acusara Ctesifonte, incorreu nesta pena. Em Roma, o acusador injusto era estigmatizado de infâmia e marcava-se-lhe a fronte com a letra K. Vigiava-se o acusador a fim de que ele não pudesse corromper os juízes ou as testemunhas. Já me referi a esta lei ateniense e romana que permitia ao acusado retirar-se antes do julgamento. CAPÍTULO XXI Da crueldade das leis para com os devedores na república Um cidadão já adquire uma superioridade muito grande sobre outro em lhe emprestando um dinheiro que esse último só emprestou para dele se desfazer e, consequentemente, não mais o tem. Que aconteceria se, numa república, as leis aumentassem ainda mais essa servidão? Em Atenas e em Roma inicialmente foi permitido vender os devedores que não estavam em condições de saldar suas dívidas. Em Atenas, Sólon corrigiu esta prática: ordenou que ninguém seria escravizado por dívidas civis. Mas, em Roma, os decênviros não reformaram igualmente essa prática e, apesar de terem diante de seus olhos a regulamentação de Sólon, não quiseram segui-la. Não é o único item da lei das Doze Tábuas em que se vê o desígnio dos decênviros de contrariar o espírito da democracia. Essas leis cruéis contra os devedores, muitas vezes colocaram em perigo a república romana. Um homem coberto de chagas evadiu-se da casa de seu credor e apareceu na praça. O povo comoveu-se com esse espetáculo. Outros cidadãos que seus credores não ousavam mais reter saíram de seus calabouços. Fizeram-se-lhes promessas que não foram cumpridas; o povo retirou-se para o Monte Sagrado. Não obteve a ab-rogação dessas leis, mas um magistrado que o defendesse. Saía-se da anarquia, acreditava-se mergulhar na tirania; Mânlio, para tornar-se popular, ia retirar das mãos dos credores os cidadãos que tinham sido reduzidos à escravidão. Sustaram-se os desígnios de Mânlio mas o mal sempre perdurava. Leis particulares concederam aos devedores facilidades nos pagamentos e, no ano 428 de Roma, os cônsules apresentaram uma lei que suprimiu o direito dos credores de manter os devedores em servidão nas suas casas. Um usurário chamado Papiro pretendera corromper a pudicícia de um jovem chamado Públio que ele mantinha preso. O crime de Sexto deu a Roma a liberdade política; o de Papiro, a liberdade civil. Foi do destino desta cidade que novos crimes aí assegurassem a liberdade que crimes antigos lhe tinham ocasionado. O atentado de Ápio contra Virgínia restabeleceu no povo este horror contra os tiranos que lhe tinha dado a desgraça de Lucrécio. Trinta e sete anos depois do crime infame de Papiro, um crime semelhante fez com que o povo se retirasse para o Janículo e que a lei feita para a segurança dos devedores readquirisse nova força. Desde essa época, os credores foram antes perseguidos pelos devedores por terem violado leis estabeleci das contra a usura do que os devedores por não as terem saldado. CAPÍTULO XXII Das coisas que afetam a liberdade na monarquia A coisa mais inútil do mundo para o príncipe tem, frequentemente, enfraquecido a liberdade nas monarquias: os comissários nomeados algumas vezes para julgar um indivíduo. Os comissários são tão pouco úteis para o príncipe que não vale a pena que ele modifique a ordem das coisas para isso. Ele está moralmente seguro que possui mais espírito de probidade e de justiça do que seus comissários que sempre se acreditam muito justificados por suas ordens, por um obscuro interesse de Estado, pela escolha que deles se fez e por seus próprios temores. No reinado de Henrique VIII, quando se processava um par, faziam-no ser julgado por comissários escolhidos na câmara dos pares; com este procedimento condenou-se à morte todos os pares que se quis. CAPÍTULO XXIII Dos espiões na monarquia São necessários espiões na monarquia? Não é esta a prática comum dos bons príncipes. Quando um homem é fiel às leis, ele está satisfeito com o que deve ao príncipe. Cumpre, ao menos, que ele tenha sua casa para asilo e o resto de sua conduta em segurança. A espionagem talvez fosse tolerável se pudesse ser exercida por pessoas honestas, mas a infâmia necessária à pessoa pode fazer julgar da infâmia da coisa. Um príncipe deve tratar com seus súditos com candura, franqueza, confiança. Quem tem tantas inquietudes, suspeitas e temores é um ator que não está à vontade para representar seu papel. Quando percebe que as leis estão de posse de sua força e que são respeitadas, pode acreditar-se em segurança. O comportamento geral informa-o sobre o comportamento de todos os particulares. Que não tenha ele nenhum temor, pois não pode imaginar quanto se é levado a amá-lo. Ah! E por que não seria amado? É a fonte de quase todo bem que se pratica e quase todas as punições correm por conta das leis. Aparece sempre ao povo com um rosto sereno; sua própria glória a nós se comunica e seu poder sustenta-nos. A prova de que é amado é que se tem confiança nele, e que, quando um ministro recusa, sempre se imagina que o príncipe teria concedido. Mesmo quando das calamidades públicas, nunca acusamos sua pessoa; queixamo-nos daquilo que ele ignora ou nos queixamos de que ele está confundido pelas pessoas corrompidas que o cercam. Se o príncipe soubesse! Exclama o povo. Essas palavras são uma espécie de invocação e uma prova da confiança que nele se deposita. CAPÍTULO XXIV Das cartas anônimas Os tártaros são obrigados a colocar seu nome em suas flechas a fim de que se saiba quem as lança. Filipe da Macedônia, tendo sido ferido durante o cerco de uma cidade, encontrou no dardo: Aster assestou este golpe mortal em Filipe. Se os que acusam o fizessem visando o bem público, não o acusariam diante do príncipe, que pode ser facilmente prevenido, mas diante dos magistrados, que têm regras que só são temíveis para os caluniadores. O fato de não quererem deixar as leis entre eles e os acusados é uma prova de que têm motivos para temê-las, e a menor pena que se pode infligir-lhes é não acreditar neles. Só se poderia prestar-lhes atenção nos casos em que não poderiam sofrer a lentidão da justiça comum e nos que concernem à salvação do príncipe. Neste caso pode-se acreditar que quem acusa fez um esforço que desatou sua língua e a fez falar. Porém, em outros casos, cumpre dizer com o Imperador Constâncio: "Não poderíamos suspeitar daquele a quem faltou um acusador quando não lhe faltava um inimigo”. CAPÍTULO XXV Da maneira de governar na monarquia A autoridade real é uma grande mola que deve movimentar-se fácil e silenciosamente. Os chineses louvam um de seus imperadores que governou, dizem eles, como o céu, isto é, pelo seu exemplo. Há casos em que o poder deve agir em toda sua extensão; há outros em que deve agir por seus limites. O sublime da administração é saber exatamente qual é a parte do poder, grande ou pequena, que se deve empregar nas diferentes circunstâncias. Nas monarquias, toda felicidade consiste na opinião que o povo tem da moderação do governo. Um ministro inábil quer sempre vos advertir de que sois escravos. Mas, se isso fosse verdade, ele deveria procurar fazer com que esse fato fosse ignorado. Ele só sabe escrever- vos ou dizer-vos que o príncipe está aborrecido, surpreso, que manterá a ordem. Há certa facilidade no comando: é mister que o príncipe encoraje e que sejam as leis que ameacem. CAPÍTULO XXVI De como, na monarquia, o príncipe deve ser acessível Perceber-se-á isso muito melhor pelos contrastes. "O Czar Pedro I, relata o Senhor Perry, fez uma nova ordenança proibindo que lhe sejam apresentadas petições antes que duas tenham sido apresentadas a seus oficiais. Pode-se, em caso de denegação da justiça, apresentar-se-lhe a terceira, mas quem não tiver razão deverá perder a vida. Desde então, ninguém apresentou petição ao czar." CAPÍTULO XXVII Dos costumes do monarca Os costumes do príncipe contribuem tanto para a liberdade como as leis; ele pode, tal como as leis, fazer dos homens animais, e dos animais, homens. Se ele aprecia as almas livres, terá súditos; se aprecia as almas vis, terá escravos. Quer ele conhecer a suprema arte de reinar? Que traga para junto de si a honra e a virtude, que atraia o mérito pessoal. Pode mesmo dar, algumas vezes, atenção aos talentosos. Que não tema esses rivais chamados homens de mérito, pois são seus iguais, desde que os aprecie. Que ganhe o coração mas não cative o espírito. Que se torne popular. Deve orgulhar-se do amor de seu súdito mais humilde, pois se trata, sempre, de homens. O povo exige tão pouca consideração que é justo concedê-la; a infinita distância que separa o soberano do povo impede que este último o incomode. Exorável à súplica, cumpre que seja inflexível quanto às demandas e que saiba que seu povo frui de suas recusas e seus cortesãos de suas graças. CAPÍTULO XXVIII Das considerações que os monarcas devem a seus súditos Cumpre que eles sejam extremamente moderados na zombaria. Essa agrada quando é comedida porque oferece possibilidade de criar familiaridade. Porém uma zombaria ferina lhes é bem menos permitida do que ao último de seus súditos, porque são os únicos que sempre ferem mortalmente. Ainda menos devem dirigir contra um de seus súditos um insulto pesado, pois os monarcas existem para perdoar, para punir, mas nunca para insultar. Quando insultam seus súditos, eles os tratam bem mais cruelmente do que o turco ou o moscovita trata os seus. Quando esses últimos insultam, eles humilham mas não desonram; mas os monarcas humilham e desonram. O preconceito dos asiáticos é tal que encaram uma afronta cometida pelo príncipe como uma bondade paternal e tal é nossa maneira de pensar que acrescentamos ao cruel sentimento da afronta o desespero de nunca podermos lavá-la. Devem eles ficar encantados por terem súditos a quem a honra é mais cara que a vida e não é menos um motivo de fidelidade do que de coragem. Podem ser lembradas as desgraças ocorridas aos príncipes por terem insultado seus súditos, as vinganças de Quereas, do eunuco Narses e do Conde Juliano e, enfim, da Duquesa de Montpensier que, indignada contra Henrique III, que revelara um de seus defeitos secretos, atormentou-o durante toda sua vida. CAPÍTULO XXIX Das leis civis capazes de introduzir um pouco de liberdade no governo despótico Apesar de ser o governo despótico, em sua natureza, o mesmo em toda parte, as circunstâncias, uma opinião religiosa, um preconceito, exemplos recebidos, uma mudança de ideias, de maneiras, de costumes, podem, entretanto, introduzir neles diferenças consideráveis. É útil que certas ideias aí sejam estabelecidas. Assim, na China, o príncipe é considerado o pai dos povos e, nos inícios do império dos árabes, o príncipe era seu pregador. Convém que haja algum livro sagrado que sirva de regra, como o Alcorão entre os árabes, os livros de Zoroastro entre os persas, o Veda entre os hindus, os livros clássicos entre os chineses. O código religioso completa o código civil e fixa o arbitrário. Não é inconveniente que, nos casos duvidosos, os juízes consultem os ministros da religião. Destarte, na Turquia, os cádis consultavam os molás, porque, se o caso deve ser punido de morte, poderia ser conveniente que o juiz particular, se há algum, consulte o governador, a fim de que o poder civil e o eclesiástico sejam também moderados pela autoridade política. CAPÍTULO XXX Continuação do mesmo assunto Foi o furor despótico que estabeleceu que o desfavor do pai acarretaria o dos filhos e o das mulheres. São eles já infelizes sem serem criminosos e, aliás, cumpre que o príncipe deixe, entre o acusado e ele, suplicantes para abrandar sua cólera, ou para esclarecer sua justiça. Era bom o costume dos Maldivas que estabelecia que, quando um senhor caía em desfavor, deveria ir todos os dias fazer a corte ao rei, até que obtivesse novamente sua graça; sua presença desarma a ira do príncipe. Há Estados despóticos em que se pensa que interceder junto a um príncipe em favor de uma pessoa que caiu em desagrado significa faltar com o respeito que lhe é devido. Estes príncipes parecem envidar todos os esforços para se despojar da virtude da clemência. Arcádio e Honório, na lei à qual tanto me referi, declaram que não concederão nenhuma graça aos que ousarem suplicar em favor de culpados. Essa lei era bem má pois o era no próprio despotismo. Era muito bom o costume da Pérsia que permitia, a quem quisesse, abandonar o reino; e, apesar de que a prática contrária se tenha originado no despotismo, onde os súditos foram considerados escravos, e os que escapavam, escravos fugitivos, a prática da Pérsia era, entretanto, muito útil ao despotismo, onde o temor da fuga ou a evasão dos devedores paralisa ou modera as perseguições dos paxás e dos exatores. LIVRO DÉCIMO TERCEIRO - Das relações que a arrecadação dos tributos e a grandeza das rendas públicas têm com a liberdade CAPÍTULO I Das rendas do Estado As rendas do Estado são uma parcela que cada cidadão dá de seu bem para ter a segurança da outra ou para fruí-la agradavelmente. Para fixar corretamente essas rendas, cumpre considerar as necessidades do Estado e as necessidades dos cidadãos. Não se deve tirar das necessidades reais do povo para suprir as necessidades imaginárias do Estado. Necessidades imaginárias são as exigidas pelas paixões e fraquezas dos que governam, a atração de um projeto extraordinário, o desejo doentio de uma glória inútil e certa impotência do espírito contra os caprichos. Amiúde, os que, com um espírito inquieto, estavam na direção dos negócios sob o governo do príncipe, julgaram que as necessidades do Estado eram as necessidades de suas almas insignificantes. A sabedoria e a prudência devem regulamentar tão bem como a porção que se retira e a porção que se deixa aos súditos. Não é pelo que o povo pode dar que se deve medir as rendas públicas mas sim pelo que ele deve dar; e, se os medimos pelo que ele pode dar, é mister que seja, pelo menos, segundo o que o povo pode sempre dar. CAPÍTULO II De como é raciocinar mal dizer que a grandeza dos tributos é boa por si mesma Viu-se, em certas monarquias, como pequenos países, isentos de tributos, eram tão miseráveis quanto os que, à sua volta, estavam sobrecarregados deles. O principal motivo é que o pequeno Estado cercado não pode ter indústria, artes, nem manufatura, porque é, no que diz respeito a essa questão, prejudicado de mil maneiras pelo grande Estado no qual está encravado. O grande Estado que o rodeia tem a indústria, as manufaturas e as artes e estabelece os regulamentos que lhe são favoráveis. O pequeno Estado torna-se, portanto, necessàriamente pobre, apesar de os impostos arrecadados não serem elevados. Concluiu-se, entretanto, da pobreza desses pequenos países que, para que o povo fosse laborioso, eram necessários pesados impostos. Seria melhor concluir que eles não eram necessários. São todos os miseráveis dos arredores que se refugiam nesses lugares para nada fazer; já desencorajados pela sobrecarga do trabalho, fazem da preguiça toda sua felicidade. O resultado das riquezas de um país é inserir a ambição em todos os corações. O resultado da pobreza é criar o desespero. A primeira estimula-se no trabalho; o outro consola-se na indolência. A Natureza é justa com os homens; recompensa-os de seus sofrimentos; torna-os laboriosos porque atribui as maiores recompensas aos maiores trabalhos. Porém se um poder arbitrário suprime as recompensas da Natureza, recupera-se a aversão pelo trabalho e a inação parece ser o único bem. CAPÍTULO III Dos tributos nos países em que uma parte do povo é escrava da gleba A escravidão da gleba estabelece-se, algumas vezes, depois de uma conquista. Neste caso, o escravo que cultiva deve ser o colono arrendatário do senhor. Somente uma sociedade de perdas e ganhos pode reconciliar os que estão destinados a trabalhar com os que estão destinados a desfrutar. CAPÍTULO IV De uma república em caso semelhante Quando uma república reduziu uma nação a cultivar as terras para ela, não se deve permitir que o cidadão possa aumentar o tributo do escravo. Isso não era permitido na Lacedemônia; imaginava-se que os helotas cultivariam melhor as terras se soubessem que sua servidão não seria aumentada ainda mais; acreditava-se que os senhores seriam melhores cidadãos quando só aspirassem ao que estavam acostumados a possuir. CAPÍTULO V De uma monarquia em caso semelhante Quando, numa monarquia, a nobreza faz cultivar as terras em seu próprio benefício pelo povo dominado, é necessário ainda que o censo não possa ser aumentado. Demais, é conveniente que o príncipe se contente com seu domínio e com o serviço militar. Mas se ele pretender arrecadar tributos em dinheiro sobre os escravos de sua nobreza, cumpre que o senhor seja fiador do tributo, que o pague pelos escravos e o recupere desses; e, se não se segue essa regra, o senhor e os que arrecadam os tributos do príncipe, um após outro, atormentarão o escravo sucessivamente e o reprimirão até que ele pereça de miséria ou se refugie nas florestas. CAPÍTULO VI De um Estado despótico em caso semelhante O que acabo de dizer é ainda mais indispensável num Estado despótico. O senhor que pode a qualquer momento ser despojado de suas terras e de seus escravos não é tão estimulado a conservá-los, Pedro I, pretendendo imitar a prática da Alemanha e arrecadar seus tributos em dinheiro, estabeleceu um regulamento muito sábio que ainda hoje é observado na Rússia. O gentil-homem cobra a taxa de seus camponeses e a paga ao czar. Se o número de camponeses diminui, ele pagará do mesmo modo; se o número aumenta, ele não pagará a mais; está portanto interessado em não vexar seus camponeses. CAPÍTULO VII Dos tributos nos países onde a escravidão da gleba não está estabelecida Num Estado, quando todos os indivíduos são cidadãos, e quando cada um possui por seu domínio o que o príncipe possui por seu império, pode-se taxar as pessoas, as terras ou as mercadorias; duas delas ou todas as três. No imposto sobre a pessoa, a proporção injusta seria a que seguisse exatamente a proporção dos bens. Tinha-se dividido, em Atenas, os cidadãos em quatro classes. Os que extraíam de seus bens quinhentas medidas de frutos líquidos ou secos pagavam ao público um talento; os que extraíam trezentas medidas deviam meio talento; os da quarta classe nada pagavam. A taxa era justa, embora não fosse proporcional; se não acompanhava a proporção dos bens, acompanhava a proporção das necessidades. Julgou-se que cada um possuía um necessário material igual, que não devia ser taxado; que o útil vinha em seguida e deveria ser taxado, porém menos que o supérfluo, e que a grandeza da taxa sobre o supérfluo impedia o supérfluo. Nas taxas sobre as terras, estabeleciam-se listas nas quais incluíam-se as diversas classes de fundos. Mas é muito difícil conhecer essas diferenças e ainda mais encontrar pessoas que não estejam interessadas em desconhecê-las. Há nisso, portanto, duas espécies de injustiças: a injustiça do homem e a injustiça da coisa. Mas em geral, a taxa não é muito excessiva, se se deixa ao povo um necessário abundante, essas injustiças individuais nada significam; mas se, ao contrário, deixa-se ao povo apenas aquilo de que tem absoluta necessidade para viver, a menor desproporção será da maior consequência. Se alguns cidadãos não pagarem bastante, o mal não é grande; a abastança deles sempre retomará ao público; se alguns indivíduos pagam muito, a ruína deles voltar-se-á contra o público. Se o Estado mantém sua fortuna proporcional à dos particulares, o bem-estar dos indivíduos logo fará aumentar a sua. Tudo depende do momento. Para se enriquecer, o Estado começará empobrecendo os súditos? Ou esperará que os súditos, à vontade, o enriqueçam? Caber-lhe-á a primeira vantagem ou a segunda? Começará por ser rico ou terminará por sê-lo? Os direitos sobre as mercadorias são os que os povos menos sentem, porque não se lhes faz uma arrecadação formal. Podem eles ser tão sàbiamente manipulados que o povo quase ignorará que os paga. Por isso, é muito importante que quem vende a mercadoria seja quem pague o direito. Ele saberá muito bem que não é ele quem paga e o comprador, que é quem efetivamente paga, o confunde com o preço. Alguns autores disseram que Nero suprimira o direito do vigésimo quinto escravo vendido-v; entretanto, não fizera ele outra coisa senão ordenar que seria o vendedor que o pagaria e não o comprador; este regulamento que conservava todo o imposto pareceu suprimi-lo. Há dois reinos na Europa em que se lançaram impostos muito elevados sobre as bebidas; num, apenas o cervejeiro paga o direito; noutro, eles são arrecadados indiferentemente sobre todos os súditos que as consomem. No primeiro, ninguém sente o rigor do imposto; no segundo, ele é considerado oneroso; naquele, o cidadão só sente a liberdade que tem de não pagar; neste, sente apenas a necessidade que o constrange. Aliás, para que o cidadão pague, são necessárias contínuas sindicâncias em seu estabelecimento. Nada é mais contrário à liberdade; e os que estabelecem esse tipo de imposto não têm a felicidade de haver, a esse respeito, encontrado a melhor forma de administração. CAPÍTULO VIII Como se conserva a ilusão Para que o preço da coisa e o direito possam confundir-se na mente de quem paga, cumpre que exista alguma relação entre a mercadoria e o imposto e que, sobre um gênero de pouco valor, não se lance um direito excessivo. Há países em que o direito excede dezessete vezes o valor da mercadorias. Então o príncipe extirpa a ilusão de seus súditos; estes percebem que são governados de uma maneira que não é correta, o que os leva a sentir sua servidão no mais alto grau. Aliás, para que um príncipe possa arrecadar um direito tão desproporcional em relação ao valor da coisa, é mister que ele próprio venda a mercadoria e que o povo não possa comprá-la em outro lugar, coisa que está sujeita a mil inconvenientes. Sendo a fraude, neste caso, muito lucrativa, a pena natural, a que a razão exige, que é o confisco da mercadoria, torna-se incapaz de sustá-la, tanto mais que esta mercadoria, geralmente, é de preço muito vil. É preciso, assim, recorrer a penas exageradas, semelhantes à que se infligem aos maiores crimes. Toda a proporção das penas desaparece. Pessoas que seriam consideradas simplesmente homens perversos, são punidas como celeradas; isso é o que há de mais contrário ao espírito do governo moderado. Acrescento ainda que, quanto mais se propicia ao povo ocasião de fraudar o contratador, mais este se enriquece e o povo se empobrece, Para impedir a fraude, é mister dar ao arrematante meios de vexações extraordinárias, e tudo teria fim. CAPÍTULO IX De uma má espécie de imposto Falaremos de passagem de um imposto estabelecido em alguns Estados sobre as diversas cláusulas de contratos civis. Para se defender do contratador, requerem-se grandes conhecimentos, estando essas coisas sujeitas a discussões sutis. Assim, o contratador interpreta os regulamentos do príncipe, exerce um poder arbitrário sobre as fortunas. A experiência mostrou que um imposto no papel sobre o qual o contrato deve ser redigido seria muito melhor. CAPÍTULO X De como a grandeza dos tributos depende da natureza do governo Devem os tributos ser leves no governo despótico. Se assim não fosse, quem se daria ao trabalho de cultivar as terras? Demais, como pagar pesados tributos num governo que nada acrescenta àquilo que o súdito deu? No extraordinário poder do príncipe e na estranha fraqueza do povo, é necessário que não possa haver equívoco sobre nada. Os tributos devem ser fàcilmente compreendidos e tão claramente estabelecidos que não possam ser aumentados nem diminuídos pelos que os arrecadam. Uma porção sobre os frutos da terra, uma taxa por cabeça, um tributo de tanto por cento sobre as mercadorias, são os únicos convenientes. É bom, no governo despótico, que os comerciantes tenham uma garantia pessoal e a prática os faça respeitar; sem isso, eles seriam muito fracos nas discussões que pudessem ter com os oficiais do príncipe. CAPÍTULO XI Das penas fiscais É uma particularidade das penas fiscais serem, contra a prática geral, mais severas na Europa do que na Ásia. Na Europa, confiscam-se as mercadorias e, algumas vezes, inclusive os navios e os meios de transporte; na Ásia, não se faz nem uma coisa nem outra. É que na Europa os comerciantes têm juízes que podem garanti-los contra a opressão; na Ásia, os juízes despóticos são os próprios opressores. Que faria um comerciante contra um paxá que resolvesse confiscar-lhe as mercadorias? É a vexação que supera a si própria e vê-se constrangida a certa brandura. Arrecada-se, na Turquia, apenas um único direito de entrada; e depois disso, todo o país está aberto aos mercadores. Não implicam em falsas declarações nem em confisco, nem em aumento dos direitos. Na China, não se abrem os fardos das pessoas que não são comerciantes. A fraude, entre os mongóis, não é punida com o confisco mas com a duplicação dos direitos. Os príncipes tártaros, que na Ásia habitam as cidades, quase nada arrecadam sobre as mercadorias em trânsito. E se, no Japão, o crime de fraude no comércio é considerado crime capital, é porque há motivos para proibir toda comunicação com os estrangeiros e porque a fraude é, aí, antes uma contravenção às leis da segurança do Estado do que às leis do comércio. CAPÍTULO XII Relação da grandeza dos tributos com a liberdade Regra geral: pode-se arrecadar tributos mais elevados, na proporção da liberdade dos súditos, e é-se forçado a moderá-los na medida em que a servidão aumenta. Isso sempre aconteceu e acontecerá sempre. É uma regra extraída da natureza que nunca varia; encontramo-la em todos os países, na Inglaterra, na Holanda e em todos os Estados em que a liberdade se vai degradando, até na Turquia. A Suíça parece ser uma exceção porque lá não se pagam tributos. Não sabemos o motivo específico disso, mas esse país confirma também o que afirmo. Nas suas montanhas estéreis, os víveres são tão caros e o país tão povoado que um suíço paga quatro vezes mais à Natureza do que um turco paga ao sultão. Um povo dominador, como os atenienses e os romanos, pode libertar-se de todo imposto porque reina sobre nações dominadas. Não paga, então, na proporção de sua liberdade pois que, nesta questão, não é um povo mas um monarca. Mas a regra geral continua válida. Há, nos Estados moderados, uma compensação para o excesso de tributos: é a liberdade. Nos Estados despóticos há um equivalente para a liberdade: a modicidade dos impostos. Em certas monarquias europeias encontramos províncias que, pela natureza de seu governo político, estão em melhor situação que as demais. Imagina-se sempre que elas não pagam o suficiente porque, como resultado da bondade do governo, poderiam pagar ainda mais, e sempre se pensa suprimir-lhes este governo, justamente o que produziu este bem que se comunica, que se propaga longe, e do qual seria melhor aproveitar. CAPÍTULO XIII Em que governos os tributos são suscetíveis de aumento Pode-se aumentar, na maioria das repúblicas, os tributos, porque o cidadão, que pensa estar pagando a si próprio, deseja pagá-los e, geralmente, em consequência da natureza do governo, tem-se poder para isso. Na monarquia, pode-se aumentar os tributos porque a moderação do governo pode proporcionar riquezas. É como a recompensa do príncipe, por causa do respeito que ele tem pelas leis. No Estado despótico, não se pode aumentá-los, porque não se pode aumentar a própria servidão. CAPÍTULO XIV Como a natureza dos tributos é relativa ao governo O imposto por pessoa é mais adequado à servidão; o imposto sobre as mercadorias é mais adequado à liberdade, porque se relaciona de modo menos direto à pessoa. No governo despótico, é natural que o príncipe não dê dinheiro nem à sua milícia, nem aos nobres mas que distribua terras e, consequentemente, que poucos tributos sejam arrecadados, porque, se o príncipe dá dinheiro, o tributo mais natural que poderia arrecadar seria um tributo por pessoa. Este tributo tem que ser muito metódico, pois, como não se pode estabelecer diversas classes de contribuintes, por causa dos abusos que isso acarretaria, considerando a injustiça e a violência do governo, cumpre, necessariamente, ser regulamentado de acordo com a taxa que os mais miseráveis podem pagar. O tributo natural ao governo moderado é o imposto sobre as mercadorias. Sendo esse imposto realmente pago pelo comprador, embora o comerciante o adiante, é um empréstimo que o comerciante já fez ao comprador. Assim, é necessário considerar o negociante como o devedor geral do Estado e como o credor de todos os particulares. Ele adianta ao Estado o direito que o comprador lhe pagará algum dia e pagou para o comprador o direito que pagou pela mercadoria. Percebe-se, portanto, que quanto mais o governo é moderado, quanto mais o espírito da liberdade reina, quanto mais as fortunas estão garantidas, mais fácil é ao comerciante adiantar ao Estado e emprestar aos particulares direitos consideráveis. Na Inglaterra, um comerciante empresta realmente ao Estado cinquenta ou sessenta libras esterlinas por cada tonel de vinho recebido. Que comerciante ousaria fazer coisa semelhante num país governado como a Turquia? E, se ousasse, como poderia fazê-lo, com uma fortuna instável, incerta e arruinada? CAPÍTULO XV Abuso da liberdade Essas grandes vantagens da liberdade fizeram com que se abusasse da própria liberdade. Do fato de o governo moderado ter dado admiráveis resultados, abandonou-se essa moderação; porque se arrecadou grandes tributos, quis-se arrecadá-los em excesso e, desprezando-se a mão da liberdade que concedia essas dádivas, caminhou-se para a servidão que tudo recusa. A liberdade acarretou o excesso de tributos, mas o efeito desses tributos excessivos é produzir, por sua vez, a servidão, é produzir a diminuição dos tributos. Os monarcas da Ásia quase só proclamam editos para isentar de tributos, anualmente, alguma província de seu império: as manifestações de suas vontades são benefícios. Mas na Europa, os editos dos príncipes afligem mesmo antes que deles se tenha conhecimento, porque tratam sempre de suas necessidades e nunca das nossas. De uma imperdoável negligência, que os ministros desses países extraem do governo e, amiúde, do clima, os povos desfrutam essa vantagem de não serem incessantemente esmagados por novas exigências. As despesas não aumentam porque novos projetos não são feitos e, se por acaso são feitos, são projetos dos quais se vê fim, e não projetos começados. Os que governam o Estado não atormentam porque não atormentam incessantemente a si mesmos. Mas, para nós, é impossível que alguma vez tenhamos ordem em nossas finanças porque sabemos sempre que faremos alguma coisa mas nunca o que faremos. Entre nós, não mais se chama de grande ministro aquele que é um prudente administrador das rendas públicas mas sim aquele que é um homem de empreendimentos e que é capaz de descobrir o que chamamos expedientes. CAPÍTULO XVI Das conquistas dos maometanos Foram esses tributos excessivos que produziram esta estranha facilidade que encontraram os maometanos em suas conquistas. Os povos, em lugar desta série contínua de vexação que a avareza sutil dos imperadores imaginara, viram-se submetidos a um tributo simples, fàcilmente pago e igualmente cobrado; e mais felizes obedecendo a uma nação bárbara do que a um governo corrompido sob o qual sofriam todos os inconvenientes de uma liberdade que não mais fruíam, com todos os horrores de uma servidão presente. CAPÍTULO XVII Do aumento das tropas Uma nova doença difundiu-se na Europa; atingiu nossos príncipes e fê-los manter um número desordenado de tropas. Ela teve seus desdobramentos e tornou-se necessàriamente contagiosa, porque, logo que um Estado aumenta o que chama suas tropas, os demais subitamente aumentam as suas, de modo que, com isso, apenas se alcança a ruína comum. Cada monarca mantém preparados todos os exércitos que deveria manter se seus povos estivessem em risco de serem exterminados. E chamamos paz a esses estados de alerta de todos contra todos. Nestas condições, a Europa encontra-se tão arruinada que os indivíduos que estivessem na mesma situação em que se encontram as três potências mais opulentas dessa parte do mundo não teriam de que viver. Somos pobres com as riquezas e o comércio de todo o universo e logo, à força de mantermos soldados, só teremos soldados e seremos como os tártaros. Os grandes príncipes, não satisfeitos em comprar as tropas dos menores, procuram de todos os lados comprar aliados, isto é, perder quase sempre seu dinheiro. A consequência de semelhante situação é o perpétuo aumento dos impostos, o que anula todos os remédios futuros; não se conta mais com as rendas, mas faz-se a guerra com seu capital. Não é mais um fato inédito ver Estados hipotecarem seus fundos durante a própria paz e utilizarem, para se arruinar, meios que chamam de extraordinários e que são tão excessivos que o filho-família mais estróina mal o imagina. CAPÍTULO XVIII Da isenção de tributos A máxima dos grandes impérios do Oriente de dispensar do pagamento de tributos as províncias arruinadas, deveria muito ser imitada nos Estados monárquicos. Em alguns, de fato, ela já existe, porém oprime mais do que se não existisse porque, não arrecadando o príncipe nem mais nem menos, todo o Estado torna-se solidário. Para aliviar uma aldeia que paga com dificuldade, sobrecarrega-se outra que paga melhor; não se restabelece a primeira, destrói-se a segunda. O povo fica desesperado entre a necessidade de pagar, o medo das exações, o perigo de pagar e o temor das sobrecargas. Um Estado bem governado deve colocar, como primeiro artigo de sua despesa, uma soma regulamentada para os casos inesperados. Ocorre com o público a mesma coisa que com os indivíduos; arruínam-se quando despendem exatamente a renda de suas terras. A respeito da solidez entre os habitantes da mesma aldeia afirmou-se que ela era razoável porque se podia supor um conluio fraudulento de parte deles; mas de onde se aprendeu que, baseado em suposições, deve-se estabelecer uma coisa injusta por si mesma e ruinosa para o Estado? CAPÍTULO XIX O que é mais conveniente ao príncipe e ao povo: a arrecadação por contrato ou a cobrança oficial dos tributos? A arrecadação oficial é a administração de um bom pai de família que obtém, ele próprio, com economia e ordem, suas rendas. Pela arrecadação oficial, o príncipe está em condições de apressar ou retardar a arrecadação dos tributos, de acordo com suas necessidades, ou de acordo com as necessidades de seus povos. Pela arrecadação oficial ele poupa ao Estado os imensos lucros dos contratadores que o empobrecem de mil maneiras. Pela arrecadação oficial, poupa ao povo o espetáculo das fortunas súbitas que afligem. Pela arrecadação oficial, o dinheiro arrecadado passa por poucas mãos, indo diretamente ao príncipe e, consequentemente, retoma mais ràpidamente ao povo. Pela arrecadação oficial, o príncipe poupa ao povo uma infinidade de leis nefastas que a avareza importuna dos contratadores sempre lhe exige, e que mostram uma vantagem presente nos regulamentos funestos no futuro. Como quem possui o dinheiro é sempre senhor do outro, o contratador torna-se despótico em relação ao próprio príncipe; ele não é legislador mas força o príncipe a fazer as leis. Confesso que é algumas vezes útil realizar a cobrança inicialmente por intermédio dos contratadores. Há uma arte e artifícios para impedir as fraudes, que os interesses dos contratadores lhes sugere e que os cobradores do Estado não saberiam imaginar. Ora, uma vez estabelecido pelo contratador o sistema de arrecadação, pode-se estabelecer com êxito a arrecadação oficial. Na Inglaterra, a administração da acisa e da renda postal, como existe atualmente, foi imitada dos contratadores. Nas repúblicas, as rendas do Estado são quase sempre recolhidas em sistema de arrecadação oficial. O sistema contrário foi um grande vício do governo de Roma. Nos Estados despóticos, onde a arrecadação pelo Estado existia, os povos são infinitamente mais felizes, como os casos da Pérsia e da China o comprovam. Os mais infelizes são os povos dos lugares em que o príncipe arrenda seus portos de mar e suas cidades de comércio. A história das monarquias está repleta de malefícios ocasionados pelos contratadores. Nero, indignado com as vexações dos publicanos, formou o projeto impossível e magnânimo de abolir todos os impostos. Ele não imaginou a arrecadação oficial. Fez quatro ordenanças: que as leis proclamadas contra os publicanos, que até então tinham sido mantidas secretas, fossem publicadas; que eles não poderiam exigir o que tivessem negligenciado reclamar durante o ano; que haveria um preto r estabelecido para julgar suas pretensões, sem formalidade; que os comerciantes não pagariam nada pelos navios. Eis os dias gloriosos desse imperador. CAPITULO XX Dos contratadores Tudo está perdido quando a profissão lucrativa dos contratadores consegue, por suas riquezas, ser uma profissão honrada. Isto pode ser conveniente nos Estados despóticos em que, amiúde, seu emprego é uma parte das funções dos próprios governantes. Mas não é conveniente na república; e algo semelhante destruía a república romana. Isso também não é melhor na monarquia: nada é mais contrário do que isso ao espírito desses governos. A mágoa apodera-se de todos os outros Estados; a honra perde toda sua consideração, os meios lentos e naturais de ascensão perdem seu prestígio e o governo é afetado em seu princípio. Vimos perfeitamente, em épocas passadas, fortunas escandalosas; era uma das calamidades das guerras de cinquenta anos, mas, então, essas riquezas foram consideradas ridículas, e nós as admiramos. Há um prêmio para cada profissão. O prêmio dos que arrecadam os tributos são as riquezas, e as recompensas dessas riquezas, são as próprias riquezas. A glória e a honra cabem a esta nobreza que só conhece, que só vê, que só sente como verdadeiro bem a honra e a glória. O respeito e a consideração cabe a esses ministros e magistrados que, só encontrando trabalho sobre trabalho, velam noite e dia pela felicidade do império. TERCEIRA PARTE LIVRO DÉCIMO QUARTO - Das leis na relação que elas têm com a natureza do clima CAPÍTULO I Ideia geral Se é verdade que o caráter do espírito e as paixões do coração são extremamente diferentes nos diversos climas, as leis devem ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses caracteres. CAPÍTULO II Como os homens são diferentes nos diversos climas O ar frio comprime as extremidades das fibras externas de nosso corpo; isso aumenta sua energia e favorece o retorno do sangue das extremidades para o coração. Ele diminui a extensão dessas mesmas fibras; portanto, aumenta também com isso sua força. O ar quente, ao contrário, relaxa as extremidades das fibras e as alonga: diminui, portanto, sua força e energia. Tem-se, assim, mais vigor nos climas frios. A ação do coração e a reação das extremidades das fibras efetuam-se melhor, os licores estão em melhor equilíbrio, o sangue é melhor orientado para o coração e, reciprocamente, o coração é mais potente. Esta força maior deve produzir muitos efeitos, Por exemplo: mais confiança em si mesmo, isto é, mais coragem; mais conhecimento de sua superioridade, isto é, menos desejo de vingança; mais certeza de sua segurança, isto é, mais franqueza, menos suspeitas, menos política, menos malícia. Enfim, isso deve formar caracteres bem diferentes. Colocai um homem num lugar quente e fechado e ele sofrerá, pelos motivos que acabo de expor, um grande enfraquecimento do coração. Se, nessa circunstância, lhe propomos uma ação ousada, creio que ele estará muito pouco disposto; sua fraqueza atual desencorajará sua alma; temerá tudo porque sentirá que nada pode. Os povos das regiões quentes são tímidos como os anciões; os das regiões frias são corajosos como os jovens. Se prestamos atenção às últimas guerras, que são as que mais temos sob a vista e nas quais podemos melhor perceber certos efeitos superficiais, imperceptíveis de longe, perceberemos claramente que os povos do norte, transportados para as regiões do sul ,a, aí não praticaram tão belas ações como seus compatriotas que, combatendo em seu próprio clima, desfrutavam de toda sua coragem. A força das fibras dos povos do norte faz com que os sucos mais grosseiros sejam extraídos dos alimentos. Isso acarreta duas coisas: primeiro, as partes do quilo ou da linfa são mais apropriadas, por sua extensa superfície, para serem aplicadas sobre as fibras e nutri-las; segundo, são elas menos apropriadas, porque são grosseiras, a dar certa sutileza ao suco nervoso. Esses povos serão, portanto, grandes de corpo e de pouca vivacidade. Os nervos que confinam, de todos os lados, no tecido de nossa pele, formam, cada um, um feixe de nervos. Geralmente, não é todo o nervo que é excitado, mas uma parte infinitamente pequena. Nos países quentes, em que o tecido da pele está relaxado, as extremidades dos nervos estão desabrochadas e expostas a menor ação dos mais fracos objetos. Nos países frios, o tecido da pele está retraído, e os mamilos comprimidos; as minúsculas borlas estão, de algum modo, paralisadas; a sensação quase só atinge o cérebro quando é extremamente forte e quando pertence ao nervo no seu conjunto. Porém é de um número infinito de pequenas sensações que dependem a imaginação, o gosto, a sensibilidade, a vivacidade. Observei o tecido externo da língua de um carneiro na parte em que ela aparece, a olho nu, coberta de mamilos. Vi, com um microscópio, sobre esses mamilos, pequenos pelos ou uma espécie de penugem; entre os mamilos havia pirâmides, que formavam na extremidade como que pequenos pincéis. É muito provável que essas pirâmides sejam o principal órgão do paladar. Mandei gelar a metade dessa língua, e encontrei, a olho nu, os mamilos consideràvelmente diminuídos; algumas séries dos mamilos tinham mesmo afundado em suas bainhas. Examinei-lhes o tecido com o microscópio e não mais vi as pirâmides. À medida em que a língua se degelava os mamilos, a olho nu, pareceram levantar-se e, no microscópio, as minúsculas borlas começaram a reaparecer. Esta observação confirma o que disse: nas regiões frias, as borlas nervosas são menos desabrochadas; entranham-se nas suas bainhas onde estão ao abrigo da ação dos objetos exteriores. As sensações são, portanto, menos vivas. Ter-se-á, nas regiões frias, pouca sensibilidade para os prazeres; ela será maior nas regiões temperadas; nas regiões quentes, será exagerada. Tal como diferenciamos os climas pelos graus de latitude, poderíamos diferenciá-los, por assim dizer, pelos graus de sensibilidade. Assisti a óperas na Inglaterra e na Itália; eram as mesmas peças e os mesmos personagens, mas a própria música produz efeitos tão diferentes sobre as duas nações: uma é tão calma, e a outra tão arrebatada, que isso parece inconcebível. Acontece a mesma coisa com a dor; ela é excitada em nós pelo dilaceramento de alguma fibra de nosso corpo. O autor da Natureza estabeleceu que essa dor seria mais forte à medida em que as perturbações fossem maiores. Ora, é evidente que os grandes corpos e as fibras grosseiras dos povos do norte são menos capazes de perturbações do que as fibras delicadas das regiões quentes. Naqueles, portanto, a alma é menos sensível à dor. É necessário escorchar um moscovita para dar-lhe sentimento. Com a delicadeza de órgãos que há nas regiões quentes, a alma é soberanamente comovida por tudo que diz respeito à união dos dois sexos; tudo leva a esse objetivo. Nos climas do norte, a física do amor mal tem força para se tornar bem sensível. Nos climas temperados, o amor, acompanhado de mil acessórios, torna-se agradável pelas coisas que inicialmente parecem ser ele próprio, e que ainda não o são: nos climas mais quentes, ama-se o amor em si; ele é a única causa da felicidade; é a vida. Nos países do sul, uma máquina delicada, fraca mas sensível, entrega-se a um amor que, num serralho, nasce e acalma-se incessantemente, ou se entrega a um amor que, deixando às mulheres grande independência, está sujeito a mil perturbações. Nos países do norte, uma máquina sadia e bem constituída, mas rude, encontra seus prazeres em tudo que pode colocar os espíritos em movimento; a caça, as viagens, a guerra, o vinho. Encontrareis, nos climas do Norte, povos que têm poucos vícios, muitas virtudes, sinceridade e franqueza. Aproximai-vos dos países do sul e acreditareis afastar-vos da própria moral: as paixões mais ardentes multiplicarão os crimes; cada um procurará tomar sobre os demais todas as vantagens que podem favorecer essas mesmas paixões. Nas regiões temperadas, vereis povos inconstantes em suas maneiras, nos próprios vícios e em suas virtudes. O clima não possui uma qualidade assaz determinada para fixá-los em si mesmos. O calor do clima pode ser tão excessivo que o corpo ficará totalmente sem força. Então, o desânimo atingirá o próprio espírito; nenhuma curiosidade, nenhum nobre empreendimento, nenhum sentimento generoso; as disposições serão todas passivas; a preguiça será a felicidade; a maioria dos castigos serão menos difíceis de sustentar do que a ação da alma, e a servidão menos insuportável do que a força do espírito que é necessária para conduzir a si mesmo. CAPÍTULO III Contradição nos caracteres de certos povos do sul Os indianos são naturalmente sem coragem; os próprios filhos dos europeus nascidos nas índias perdem a de seu clima. Mas como conciliar isso com suas ações atrozes, seus costumes e penitências bárbaras? Os homens submetem-se a sofrimentos inacreditáveis, as mulheres queimam-se a si próprias. Eis tanta força para tanta fraqueza. A Natureza, que deu a esses povos uma fraqueza que os torna timoratos, deu-lhes também uma imaginação tão viva que tudo os impressiona excessivamente. Esta mesma delicadeza de órgãos que os faz temer a morte serve também para fazê-los temer mil coisas mais que a morte. É a mesma sensibilidade que lhes faz fugir de todos os perigos e os leva a enfrentar todos. Como uma boa educação é mais necessária às crianças do que àqueles cujo espírito já atingiu a maturidade, da mesma maneira, os povos desses climas têm mais necessidade de um sábio legislador do que os povos do nosso. Quanto mais fácil e fortemente se é impressionado, mais é importante sê-lo de um modo conveniente, não aceitar preconceitos e ser orientado pela razão. No tempo dos romanos, os povos do norte da Europa viviam sem arte, sem educação, quase sem leis e, entretanto, apenas pelo bom senso relacionado às fibras grosseiras desses climas eles resistiram, com admirável prudência, contra o poder romano, até o momento em que abandonaram suas florestas para destruí-los. CAPÍTULO IV Causa da imutabilidade da religião, dos costumes, das maneiras, das leis, nos países do oriente. Se, a esta fraqueza de órgãos que faz com que os povos do Oriente recebam as mais fortes impressões do mundo, acrescentardes certa preguiça do espírito, relacionada naturalmente com a do corpo, que faz com que esse espírito não seja capaz de qualquer ação, de qualquer esforço, de qualquer contenção, compreendereis que a alma, que uma vez recebeu impressões, não mais pode modificar-se. É isso que faz com que as leis, os costumes e as maneiras, mesmo as que parecem indiferentes, como a maneira de vestir, sejam hoje, no Oriente, semelhantes às de mil anos atrás. CAPÍTULO V De como os maus legisladores aí são os que se opuseram Os indianos acreditam que o repouso e o nada são o fundamento de todas as coisas e o fim onde terminam. Consideram eles, portanto, a inação completa como o estado mais perfeito, e o objeto de seus desejos. Dão ao soberano ser o sobrenome de imóvel. Os siameses acreditam que a felicidade suprema consiste em não ser obrigado a animar uma máquina e a fazer um corpo agir. Nesses países, em que o calor excessivo enerva e desanima, o repouso é tão delicioso e o movimento tão penoso que esse sistema de metafísica parece natural. Foë, legislador das índias, obedeceu ao que sentia, quando pôs os homens num estado extremamente passivo. Porém sua doutrina, que surgiu da indolência do clima, favorecendo-a por sua vez, ocasionou mil males. Os legisladores da China foram mais sensatos quando, considerando os homens, não no tranquilo estado em que diàriamente se encontram, mas na ação adequada para levá-los a cumprir seus deveres da vida, fizeram sua religião, sua filosofia e suas leis totalmente práticas. Quanto mais as causas físicas levam os homens ao repouso, mais as causas morais devem afastá-los dele. CAPÍTULO VI Da cultura das terras nos climas quentes A cultura da terra é o maior trabalho dos homens. Quanto mais o clima tende a afastá-los desse trabalho, mais a religião e as leis devem estimulá-los. Assim, as leis das índias, que dão aos príncipes a terra e vedam aos cidadãos o espírito da propriedade, aumentam os efeitos perniciosos do clima, isto é, a indolência natural. CAPÍTULO VII Do monaquismo O monaquismo acarretou os mesmos males; surgiu nos países quentes do Oriente, onde não se é menos levado à ação do que à especulação. Na Ásia, o número dos dervixes, ou monges, parece aumentar com o calor do clima. As índias, onde o calor é excessivo, estão repletas deles; esta mesma diferença existe na Europa. A fim de sobrepujar a preguiça do clima, seria preciso que as leis procurassem eliminar todos os meios de se viver sem trabalhar; mas, no sul da Europa, elas fazem justamente o contrário: oferecem aos que desejam ser indolentes lugares apropriados à vida especulativa e a isso acrescentam riquezas imensas. Essas pessoas, que vivem numa abundância que lhes é pesada, dão, com razão, seu supérfluo ao baixo povo. Este perdeu a propriedade dos bens; aqueles recompensam-no pela ociosidade da qual o fazem desfrutar e o baixo povo chega a apreciar sua própria miséria. CAPÍTULO VIII Bom costume da China As relações da China falam-nos da cerimônia de abertura das terras, feita pelo imperador todos os anos. Pretendeu-se com esse ato público e solene estimular os povos à lavragem. Demais, o imperador é, cada ano, informado do lavrador que mais se distinguiu em sua profissão e fá-lo mandarim da oitava ordem. Entre os antigos persas, no oitavo dia do mês, chamado chorrem ruz, os reis abandonavam seus faustos para comer com os lavradores. Essas instituições são admiráveis para encorajar a agricultura. CAPÍTULO IX Meios de encorajar a indústria Demonstrarei, no livro XIX, que as nações preguiçosas geralmente são orgulhosas. Poder-se-ia voltar o efeito contra a causa e destruir a indolência pelo orgulho. No sul da Europa, onde os povos dão tanta importância à honra, seria conveniente oferecer prêmios aos lavradores que melhor cultivassem seus campos, ou aos operários que mais estimulassem sua indústria. Esta prática será mesmo vantajosa para toda região. Ela obteve êxito, em nossos dias, na Irlanda, com o estabelecimento de uma das mais importantes manufaturas de tecido da Europa. CAPÍTULO X Das leis relacionadas com a sobriedade dos povos Nas regiões quentes, a parte aquosa do sangue dissipa-se fàcilmente com a transpiração: é mister, portanto, substituí-la por um líquido semelhante. A água é de uma utilidade admirável; os licores fortes aí coagulariam os glóbulos do sangue que permanecem depois da dissipação da parte aquosa. Nas regiões frias, a parte aquosa do sangue exala-se pouco com a transpiração; ela permanece em grande abundância. Pode-se, pois, utilizar licores espirituosos sem que o sangue se coagule. Ele está repleto de humores; os licores fortes, que dão movimento ao sangue, podem aí ser convenientes. A lei de Maomé que proíbe beber vinho é, assim, uma lei do clima da Arábia; por isso, a água era, antes de Maomé, a bebida usual dos árabes. A lei que proibia os cartagineses de beber vinho, era também uma lei do clima; efetivamente, o clima desses dois países é quase o mesmo. Uma lei semelhante não seria boa nos países frios, onde o clima parece forçar certa embriaguez da nação, muito diferente daquela da pessoa. A embriaguez encontra-se estabelecida por toda a terra, na proporção da frieza e da umidade do clima. Caminhai do equador até nosso polo e vereis a embriaguez aumentar de acordo com os graus de latitude. Caminhai do mesmo equador ao polo oposto e encontrareis a embriaguez aumentando para o sul, tal como deste lado ela avançara para o norte. É natural que, nos lugares em que o vinho é contrário ao clima e consequentemente à saúde, seu excesso seja mais severamente punido do que nos países em que a embriaguez acarreta poucos malefícios à pessoa e à sociedade, não tornando os homens furiosos mas apenas estúpidos. Assim, as leis que punem um homem embriagado, pela falta que cometeu, aplicam-se unicamente à embriaguez da pessoa e não à embriaguez da nação. Um alemão bebe por costume, um espanhol por prazer. Nos países quentes, o relaxamento das fibras produz uma grande transpiração dos líquidos, mas as partes sólidas diluem-se menos. As fibras, que possuem apenas uma ação muito fraca e pouca flexibilidade, quase não se desgastam; pouco suco nutritivo basta para repará-las. Come-se, portanto, muito pouco nesses lugares. Foram as diferentes necessidades nos diferentes climas que formaram as diferentes maneiras de viver e são essas diferentes maneiras de viver que formaram os diversos tipos de leis. Pois, se numa nação os homens se comunicam muito, certas leis são necessárias; para um povo que não se comunica, outro tipo de lei é necessário. CAPÍTULO XI Das leis que têm relações com as moléstias do clima Heródoto diz-nos que as leis dos judeus sobre a lepra foram extraídas da prática dos egípcios. Com efeito, as mesmas moléstias requerem os mesmos remédios. Essas leis, assim como o mal, foram desconhecidas para os gregos, bem como para os primeiros romanos. O clima do Egito e o da Palestina tornava-as necessárias e a facilidade que essa moléstia tem de se fazer popular nos deve fazer sentir muito bem a sabedoria e a previdência dessas leis. Nós mesmos sentimos seus efeitos. As cruzadas nos trouxeram a lepra; os sábios regulamentos adotados impediram-na de alastrar-se para a massa do povo. Vemos, pela lei dos lombardos, que essa moléstia se difundira pela Itália antes das cruzadas e mereceu a atenção dos legisladores. Rotaris ordenou que um leproso, expulso de sua casa e abandonado num lugar determinado, não poderia dispor de seus bens porque, desde o momento que fosse tirado de sua casa, era classificado como morto. A fim de impedir todo contacto com os leprosos, cassavam-lhe os direitos civis. Acredito que essa doença foi trazida para a Itália pelas conquistas dos imperadores gregos, nos exércitos nos quais poderia haver milícias da Palestina ou do Egito. De qualquer modo, a progressão da doença esteve sustada até a época das cruzadas. Narra-se que os soldados de Pompeu, voltando da Síria, trouxeram uma moléstia quase igual à lepra. Nenhum dos regulamentos estabelecidos então chegaram até nossos dias, mas parece que eles existiram porque esse mal esteve paralisado até o tempo dos lombardos. Há dois séculos que uma moléstia, desconhecida de nossos pais, passou do Novo Mundo para este, e veio atingir a natureza humana justamente na fonte da vida e dos prazeres. Vimos a maioria das grandes famílias do sul da Europa perecer vitimada por um mal que se tornou muito comum para ser vergonhoso e não foi mais que funesto. Foi a sede do ouro que perpetuou esta moléstia; ia-se incessantemente à América e sempre se traziam novos germes. Motivos piedosos quiseram exigir que se deixasse esta punição para o crime, mas essa calamidade penetrou no seio do casamento e já havia corrompido a própria infância. Como cabe à sabedoria dos legisladores velar pela saúde dos cidadãos, foi muito sensato paralisar esta comunicação por leis feitas sobre o plano das leis mosaicas. A peste é um mal cujas devastações são ainda mais prontas e rápidas. Sua fonte principal está no Egito de onde se dissemina por todo o universo. Fizeram-se, na maioria dos Estados europeus, regulamentos muito bons a fim de impedir sua penetração e, atualmente, imaginou-se um meio formidável para sustá-la: dispõe-se uma linha de tropas que impede todo contacto em torno do país infectado. Os turcos, que a esse respeito não exercem qualquer vigilância, veem os cristãos, na mesma cidade, escaparem ao perigo e eles sozinhos perecerem. Compram as roupas dos pestilentos, vestem-nas e continuam sua rotina. A doutrina de um destino inflexível que tudo determina faz do magistrado um tranquilo espectador: ele pensa que Deus já fez tudo e que nada lhe resta fazer. CAPÍTULO XII Das leis contra os que se suicidam As histórias não nos contam que os romanos se fizessem matar sem motivo, mas os ingleses matam a si próprios sem que se possa imaginar qualquer motivo para essa ação; suicidam-se quando se encontram no próprio seio da felicidade. Este ato, entre os romanos, era resultado da educação e se relacionava à sua maneira de pensar e a seus costumes. Entre os ingleses, ele é resultado de uma doença e está relacionado com o estado físico da máquina, independentemente de qualquer outra causa. Ele parece ser um defeito da filtração do suco nervoso; a máquina, cujas forças motrizes encontram-se sempre sem ação, cansa-se de si mesma; a alma não sente nenhuma dor mas uma certa dificuldade em existir. A dor é um mal localizado que acarreta o desejo de ver cessar esta dor; o peso da vida é um mal que não está situado num local determinado e nos acarreta o desejo de acabar com esta vida. Está claro que as leis civis de alguns países tiveram motivos para estigmatizar o homicídio de si mesmo, mas, na Inglaterra, não se pode puni-lo, como não se punem os efeitos da demência. CAPÍTULO XIII Efeitos que resultam do clima da Inglaterra Numa nação em que uma moléstia do clima afeta de tal maneira a alma, a ponto de causar o desgosto de todas as coisas, até da vida, vê-se bem que o governo que melhor conviria a essa gente a quem tudo é insuportável seria aquele em que as pessoas não pudessem ligar-se a um só daqueles que causassem seus pesares e, onde as leis, governando mais do que os homens, seria necessário, para modificar o Estado, destruir as próprias leis. Pois, se a mesma nação também tivesse recebido do clima certo caráter de impaciência que não lhe permitisse suportar muito tempo as mesmas coisas, vê-se perfeitamente que o governo ao qual acabamos de nos referir seria também o mais conveniente. Este caráter de impaciência, em si mesmo, não é grande, mas pode tornar-se excessivamente grande quando a ele se acrescenta a coragem. Diferencia-se da ir responsabilidade que faz com que se empreenda algo sem motivo e que seja abandonado da mesma maneira; aproxima-se mais da teimosia porque se origina de um sentimento dos males, tão vivo que não se enfraquece inclusive pelo hábito de sofrê-los. Este caráter, numa nação livre, seria muito adequado para embaraçar os projetos da tirania que, em seus inícios, é sempre lenta e fraca, como é rápida e viva em seu fim; que, inicialmente, mostra apenas uma mão para socorrer, oprimindo depois com uma infinidade de braços. A servidão começa sempre pelo sono. Mas um povo que, em nenhuma situação encontra repouso, que se apalpa incessantemente e encontra todos os lugares dolorosos, não poderia adormecer. A política é uma lima surda que se consome e chega lentamente a seu fim. Ora, os homens aos quais acabamos de nos referir não poderiam suportar as lentidões, os pormenores, o sangue frio das negociações; nesta questão lograriam muito menos êxito do que qualquer outra nação e perderiam, por seus tratados, o que tivessem obtido por suas armas. CAPÍTULO XIV Outros efeitos do clima Nossos pais, os antigos germanos, viviam num clima em que as paixões eram muito calmas. Seus reis só encontravam nas coisas o que viam e nada mais imaginavam. E como julgavam os insultos feitos aos homens segundo a grandeza dos ferimentos, essas leis igualmente não introduziam complicações nas ofensas cometidas contra mulheres. A lei dos alemães é, a esse respeito, muito singular. Se alguém descobre a cabeça de uma mulher, pagará uma multa de seis soldos; a mesma quantia se descobrir a perna até o joelho; o dobro dessa quantia do joelho para cima. Parece que a lei media a extensão dos ultrajes cometidos contra a pessoa das mulheres como se mede uma figura de geometria; não punia os crimes da imaginação mas os do olhar. Porém, quando uma nação germânica transferiu-se para a Espanha, originou muitas outras leis. A lei dos visigodos proibia aos médicos sangrarem uma mulher ingênua a não ser na presença do pai ou da mãe, do irmão, do filho ou do tio. A imaginação do povo inflamou-se e a dos legisladores também. A lei de tudo suspeitou para um povo que podia suspeitar de tudo. Essas leis concederam, portanto, extrema atenção aos dois sexos. Mas parece que, nas punições que infligiram, pensaram mais em favorecer a vingança individual do que em exercer a vingança pública. Assim, na maioria dos casos, submetiam os dois culpados à servidão dos pais ou do marido ofendido. Uma mulher ingênua, que se entregasse a um homem casado, era colocada sob a autoridade da esposa, que dela dispunha? a seu bel-prazer. Tais leis obrigavam os escravos a manietar e a apresentar ao marido a esposa surpreendida em adultério; permitiam aos filhos dela acusá-la e torturar seus escravos para comprovarem sua culpabilidade. Destarte, foram essas leis mais aptas para refinar excessivamente certas questões de honra do que para estabelecer uma boa polícia. Não nos devemos admirar se o Conde Juliano acreditou que um ultraje dessa espécie exigia a perda de sua pátria e de seu rei. Não nos devemos surpreender se os mouros, com tal semelhança de costumes, encontraram tanta facilidade em se estabelecer na Espanha, em se manterem e aí retardar a queda de seu império. CAPÍTULO XV Da diferente confiança que as leis depositam no povo, segundo os climas. O povo japonês tem um caráter tão atroz que seus legisladores e magistrados não puderam ter nenhuma confiança nele: só lhe colocaram diante dos olhos, juízes, ameaças e castigos; submeteram-no, a cada passo, à inquisição da polícia. Essas leis que, em cada cinco chefes de família, escolhem um magistrado para os quatro outros; essas leis que, para um único crime, punem toda uma família ou todo um bairro; essas leis que, onde pode haver um culpado, não encontram um inocente, são feitas para que todos os homens desconfiem um do outro, para que cada um investigue a conduta de outrem e que seja seu inspetor, testemunha e juiz. O povo das índias, ao contrário, é afável, terno, sensível. Dessa maneira, seus legisladores têm grande confiança nele. Estabeleceram poucas penas e estas são pouco severas, não sendo mesmo rigorosamente executadas. Elas têm confiado os sobrinhos aos tios, os órfãos aos tutores, como em outras partes são confiados aos pais; regulamentaram a sucessão pelo mérito reconhecido do sucessor. Parece que pensaram que cada cidadão devia apoiar-se nas boas qualidades dos demais. Fàcilmente concedem liberdades a seus escravos; casam-nos, tratam-nos como se fossem seus próprios filhos: clima feliz, que cria a candura dos costumes e produz a doçura das leis! LIVRO DÉCIMO QUINTO - Como as leis da escravidão civil relacionam-se à natureza do clima CAPÍTULO I Da escravidão civil A escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem completamente dependente de outro, que é o senhor absoluto de sua vida e de seus bens. A escravidão, por sua natureza, não é boa: não é útil nem ao senhor nem ao escravo: a este porque nada pode fazer de forma virtuosa; àquele, porque contrai com seus escravos toda sorte de maus hábitos, porque se acostuma, insensivelmente, a abandonar todas as virtudes morais, porque se torna orgulhoso, irritável, duro, colérico, voluptuoso, cruel. Nos países despóticos, em que já se está sob a escravidão política, a escravidão civil é mais tolerável do que alhures. Cada um deve estar assaz contente por ter sua subsistência e sua vida. Assim, a condição de escravo quase não é mais penosa do que a condição de súdito. Mas no governo monárquico, onde é extremamente importante não humilhar ou aviltar a natureza humana, não deve existir a escravidão. Na democracia, em que todos são iguais, e na aristocracia, em que as leis devem envidar todos os esforços para que todos sejam tão iguais quanto a natureza do governo o permita, os escravos são contra o espírito da constituição; só servem para dar aos cidadãos um poder e um luxo que não devem ter. CAPÍTULO II Origem do direito de escravatura entre os jurisconsultos romanos Nunca se acreditaria que a compaixão tivesse estabelecido a escravidão e que, para isso, procedesse de três maneiras. O direito das gentes quis que os prisioneiros fossem escravos, para que não fossem mortos. O direito civil dos romanos permitia aos devedores, que seus credores pudessem maltratar, de venderem-se a si próprios; e o direito natural quis que as crianças que um pai escravo não mais podia nutrir, fossem escravos como seu pai. Esses motivos dos jurisconsultos não são razoáveis: 1º É falso que, na guerra, seja permitido matar, a não ser em caso de necessidade e, desde que um homem escravizou outro, não se pode dizer que ele tenha tido necessidade de matá-lo, pois não o matou. Todo o direito que a guerra pode dar sobre os prisioneiros é controlar de tal modo suas pessoas que não mais possam causar dano. Os homicídios cometidos a sangue frio pelos soldados e após o calor da ação são rejeitados por todas as nações do mundo. 2º Não é verdade que um homem livre possa vender-se. A venda supõe um preço; quando o escravo vende a si próprio, todos seus bens passam para a propriedade do senhor; o senhor nada paga e o escravo nada recebe. Dir-se-á que existe um pecúlio, mas o pecúlio é acessório à pessoa. Se não é permitido suicidar-se porque isso seria roubar-se à pátria, também não é permitido vender-se. A liberdade de cada cidadão é uma parcela da liberdade pública. Esta qualidade, num Estado popular, constitui mesmo uma parcela da soberania. Vender sua qualidade de cidadão é um ato tão extravagante que não podemos aceitá-lo num homem. Se a liberdade tem um preço para quem a compra, não possui preço para quem a vende. A lei civil que permitiu aos homens a partilha dos bens, não pôde incluir no número dos bens uma parte dos homens que deviam fazer essa partilha. A lei civil que restitui de acordo com os contratos que encerram alguma lesão, não pode deixar de restituir contra um acordo que encerra a maior de todas as lesões. A terceira maneira é o nascimento. Esta cai com as outras duas. Pois, se um homem não pôde vender a si próprio, ainda menos pode vender seu filho ainda não nascido. Se um prisioneiro de guerra não pode ser reduzido à escravidão, com muito menos razão os seus filhos. O que faz com que seja lícito matar um criminoso é o fato de a lei que o pune ser feita em seu favor. Um assassino, por exemplo, desfrutou da lei que o condena; ela conservou-lhe a vida a todo instante e ele não pode, portanto, protestar contra ela. Com relação ao escravo, a situação é diferente: a lei do escravo nunca pôde ser-lhe útil; em todos os casos ela é contra ele, sem nunca ser-lhe favorável, o que é contrário ao princípio fundamental de todas as sociedades. Dir-se-á que ela pôde ser-lhe útil porque o senhor deu-lhe alimentação. Cumpriria, neste caso, limitar a escravidão às pessoas que são incapazes de ganhar a vida. Porém não se deseja esse tipo de escravos. Quanto às crianças, a natureza que deu leite às mães assegurou sua alimentação e o resto de sua infância está tão perto da idade em que elas se tornam úteis, que não se poderia dizer que quem as alimentasse, a fim de assenhorear-se delas, desse algo. A escravidão é, também, tão oposta ao direito civil como ao direito natural. Que lei civil poderia impedir um escravo de fugir, ele, que não participa da sociedade e que, consequentemente, não é acolhido por nenhuma das leis civis? O escravo só pode ser retido por uma lei de família, isto é, pela lei do senhor. CAPÍTULO III Outra origem do direito de escravidão Gostaria também de dizer que o direito de escravidão surge do desprezo que uma nação tem por outra, desprezo baseado na diferença dos costumes. Lopes de Comara diz que os espanhóis encontraram perto de Santa Marta, cestos em que os habitantes depositavam gêneros alimentícios: caranguejos, caracóis, cigarras, gafanhotos. Os vencedores fizeram disso um crime dos vencidos. O autor confessa que foi sobre isso que se fundamentou o direito que tornava os americanos escravos dos espanhóis; além disso, fumavam tabaco e não faziam a barba à espanhola. Os conhecimentos tornam os homens comedidos; a razão conduz à humanidade; somente os preconceitos acarretam a renúncia disso. CAPÍTULO IV Outra origem do direito de escravidão Gostaria também de dizer que a religião dá aos que a professam um direito de reduzir à servidão os que não a professam, a fim de trabalhar mais fàcilmente por sua propagação. Foi esta maneira de pensar que encorajou os destruidores da América em seus crimes. Foi sobre esta ideia que eles fundamentaram o direito de escravizar tantos povos, pois esses facínoras, que desejam a todo custo ser facínoras e cristãos, eram muito devotos. Luís XIII opôs-se tenazmente à lei que tornava escravos os negros de suas colônias, mas quando lhe fizeram ver que esta era a via mais segura para convertê-los, aceitou-a. CAPÍTULO V Da escravidão dos negros Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que diria: Tendo os povos da Europa exterminado os da América, tiveram que escravizar os da África, a fim de utilizá-los no desbravamento de tantas terras. O açúcar seria muito caro se não se cultivasse a planta que o produz por intermédio de escravos. Aqueles a que nos referimos são negros da cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado que é quase impossível lamentá-los. Não podemos aceitar a ideia de que Deus, que é um ser muito sábio, tenha introduzido uma alma, sobretudo uma alma boa, num corpo completamente negro. É tão natural considerar que é a cor que constitui a essência da humanidade, que os povos da Ásia, que fazem eunucos, privam sempre os negros da relação que eles têm conosco de uma maneira mais acentuada. Pode-se julgar da cor da pele pela dos cabelos que, entre os egípcios, os melhores filósofos do mundo, era de tão grande importância que mandavam matar todos os homens ruivos que lhes caíam nas mãos. Uma prova que os negros não têm senso comum é que dão mais importância a um colar de vidro do que ao ouro, fato que, entre as nações policiadas, é de tão grande consequência. É impossível supormos que tais gentes sejam homens, pois, se os considerássemos homens, começaríamos a acreditar que nós próprios não somos cristãos. Os espíritos mesquinhos exageram muito a injustiça que se faz aos africanos, pois, se ela fosse tal como eles dizem, não teria ocorrido aos príncipes da Europa, que estabelecem entre eles tantas convenções inúteis, fazer uma delas em favor da misericórdia e da piedade? CAPÍTULO VI Verdadeira origem do direito de escravidão É tempo de procurar a verdadeira origem do direito de escravidão. Essa deve estar baseada na natureza das coisas. Vejamos se existem casos em que isso não ocorre. Em todo governo despótico há grande facilidade em vender a si próprio: a escravidão política, nesse governo, aniquila de algum modo a liberdade civil. Perry diz que os moscovitas se vendem muito fàcilmente. Conheço exatamente a razão: é que sua liberdade não vale nada. Em Achim todos procuram vender-se. Alguns dos principais senhores não têm menos de mil escravos, que são importantes comerciantes; que têm também muitos escravos sob suas ordens e estes muitos outros; são herdados e levados ao tráfico. Nesses Estados, os homens livres, muito fracos contra o governo, procuram tornar-se escravos dos que importunam o governo. É esta a origem, e de acordo com a razão, desse direito de escravidão muito suave que encontramos em alguns países; ele deve ser suave porque está baseado na livre escolha de um senhor que um homem faz em seu próprio benefício, fato que estabelece uma convenção recíproca entre as duas partes. CAPÍTULO VII Outra origem do direito de escravidão Eis outra origem do direito de escravidão, e mesmo desta escravidão cruel que vemos entre os homens. Há países em que o calor enerva o corpo e enfraquece tanto a coragem que os homens só efetuam um dever penoso por temor do castigo: a escravatura, portanto, choca menos a razão e, sendo senhor tão cobarde em relação a seu príncipe como o escravo é a seu respeito, a escravidão civil é, aí, acompanhada também da escravidão política. Aristóteles pretende provar que há escravos por natureza e o que ele diz pouco prova. Creio que, se existem tais escravos, são aqueles a que acabo de me referir. Mas como todos os homens nascem iguais, cumpre dizer que a escravidão é contrária à natureza, apesar de que, em certos países, ela esteja baseada num motivo natural e é necessário distinguir precisamente esses países daqueles em que os próprios motivos naturais os rejeitam, como nos países da Europa, onde ela foi tão felizmente abolida. Plutarco narra-nos, na vida de Numa, que na época de Saturno não havia nem senhor nem escravo. Em nossos climas o cristianismo fez renascer essa época. CAPÍTULO VIII Inutilidade da escravidão entre nós Deve-se, portanto, limitar a servidão natural a alguns países determinados da terra, Em todos os outros, parece-me que, por mais penosos que sejam os trabalhos que a sociedade exige, tudo pode ser feito com homens livres. O que me faz pensar assim é que, antes que o cristianismo tivesse abolido na Europa a servidão civil, consideravam-se os trabalhos nas minas como tão penosos que se acreditava que eles só poderiam ser efetuados por escravos ou por criminosos. Mas sabe-se atualmente que os homens nelas empregados vivem felizes. Encorajou-se, com pequenos privilégios, essa profissão; ao aumento do trabalho acrescentou-se o do lucro e conseguiu-se fazer-lhes apreciar sua condição mais do que qualquer outra que poderiam ter adquirido. Não existe trabalho tão penoso que não se possa adequar à força de quem o realiza, conquanto seja a razão e não a avareza que o regulamente. Pode-se, pela comodidade das máquinas, que o engenho inventa ou aplica, suprir o trabalho forçado que alhures os escravos eram obrigados a fazer. As minas dos turcos, no banato de Temesvar, eram mais ricas do que as da Hungria mas nunca produziram tanto, porque os turcos nunca imaginavam outra coisa que o braço de seus escravos. Não sei se é o espírito ou o coração que dita este artigo. Não há lugar na terra em que não se possa induzir homens livres ao trabalho. Porque as leis eram mal feitas, houve homens preguiçosos; porque os homens eram preguiçosos, foram escravizados. CAPÍTULO IX Das nações em que a liberdade civil está geralmente estabelecida Ouvimos dizer diàriamente que seria bom que existissem escravos entre nós. Porém para apreciar corretamente essa questão, cumpre não examinar se eles seriam úteis à pequena parte rica e voluptuosa de cada nação; é indubitável que lhe seriam úteis. Porém, adotando-se outro ponto de vista, não acredito que nenhum dos que a compõem gostariam de tirar a sorte para saber quem deveria formar a parte da nação que seria livre e a que seria escrava. Os que mais defendem a escravidão ter-lhe-iam o maior horror e os homens mais miseráveis ter-lhe-iam também horror. O apelo à escravidão é, portanto, o apelo do luxo e da voluptuosidade e não do amor pela felicidade pública. Quem duvidaria que cada homem, em particular, não ficaria muito contente de ser senhor dos bens, da honra e da vida dos demais e que todas suas paixões não despertassem logo com essa ideia? Nessas questões, se desejais saber se os desejos de um são legítimo, examinai os desejos de todos. CAPÍTULO X Diversos tipos de escravidão Há duas formas de servidão: a real e a pessoal. A real é a que prende o escravo à terra. Eram assim os escravos entre os germanos, segundo Tácito. Não tinham nenhuma ocupação na casa; entregavam ao senhor certa quantidade de trigo, de gado ou de estofo; o objeto de sua escravidão não ia mais além. Esse tipo de servidão existe ainda na Hungria, na Boêmia e em muitas regiões da Baixa Alemanha. A servidão pessoal relaciona-se com os encargos da casa e diz mais respeito à pessoa do senhor. O abuso excessivo da escravidão ocorre quando ela é, conjuntamente, pessoal e real. Tal era a servidão dos hilotas, entre os lacedemônios; eram eles obrigados a todos os trabalhos fora da casa e a toda sorte de insultos dentro da casa: esse hilotismo é contrário à natureza das coisas. Os povos simples possuem apenas um escravo real, porque suas mulheres e filhos encarregam-se dos trabalhos domésticos. Os povos voluptuosos têm um escravo pessoal, porque o luxo exige o serviço de escravos na casa. Ora, o hilotismo reúne, nas pessoas, a escravidão existente entre os povos voluptuosos e a existente entre os povos simples. CAPÍTULO XI O que as leis devem fazer com relação à escravidão Porém, qualquer que seja a natureza da escravidão, cumpre que as leis civis procurem dela extirpar, de um lado, os abusos e de outro, os perigos. CAPÍTULO XII Abuso da escravidão Nos Estados maometanos, não se é apenas senhor da vida e dos bens das mulheres escravas, como também do que chamamos sua virtude e sua honra. Constitui uma das desgraças desses países que a maior parte da nação não faça outra coisa senão servir à voluptuosidade da outra. Esta servidão é recompensada pela indolência da qual se faz desfrutar tais escravos, fato que constitui ainda nova desgraça para o Estado. É essa indolência que torna os serralhos do Oriente lugares deliciosos para aqueles mesmos contra os quais eles são feitos. Pessoas que não temem senão o trabalho podem encontrar sua felicidade nesses lugares tranquilos. Mas percebe-se que, com isso, afeta-se o próprio espírito do estabelecimento da escravidão. Quer a razão que o poder do senhor não se estenda além das coisas que são de sua função; cumpre que a escravidão seja para a utilidade e não para a voluptuosidade. As leis da pudicícia são do direito natural e devem ser observadas por todas as nações do mundo. Ora, se a lei que preserva a pudicícia dos escravos é boa nos Estados em que o ilimitado poder diverte-se cruelmente com tudo, quanto o será nas monarquias? Quanto o será nos Estados republicanos? Há um dispositivo da lei dos lombardos que parece boa para todos os governos. "Se um senhor ultraja a mulher de seu escravo, ambos tornar-se-ão livres." Admirável determinação para prevenir e sustar, sem muito rigor, a incontinência dos senhores. Não considero que os romanos tenham tido, a esse respeito, uma boa polícia. Largaram as rédeas à incontinência dos senhores; privaram mesmo suas escravas do direito ao casamento. Elas constituíam a parte mais vil da nação; porém, por mais que o fossem, seria conveniente que tivessem costumes, porque, além do mais, ao se lhes vedarem os casamentos, corrompiam-se os dos cidadãos. CAPÍTULO XIII Perigo do grande número de escravos O grande número de escravos tem efeitos diferentes nos diversos governos. No governo despótico não é um peso; a escravidão política, estabelecida no corpo do Estado, faz com que pouco se perceba a escravidão civil. Os que chamamos homens livres pouco se diferenciam dos que não têm esse título; e os que não têm, tendo em mãos quase todos os negócios, fazem com que a condição de homem livre e a de escravo muito se aproximem. É, portanto, quase indiferente que poucas ou muitas pessoas vivam na escravidão. Entretanto, nos Estados moderados, é muito importante que não existam muitos escravos. A liberdade política torna preciosa a liberdade civil e, quem for privado dessa última, é igualmente privado da outra: vê uma sociedade feliz da qual nem mesmo é uma parcela; encontra sua segurança estabelecida por outros e não por ele próprio; sente que seu senhor possui uma alma que pode crescer, e que a sua é coagida a se rebaixar incessantemente. Nada aproxima mais da condição dos animais do que ver sempre homens livres e não o ser. Essas pessoas são inimigos naturais da sociedade e sua quantidade seria perigosa. Não nos devemos admirar, portanto, que nos governos moderados, o Estado tenha sido perturbado pelas revoltas dos escravos e que isso tenha acontecido tão raramente nos Estados despóticos. CAPÍTULO XIV Dos escravos armados Armar os escravos é menos perigoso, na monarquia, do que nas repúblicas. Nela, um povo guerreiro, um corpo da nobreza, conterão bastante esses escravos armados. Na república, os homens que são simplesmente cidadãos quase não poderão conter os indivíduos que, de armas nas mãos, considerar-se-ão iguais aos cidadãos. Os gôdos, que conquistaram a Espanha, espalharam-se na região e logo viram-se muito enfraquecidos. Fizeram três regulamentos notáveis: aboliram o antigo costume que lhes proibia de aliar-se pelo casamento aos romanos; estabeleceram que os libertos do fisco iriam à guerra, sob pena de serem reduzidos à servidão; ordenaram que cada gôdo participaria da guerra e armaria a décima parte de seus escravos. Esse número era pouco considerável em comparação com o que restava. Demais, esses escravos, levados à guerra por seus senhores, não constituíam um corpo isolado; estavam no exército e permaneciam, por assim dizer, na família. CAPÍTULO XV Continuação do mesmo assunto Quando toda a nação é guerreira, os escravos armados são menos temíveis. Pela lei dos alemães, um escravo que roubasse uma coisa que tivesse sido guardada, era submetido à pena que se infligiria a um homem livre; mas se a roubava pela violência, estava obrigado apenas à restituição da coisa roubada. Entre os alemães, as coisas que tinham por princípio a coragem e a força não eram odiosas. Serviam-se de seus escravos na guerra. Na maioria das repúblicas procurou-se sempre destruir a coragem dos escravos: o povo alemão, confiante em si próprio, pensava aumentar a audácia dos seus; sempre armado, nada temia deles; eram instrumentos de suas pilhagens ou de sua glória. CAPÍTULO XVI Precauções a tomar no governo moderado A benevolência para com os escravos, nos Estados moderados, poderá prevenir os perigos que se poderia temer de seu número excessivo. Os homens acostumam-se a tudo, e mesmo à servidão, contanto que o senhor não seja mais duro que a servidão. Os atenienses tratavam seus escravos com grande brandura e não consta que eles tenham perturbado o Estado de Atenas, como fizeram com o da Lacedemônia. Sabemos que os primeiros romanos não tiveram inquietações com relação a seus escravos. Foi somente quando abandonaram com relação a eles todos os sentimentos de humanidade que surgiram as guerras civis, que já foram comparadas às guerras púnicas. As nações simples, que se ocupam elas próprias do trabalho, são geralmente mais brandas para com seus escravos do que as nações que a ele renunciaram. Os primeiros romanos viviam, trabalhavam e comiam com seus escravos. Tratavam-nas com doçura e equidade; o castigo mais severo que lhes impunham era mandá-los passar diante de seus vizinhos com um pedaço de galho bifurcado nas costas. Os bons costumes bastavam para manter a fidelidade dos escravos; não se precisava de leis. Porém, quando os romanos agigantaram-se, quando os escravos não mais foram seus companheiros de trabalho mas instrumentos de seu luxo e de seu orgulho, como não havia mais costumes, necessitou-se de leis. Necessitou-se mesmo de leis terríveis para manter a segurança desses senhores cruéis que viviam entre seus escravos como entre seus inimigos. Fizeram o senatus-consulto Silaniano e outras leis, as quais estabeleceram que, quando um senhor fosse assassinado, todos os escravos que se encontrassem sob o mesmo teto, ou num lugar tão próximo da casa que se pudesse ouvir a voz de um homem, seriam, indistintamente, condenados à morte. Os que, neste caso, refugiassem um escravo para salvá-lo seriam punidos como assassinos. Mesmo aquele a quem seu senhor tivesse ordenado que o matasse, e que lhe tivesse obedecido, seria considerado culpado; o escravo que não tivesse impedido o suicídio do senhor também seria punido. Se o senhor fosse assassinado durante uma viagem, mandava-se matar os que estivessem com ele e os que tivessem fugido. Todas essas leis eram pronunciadas mesmo contra os que provassem sua inocência; todas essas leis objetivavam criar nos escravos um respeito ilimitado por seu senhor. Elas não dependiam do governo civil mas de um vicio ou de uma imperfeição desse. Não derivavam da equidade das leis civis, pois eram contrárias aos princípios das leis civis. Eram propriamente baseadas no princípio da guerra, com a diferença de que era no seio do Estado que estavam os inimigos. O senatus-consulto Silaniano derivava dos direitos das gentes, que quer que uma sociedade, mesmo imperfeita, sobreviva. É uma desgraça para o governo quando a magistratura se vê constrangida dês se modo a estabelecer leis cruéis. É porque se tornou a obediência difícil que se é obrigado a agravar a pena de desobediência, ou se suspeitar da fidelidade. Um legislador prudente previne-se da infelicidade de se tornar um legislador terrível. Foi porque os escravos não puderam ter, entre os romanos, confiança na lei, que a lei não pôde ter confiança neles. CAPÍTULO XVII Regulamentos a serem feitos entre o senhor e os escravos O magistrado deve velar para que o escravo obtenha sua alimentação e sua vestimenta; essa questão deve ser regulamentada por lei. As leis devem cuidar para que eles sejam tratados em suas doenças e na velhice. Cláudio ordenou que os escravos que tivessem sido abandonados, quando doentes, por seus senhores, seriam livres se escapassem. Esta lei assegurava sua liberdade, mas teria sido necessário assegurar sua vida. Quando a lei permite ao senhor matar seu escravo, trata-se de um direito que ele deve exercer como juiz e não como senhor: é mister que a lei ordene formalidades que suprimam a suspeita de uma ação violenta. Quando, em Roma, não mais foi permitido aos pais mandar matar seus filhos, os magistrados infligiram a pena que o pai pretendia prescrever. Uma prática semelhante entre o senhor e os escravos seria razoável nos países em que os senhores têm o direito de vida e de morte. A lei de Moisés era bem severa. "Se alguém espancar seu escravo e este morrer em suas mãos, ele será punido; mas, se o escravo sobreviver um dia ou dois, não o será, pois trata-se de seu dinheiro". Que povo este em que era preciso que a lei civil se separasse da lei natural! Por uma lei dos gregos, os escravos que fossem tratados muito brutalmente por seus senhores podiam exigir que fossem vendidos a outro. Nos últimos tempos, houve uma lei semelhante em Roma. Um senhor irritado contra seu escravo e um escravo irritado contra seu senhor deveriam ser separados. Quando um cidadão maltrata um escravo de outrem, cumpre que este último possa apresentar queixa em juízo. As leis de Platão e a maioria dos povos proíbem aos escravos a defesa natural; é mister, portanto, possibilitar-lhes a defesa civil. Na Lacedemônia, os escravos não podiam obter qualquer justiça contra os insultos nem contra as injúrias. Sua desgraça era tanta que eles eram não somente escravos de um cidadão como também do público; pertenciam a todos e a um só. Em Roma, no dano causado ao escravo, apenas se considerava o interesse do senhor. Confundia-se, sob efeito da lei Aquiliana, o ferimento feito a um animal àquele feito a um escravo; considerava-se apenas a diminuição de seu preço. Em Atenas, punia-se severamente, algumas vezes inclusive com a morte, quem maltratasse o escravo de outro. A lei de Atenas, com razão, não queria acrescentar à perda da liberdade a perda da segurança. CAPÍTULO XVIII Das alforrias É fácil perceber que quando, no governo republicano, se tem muitos escravos, cumpre libertar muito. O mal é que, se há muitos escravos, eles não podem ser contidos; se há muitos alforriados, eles não podem viver e tornam-se uma carga para a república, sem contar que esta república pode ser ameaçada, de um lado, por um número muito grande de libertos e, de outro, por um número muito grande de escravos. É necessário, portanto, que as leis considerem esses dois inconvenientes. As diversas leis e os senatus-consultos que se fizeram em Roma em favor e contra os escravos, ora para prejudicar, ora para favorecer as alforrias, mostram quantos obstáculos encontraram-se a esse respeito. Houve mesmo períodos em que não se ousou fazer leis. Quando, na época de Nero, demandou-se ao senado permissão para que os proprietários recolocassem na servidão os alforriados ingratos, o imperador determinou que seria necessário julgar os casos particulares e não estatuir em geral. Quase não saberia dizer quais são os regulamentos que uma boa república deve estabelecer a esse respeito; isso depende muito das circunstâncias. Eis algumas reflexões. Não se deve conceder, subitamente e por uma lei geral, um número considerável de alforrias. Sabemos que, entre os volsianos, os libertos, senhores dos sufrágios, fizeram uma abominável lei que lhes outorgava o direito de serem os primeiros a dormir com as jovens que se casavam com ingênuos. Há diversas maneiras de introduzir insensivelmente novos cidadãos nas repúblicas. As leis podem favorecer os pecúlios e possibilitar aos escravos comprar sua liberdade; podem estabelecer um prazo para a servidão, como as de Moisés, que limitara em seis anos a dos escravos hebreus. É fácil libertar todos os anos certo número de escravos entre os que, pela idade, pela saúde, pela engenhosidade, tenham meios de vida. Pode-se mesmo cortar o mal pela raiz: como o grande número de escravos está relacionado aos diversos empregos que lhes são dados, transferir aos ingênuos uma parte desses empregos significa diminuir o número de escravos. Quando existem muitos libertos, cumpre que as leis civis determinem o que eles devem a seus proprietários ou que o contrato de alforria estabeleça em lugar delas esses deveres. Percebe-se que a condição deles deve ser mais favorecida no Estado civil do que no Estado político, porque, mesmo no governo popular, o poder não deve cair nas mãos da plebe. Em Roma, onde existiam tantos alforriados, as leis políticas, a esse respeito, foram admiráveis. Deu-se-lhes pouco e não se lhes excluiu quase nada. Tiveram efetivamente alguma participação na legislação, mas quase não influíam nas resoluções a serem tomadas. Podiam participar dos cargos e do próprio sacerdócio, mas esse privilégio era, de certo modo, anulado pelas desvantagens que as eleições lhes proporcionavam. Tinham direito de entrar nas milícias, mas, para ser soldado, era preciso certo senso. Nada vedava aos alforriados unir-se pelo casamento às famílias ingênuas, mas não lhes era permitido unir-se às dos senadores. Enfim, seus filhos eram ingênuos, apesar de eles próprios não o serem. CAPÍTULO XIX Dos forros e dos eunucos Assim, no governo de muitos, frequentem ente é útil que a condição dos libertos esteja pouco abaixo da dos ingênuos e que as leis trabalhem para suprimir-lhes a mágoa por sua condição. Mas, no governo de um só, quando reina o luxo e o poder arbitrário, nada se pode fazer a esse respeito. Os libertos se encontram quase sempre acima dos homens livres; dominam na corte do príncipe e nos palácios dos poderosos e, como estudaram as fraquezas de seu senhor mas não suas virtudes, fazem-no reinar, não por suas virtudes, mas por suas fraquezas. Assim eram, em Roma, os alforriados da época dos imperadores. Quando os principais escravos são eunucos, qualquer que seja o privilégio que se lhes conceda, quase não se pode considerá-los como libertos, porque, como não podem constituir família, estão, por sua própria natureza, ligados a uma família e é somente por uma espécie de ficção que se pode considerá-los cidadãos. Entretanto, há países em que se lhes outorgam todas as magistraturas: "No Tonquim, escreve Dampier, todos os mandarins civis e militares eram eunucos." Não têm família e, apesar de serem naturalmente avaros, o senhor ou o príncipe aproveitam, no final das contas, de sua avareza. O mesmo Dampier conta-nos que, neste país, os eunucos não podem passar sem mulher e que se casam. A lei que lhes permite o casamento só pode estar baseada, de um lado, na consideração que se tem por gente dessa espécie e, de outro, no desprezo que se vota às mulheres. Assim, confiam-se a essa gente as magistraturas, porque eles não têm família e, de outro lado, permite-se-lhes o casamento porque eles têm a magistratura. É assim que os sentidos que sobram querem obstinadamente suprir os que faltam e que os empreendimentos do desespero são uma espécie de prazer. Destarte, em Milton, este Espírito ao qual só restam desejos, compenetrado de sua degradação, quer fazer uso de sua impotência. Vemos, na história da China, grande cópia de leis destinadas a vedar aos eunucos os empregos civis e militares; mas eles sempre retornam. Parece que os eunucos no Oriente são um mal necessário. LIVRO DÉCIMO SEXTO - Como as leis da escravidão doméstica relacionam-se com a natureza do clima CAPÍTULO I Da servidão doméstica Os escravos são antes estabelecidos para a família do que na família. Assim distinguirei sua servidão da que estão submetidas às mulheres em alguns países à qual chamarei propriamente de servidão doméstica. CAPÍTULO II De como, nos países do sul, há nos dois sexos uma desigualdade natural. Nos climas quentes, as mulheres são núbeis aos oito, nove ou dez anos. Desta maneira, a infância e o casamento estão quase sempre juntos. Aos vinte anos, são velhas; a razão, portanto, nunca se encontra nelas com a beleza. Quando a beleza reclama a supremacia, a razão a recusa; quando a razão poderia obtê-la, a beleza não mais existe. As mulheres devem viver na dependência, porque a razão não lhes pode oferecer na velhice um domínio que a beleza não lhes dera na própria juventude. É, portanto, muito natural que um homem, quando a religião a isso não se opõe, abandone sua mulher para tomar outra, e que a poligamia apareça. Nos países de clima temperado, em que os encantos femininos conservam-se melhor, em que elas se tornam núbeis mais tardiamente e que têm filhos numa idade mais avançada, a velhice do marido, de alguma maneira, acompanha a dela e, como as mulheres, na época em que se casam, têm mais razão e conhecimentos, se mais não for porque viveram mais, uma espécie de igualdade introduz-se naturalmente entre os sexos e, por consequência, existe a lei que estabelece uma só esposa. Nas regiões frias, o uso quase necessário das bebidas fortes introduz a intemperança entre os homens. As mulheres, que a esse respeito têm uma moderação natural, porque devem sempre se defender, possuem, portanto, sobre os homens, a vantagem da razão. A Natureza, que distinguiu os homens pela força e pela razão, não pôs outro limite a seu poder senão o desta força e desta razão; deu ela às mulheres os atrativos e quis que seu desenvolvimento pusesse fim a seus encantos, mas, nos países quentes, eles só se encontram em seus inícios e nunca no curso de sua vida. Assim é a lei que não permite que uma mulher se adapte mais ao físico do clima da Europa do que ao físico do clima da Ásia. Esta é uma das razões que fez com que o maometismo encontrasse tanta facilidade em se estabelecer na Ásia, e tanta dificuldade em difundir-se na Europa, que fez com que o cristianismo se mantivesse na Europa e fosse destruído na Ásia, e que, finalmente, leva os maometanos a realizar tanto progresso na China e os cristãos tão pouco. Os desígnios humanos estão sempre subordinados a esta causa suprema, que faz tudo o que quer e que se serve de tudo que quiser. Algumas razões particulares a Valentiniano fizeram-lhe permitir a poligamia no império. Esta lei, violenta para nossos climas, foi anulada por Teodósio, Arcádio e Honório. CAPÍTULO III De como a pluralidade das mulheres depende muito de sua manutenção Apesar de nos países em que a poligamia já se estabeleceu, o grande número de mulheres depender estreitamente das riquezas do marido, não se pode dizer, entretanto, que sejam as riquezas que acarretam o estabelecimento da poligamia num Estado. A pobreza pode produzir o mesmo efeito, como direi ao me referir aos selvagens. A poligamia é menos um luxo do que uma oportunidade para um grande luxo entre as nações poderosas, Nos climas quentes, têm-se menos necessidades e custa menos manter uma mulher e filhos. Pode-se, portanto, ter maior número de mulheres. CAPÍTULO IV Da poligamia; suas diversas circunstâncias. Segundo os cálculos feitos em diversos lugares da Europa, nascem mais homens do que mulheres; ao contrário, as relações da Ásia e da África dizem-nos que lá nascem mais mulheres do que homens. A lei de uma só mulher, na Europa, e a que permite várias delas, na Ásia e na África, têm, portanto, certa relação com o clima. Nos climas frios da Ásia, nascem, como na Europa, mais homens do que mulheres. É esta, dizem os lamas, a razão da lei que, entre eles, permite a uma mulher ter vários maridos. Mas não creio que existam muitos países em que a desproporção seja tão grande a ponto de exigir a introdução da lei de várias mulheres, ou da lei de vários maridos. Isto somente significa que a pluralidade das mulheres, e inclusive a pluralidade dos homens, em certos países, afasta-se menos da Natureza do que em outros. Confesso que, sendo verdadeiro o que esses relatos nos contam, isto é, que em Bantam há dez mulheres para um homem, teríamos aqui um caso bem singular de poligamia. Nisso tudo, não justifico essas práticas, mas compreendo-lhes os motivos. CAPÍTULO V Motivo de uma lei do Malabar Na costa do Malabar, na casta das nairas os homens só podem ter uma mulher, e essa pode, pelo contrário, possuir vários maridos. Creio que se pode descobrir o motivo desse costume. As nairas constituem a casta dos nobres, que são os soldados de todos esses povos. Na Europa, impede-se o casamento dos soldados. No Malabar, onde o clima exige ainda mais, contentou-se em tornar-lhes o casamento tão pouco embaraçoso quanto possível: deu-se uma mulher a vários homens, coisa que diminui outro tanto o apego à família e aos cuidados do lar, e deixa a essas pessoas o espírito militar. CAPÍTULO VI Da poligamia em si mesma Considerando-se a poligamia em geral, independentemente das circunstâncias que podem fazê-la um pouco mais tolerável, ela não é útil ao gênero humano, nem a ambos os sexos, seja o que abusa, seja o de quem se abusa. Não é igualmente útil para os filhos e um dos seus grandes inconvenientes é que o pai e a mãe não podem ter a mesma afeição pelos filhos; um pai não pode amar vinte filhos da mesma maneira como uma mãe ama dois. Pior ainda quando uma mulher tem vários maridos porque, então, o amor paternal só se baseia na opinião na qual um pai pode crer, se quiser, ou na qual outros podem crer, que certos filhos lhe pertencem. Diz-se que o Rei dos Marrocos possui, em seu serralho, mulheres brancas, negras e amarelas. Infeliz! Mal tem necessidade de uma só cor! A posse de muitas mulheres nem sempre evita os desejos pela de outrem. É como a luxúria e a avareza: sua sede aumenta pela aquisição de tesouros. Na época de lustiniano, vários filósofos, constrangidos pelo cristianismo, refugiaram-se na Pérsia junto de Cósroes. O que mais os espantou, conta Agatias, foi que a poligamia era permitida a pessoas que nem mesmo se abstinham do adultério. A pluralidade das mulheres, quem o diria!, acarreta este amor que a Natureza desaprova. É que uma devassidão sempre engendra outra. Na revolução que atingiu Constantinopla quando o sultão Achmet foi deposto, os relatos narravam que, tendo o povo pilhado a casa do chiaia, lá não encontrou uma só mulher. Diz-se que, em Argel, na maioria dos serralhos não há mulheres. CAPÍTULO VII Da igualdade do tratamento no caso da pluralidade de mulheres Da lei da pluralidade das mulheres decorre a da igualdade do tratamento. Maomé, que permite quatro, quer que tudo seja igual entre elas: alimentação, trajes, deveres conjugais. Esta lei existe igualmente entre as Maldivas, onde se pode desposar três mulheres. A lei de Moisés determina mesmo que, se alguém casa o filho com uma escrava, desposando posteriormente uma mulher livre, nada seja suprimido das vestimentas, da alimentação e dos deveres da escrava. Podia-se dar mais a nova esposa, mas cumpria que a primeira não tivesse menos. CAPÍTULO VIII Da separação entre as mulheres e os homens Uma das consequências da poligamia, nas nações voluptuosas e ricas, é a existência de um número excessivo de mulheres. Seu isolamento dos homens e sua reclusão, originam-se naturalmente desse número excessivo. A ordem doméstica assim o exige; um devedor insolvente procura pôr-se ao abrigo das perseguições dos credores. Há climas em que o físico tem tal força que a moral quase nada pode. Deixai um homem com uma mulher; as tentações serão quedas, ataque seguro, resistência inútil. Nesses países, em lugar de preceitos, são necessários ferrolhos. Um livro clássico da China considera um prodígio de virtude um homem encontrar-se sozinho com uma mulher num cômodo afastado sem lhe causar violência. CAPÍTULO IX Relação do governo doméstico com o político Numa república, a condição dos cidadãos é limitada, igual, branda, moderada; tudo sofre as consequências da liberdade pública. O domínio sobre a mulheres não poderia ser tão bem exercido e, quando o clima exigiu esse domínio, o governo de um só tem sido o mais conveniente. Eis uma das razões que fez com que o governo popular sempre tivesse encontrado dificuldade em estabelecer-se no Oriente. Ao contrário, a servidão das mulheres está muito de acordo com o espírito do governo despótico, que se compraz em abusar de tudo. Destarte, viu-se, em todas as épocas, na Ásia, a servidão doméstica e o governo despótico marcharam de mãos dadas. Num governo em que se exige, sobretudo, tranquilidade, e onde a subordinação extrema chama-se paz, é mister enclausurar as mulheres; suas intrigas seriam fatais ao marido. Um governo que não tem tempo de examinar a conduta dos súditos a considera suspeita, unicamente pelo que ela aparenta e pelo que faz sentir. Suponhamos, um momento, que a leviandade de espírito e as indiscrições, as inclinações ou as aversões de nossas mulheres, suas grandes e pequenas paixões se encontrassem transplantadas a um governo do Oriente, com a atividade e esta liberdade que existe entre nós: qual o pai de família que poderia estar um momento sossegado? Em toda parte, pessoas suspeitas; em toda parte, inimigos. O Estado seria abalado, ver-se-ia correr rios de sangue. CAPÍTULO X Princípio da moral do Oriente No caso da multiplicidade de mulheres, quanto mais a família deixa de ser una, mais as leis devem reunir num centro essas partes desgarradas e, quanto mais diferentes são os interesses, mais é necessário que as leis os reconduzam a um único interesse. Isso se faz principalmente pela clausura. As mulheres devem não somente estar separadas dos homens pela clausura da casa, como devem também ficar separadas nesta própria clausura, de modo que elas aí se estabeleçam como uma família particular dentro da família. Disso deriva, para as mulheres, toda prática da moral: o pudor, a castidade, o silêncio, a paz, a dependência, o respeito, o amor, enfim, uma orientação geral de sentimentos, a melhor por sua natureza, que é o apego exclusivo à família. As mulheres têm, naturalmente, que cumprir tantos deveres que lhes são próprios, que não se pode separá-las muito de tudo quanto lhes poderia dar outras ideias, de tudo o que diz respeito às distrações, e tudo a que chamamos negócios. Encontramos, no Oriente, costumes mais puros à medida que a clausura das mulheres é mais rigorosa. Nos grandes Estados há, necessàriamente, grandes senhores. Quanto mais poderosos, mais estão eles em condições de manter as mulheres numa rigorosa reclusão e impedi-las de entrar na sociedade. É por isso que, nos impérios turco, persa, mo gol, chinês e japonês, a conduta das mulheres é admirável. Não se pode dizer o mesmo das índias, onde o número infinito de ilhas e a situação do solo dividiram-na em uma infinidade de pequenos Estados que grande número de causas (que não tenho tempo para expor) tornaram despóticos. Nesse país, existem apenas miseráveis que pilham e miseráveis que são pilhados. Os que se chamam poderosos têm apenas muito poucos recursos; os que se chamam ricos mal têm para a sua subsistência. A clausura das mulheres não pode ser tão rigorosa; não se pode tomar grandes precauções para contê-las; a corrupção dos seus costumes é inimaginável. É nisso que vemos até que ponto os vícios do clima, deixados em grande liberdade, podem acarretar a desordem. É nisso que a Natureza tem uma força e o pudor uma fraqueza que não podemos compreender. Em Patane, a lubricidade das mulheres é tão grande que os homens são constrangidos a utilizar certas guarnições para se protegerem de suas investi das. Segundo Smith as coisas não são melhores nos pequenos reinos da Guiné. Parece que, nesses países, os dois sexos perdem até mesmo suas próprias leis. CAPÍTULO XI Da servidão doméstica independente da poligamia Não é somente a pluralidade de mulheres que exige, em certos lugares do Oriente, sua clausura: é o clima. Os que lerem os horrores, os crimes, as perfídias, as atrocidades, as peçonhas, os assassínios, que a liberdade das mulheres ocasionou em Goa e nos estabelecimentos portugueses nas índias, onde a religião só permite uma esposa, e os que compararem isso à inocência e à pureza dos costumes das mulheres na Turquia, na Pérsia, no Mogol, na China e no Japão, perceberão que é, amiúde, necessário separá-las dos homens, tanto quando se tem uma mulher, como quando se têm várias. É o clima que deve decidir as coisas. De que serviria enclausurar as mulheres nos nossos países do norte, em que seus costumes são naturalmente bons e onde todas as paixões são calmas, pouco ativas, poucos requintadas, onde o amor tem sobre o coração um domínio tão controlado que a menor vigilância basta para orientá-las? É uma felicidade viver nesses climas que permitem que nos comuniquemos, onde o sexo que possui mais atrativos parece adornar a sociedade, e onde as mulheres, reservando-se para os prazeres de um único homem, servem também para o entretenimento de todos. CAPÍTULO XII Do pudor natural Todas as nações estão concordes em desprezar a incontinência das mulheres; é que a Natureza falou a todas as nações. Ela estabeleceu a defesa e o ataque e, tendo posto nos dois lados o desejo, colocou num a temeridade e, noutro, a vergonha. Deu aos indivíduos, para se conservar, longos períodos de tempo e, para se perpetuar, só lhes deu momentos. Portanto, não é verdade que a incontinência obedeça às leis da Natureza; pelo contrário, ela a viola. A modéstia e a moderação é que lhe obedecem. Aliás, é da natureza dos seres inteligentes perceber suas imperfeições; assim, a Natureza colocou em nós o pudor, ou seja, a vergonha de nossas imperfeições. Deste modo, quando a força física de certos climas viola a lei natural dos dois sexos e a dos seres inteligentes, cabe ao legislador estabelecer as leis que vençam a natureza do clima e restabeleçam as leis primitivas. CAPÍTULO XIII Do ciúme É mister distinguir claramente, entre os povos, o ciúme da paixão do ciúme do hábito, dos costumes, das leis. O primeiro é uma febre ardente que devora; o outro, frio mas algumas vezes terrível, pode aliar-se à indiferença e ao desprezo. Um abuso do amor nasce do próprio amor. O outro atem-se unicamente aos costumes, às maneiras da nação, às leis do país, à moral e, algumas vezes mesmo, à religião. Ele é quase sempre resultado da força física do clima e o remédio desta força física. CAPÍTULO XIV Do governo da casa no Oriente Muda-se tão frequentemente de mulheres no Oriente que elas não podem ter o governo doméstico; os eunucos encarregam-se disso. Entregam-se-lhes todas as chaves e eles dispõem dos negócios da casa. "Na Pérsia, diz Chardin, dão-se às mulheres suas roupas como se fossem crianças." Assim, este cuidado que parece lhes convir tão bem, este cuidado que, em todos os outros lugares, é o primeiro de seus cuidados, não lhes diz respeito. CAPÍTULO XV Do divórcio e do repúdio A diferença entre o divórcio e o repúdio é esta: efetua-se o divórcio por um mútuo consentimento quando de uma incompatibilidade mútua, enquanto o repúdio se efetua pela vontade e em favor de uma das duas partes, independentemente da vontade e da vantagem do outro. Repudiar é algumas vezes tão necessário às mulheres e lhes é sempre tão desagradável fazê-lo, quanto é dura a lei que outorga esse direito aos homens sem outorgá-la às mulheres. Um marido é o senhor do lar; ele possui mil maneiras para manter ou reconduzir suas mulheres ao dever e parece que, em suas mãos, o abuso não passa de um novo abuso do seu poder. Porém, a mulher que repudia utiliza apenas um triste remédio. Sempre é para ela uma grande desgraça ser constrangida a procurar novo marido, quando perdeu a maioria de seus atrativos com outro. É uma das vantagens dos encantos da juventude nas mulheres que, em idade avançada, um marido se comporte bondosamente à lembrança de seus prazeres. Constitui, portanto, uma regra geral que, em todos os países onde a lei concede aos homens a faculdade de repudiar, deva ela também ser concedida às mulheres. Demais, nos climas em que as mulheres vivem em escravidão doméstica, parece que a lei deve permitir às mulheres o repúdio e aos maridos somente o divórcio. Quando as mulheres vivem no serralho, o marido não pode repudiar por causa da incompatibilidade dos costumes; a culpa cabe ao marido, se os costumes são incompatíveis. O repúdio com base na esterilidade da mulher só teria sentido na monogarnia: quando há muitas esposas, este motivo não tem nenhuma importância para o marido. A lei das Maldivas permite retomar uma mulher que se repudiou. A lei do México proibia, sob pena de morte, a reconciliação. A lei do México era mais sensata do que a das Maldivas; no mesmo momento da dissolução ela pensava na indissolubilidade do casamento, ao passo que a lei das Maldivas parece menosprezar igualmente o casamento e o repúdio. A lei do México apenas concedia o divórcio. Era uma nova razão para não permitir que casais, voluntàriamente separados, tornassem a ser reunir. O repúdio parece adequar-se mais ao arrebatamento do espírito e a alguma paixão da alma; o divórcio parece mais fruto da reflexão. O divórcio tem, comumente, grande utilidade política e, no que concerne à utilidade civil, ele é estabelecido para o marido e para a mulher, e nem sempre é favorável aos filhos. CAPÍTULO XVI Do repúdio e do divórcio entre os romanos Rômulo permitiu ao marido repudiar a esposa se ela tivesse cometido adultério, preparado veneno ou falsificado chaves. As mulheres não concedeu o direito de repudiar seus maridos. Plutarco diz que essa lei era muito severa. Como a lei de Atenas outorgava, tanto à mulher como ao marido, a faculdade de repudiar e como vemos que, entre os primeiros romanos, as mulheres obtiveram esse direito, não obstante a lei de Rômulo, é evidente que esta instituição foi uma das que os deputados de Roma imitaram dos atenienses e que foi incluída nas leis das Doze Tábuas. Cícero afirma que as causas do repúdio estavam nas leis das Doze Tábuas. Não podemos duvidar, portanto, que esta lei tenha aumentado o número das causas de repúdio estabelecidas por Rômulo. O direito de divórcio foi também uma disposição, ou pelo menos uma consequência da lei das Doze Tábuas, pois, desde o momento em que a mulher ou o marido tivessem, separadamente, o direito de repudiar, com mais forte razão podiam desfazer o concertado amigàvelmente e por vontade mútua. Para conceder o divórcio, a lei não exigia que se apresentassem os motivos, porque, pela natureza da coisa, requerem-se motivos para o repúdio que não são necessários para o divórcio, uma vez que, onde a lei especificou os motivos que podem romper o casamento, a incompatibilidade mútua é o maior deles. Dionísio de Halicarnasso, Valério Máximo e Aulo Gélio relatam um fato que não me parece verdadeiro. Dizem que, quando se estabeleceu em Roma o direito de repudiar a esposa, teve-se tanto respeito pelos auspícios que ninguém, durante quinhentos e vinte anos, utilizou esse direito, até Carvílio Ruga, que repudiou a sua por causa da esterilidade. Porém, basta conhecer a natureza do espírito humano para perceber que prodígio seria que, dando a lei a todo um povo semelhante direito, ninguém se utilizasse dele. Coriolano, partindo para seu exílio, aconselho sua mulher a casar com um homem mais feliz que ele, Acabamos de ver que a lei das Doze Tábuas e os costumes dos romanos ampliaram muito a lei de Rômulo. Por que tais ampliações se nunca se fez uso da faculdade de repudiar? Além disso, se os cidadãos tivessem tal respeito pelos auspícios, que nunca repudiassem, por que os legisladores de Roma o teriam menos? Como a lei corrompeu incessantemente os costumes? Cotejando-se duas passagens de Plutarco, ver-se-á desaparecer o maravilhoso do fato em questão. A lei real permitia ao marido repudiar nos três casos que acabamos de nos referir. "E ela estipulava, diz Plutarco, que quem repudiasse em outros casos, fosse obrigado a dar a metade de seus bens à esposa e que a outra metade fosse consagrada a Ceres." Podia-se, portanto, repudiar em todos os casos, mas submetendo-se à pena. Ninguém o fez antes de Carvílio Ruga, "que, como narra ainda Plutarco, repudiou a esposa por causa da esterilidade duzentos e trinta anos depois de Rômulo", isto é, a repudiou setenta e um anos antes da lei das Doze Tábuas, que ampliava o poder de repudiar e as causas do repúdio. Os autores que citei dizem que Carvílio Ruga amava sua mulher mas que, por causa da sua esterilidade, os censores lhe fizeram jurar que a repudiaria, a fim que ele pudesse dar filhos à república, e que isso o tornou odioso ao povo. Cumpre conhecer o gênio do povo romano para descobrir a verdadeira causa do ódio que votou a Carvílio. Não foi pelo fato de repudiar a esposa que Carvílio caiu na desgraça do povo; isso não perturbaria o povo. Porém, Carvílio fizera um juramento aos censores, que, dada a esterilidade da mulher, ele a repudiaria para dar filhos à república. Era um jugo que o povo percebia que os censores iriam colocar sobre ele. Mostrarei, na continuação desta obra, as repugnâncias que o povo romano sempre demonstrou por regulamentos semelhantes. Mas donde pode advir tamanha contradição entre estes autores? Ei-la: Plutarco examinou um fato, e os outros relataram um prodígio. LIVRO DÉCIMO SÉTIMO - Como as leis da servidão política se relacionam com a natureza do clima CAPÍTULO I Da servidão política A servidão política não depende menos da natureza do clima do que a servidão civil e doméstica, como demonstraremos. CAPÍTULO II Diferenças dos povos com relação à coragem Já dissemos que o calor excessivo diminui a força e a coragem dos homens e que havia nos climas frios certa força de corpo e de espírito que tornava os homens capazes de ações duradouras, penosas, grandes e ousadas. Nota-se isso não apenas de nação para nação como também num mesmo país, de uma região para outra. Os povos do norte da China são mais corajosos do que os do sul; os povos do sul da Coréia não o são tanto quanto os do norte. Não nos devemos, pois, espantar que a covardia dos povos de clima quente os tenha, quase sempre, tornado escravos, e que a coragem dos povos dos climas frios os tenha mantido livres. É uma consequência que deriva de sua causa natural. Verifica-se isso igualmente na América; os impérios despóticos do México e do Peru estavam próximos do equador e quase todos os pequenos povos livres estavam ou estão ainda perto dos polos. CAPÍTULO III Do clima da Ásia As relações contam-nos "que o norte da Ásia, este vasto continente, se estende do quarto grau, aproximadamente, até o polo, e das fronteiras da Moscóvia até o mar Oriental, situa-se num clima muito frio; que essas terras imensas estão divididas de oeste a leste por uma cadeia de montanhas que deixam ao norte a Sibéria, e ao sul a Grande Tartária; que o clima da Sibéria é tão frio que, com exceção de alguns lugares, ela não pode ser cultivada; e apesar de que os russos tenham estabelecimentos em todo o longo do Irtixe, eles nada cultivam; que só crescem nesta região alguns pequenos abetos e arbustos; que os naturais da região dividem-se em miseráveis bandos de nômades, que são como os do Canadá; que o motivo dessa frieza decorre, de um lado, da altitude da região e, de outro, de que, à medida em que se avança do sul para o norte, as montanhas aplanam-se, de modo que o vento do norte sopra por toda parte sem encontrar obstáculos; que esse vento, que torna a Nova Zelândia inabitável, varrendo a Sibéria, torna-a inculta; que, na Europa, ao contrário, as montanhas da Noruega e da Lapônia são bastiões admiráveis que protegem desse vento os países do norte; que isso faz com que, em Estocolmo, que se localiza aproximadamente a cinquenta e nove graus de latitude, a terra produza frutos, cereais, plantas; e que, em torno do Abo, que está a sessenta e um graus, assim como pelos sessenta e três e sessenta e quatro graus, existam minas de prata e que o terreno seja muito fértil". Vemos também, nas relações, "que a Grande Tartária, que está ao sul da Sibéria, é igualmente muito fria; que o país nada cultiva e que aí só existem pastagens para os rebanhos; que aí não crescem árvores mas somente algumas urzes, como na Islândia; que há, próximo da China e do Mogol, algumas regiões em que cresce uma espécie de painço, mas que nem o trigo nem o arroz podem amadurecer; que quase não há, na Tartária chinesa, lugares, nos 43º, 44º e 45º, em que não gele durante sete ou oito meses no ano, de modo que ela é tão fria quanto a Islândia, apesar de que devesse ser mais quente do que o sul da França; que não há cidades, exceto quatro ou cinco do lado do mar Oriental e algumas que os chineses, por razões políticas, construíram perto da China; que, no resto da Grande Tartária, existem apenas algumas delas localizadas nas Bucárias, Turquestão e Carismo; que a origem dês se frio extremo reside na natureza do solo nitroso, repleto de salitre, e arenoso e, além disso, na altura do terreno. O Pe. Verbiest descobriu que um certo local, a oitenta léguas ao norte da grande muralha, para o lado da nascente do Kavamhuram, ultrapassava a altura do nível do mar, perto de Pequim, em três mil passos geométricos; que essa altura é causa de, apesar de quase todos os grandes rios da Ásia terem sua nascente na região, faltar água, de modo que ela só pode ser habitada junto aos rios e lagos". Estabelecidos esses fatos, eu raciocino assim: a Ásia não está propriamente na zona temperada e os lugares num clima muito frio confinam imediatamente com os que estão situados num clima muito quente, isto é, a Turquia, a Pérsia, o Mogol, a Coréia e o Japão. Na Europa, pelo contrário, a zona temperada é muito extensa, apesar de que esteja situada em climas muito diferentes entre si, não havendo relação entre os climas da Espanha e da Itália e os da Noruega e Suécia. Mas, como o clima, à medida que passa do sul para o norte, torna-se insensivelmente frio, quase na proporção da latitude de cada país, ocorre que cada país é mais ou menos semelhante ao que lhe é vizinho, que não existe uma diferença notável entre eles e que, como acabo de dizer, a zona temperada é muito extensa. Disso resulta que, na Ásia, as nações se defrontem com nações, do forte ao fraco; os povos guerreiros, bravos e ativos confinam imediatamente com povos efeminados, indolentes e timoratos; cumpre, portanto, que um seja conquistado e outro conquistador. Na Europa, pelo contrário, as nações se defrontam, forte ao forte; as que são fronteiriças têm aproximadamente a mesma coragem. Reside aí o principal motivo da fraqueza da Ásia e da força da Europa, da liberdade da Europa e da servidão da Ásia, motivo este que, ao que sei, não tinha ainda sido observado. É isso que faz com que, na Ásia, nunca aconteça de a liberdade aumentar, enquanto, na Europa, ela aumenta ou diminui segundo as circunstâncias. Ver-se-à sempre no fato de ter a nobreza moscovita sido reduzida à servidão por um de seus príncipes os traços de impaciência que os climas do sul não propiciam. Não vimos o governo aristocrático aí estabelecido durante alguns dias? Se outro reino do norte perder suas leis, pode-se confiar no clima, pois ele não as perderá irremediàvelmente. CAPÍTULO IV Consequência de tudo isso O que acabamos de dizer está coerente com os acontecimentos da História. A Ásia foi subjugada treze vezes: onze pelos povos do Norte e duas pelos do Sul. Há muito tempo atrás os citas a conquistaram três vezes; em seguida os medos e os persas, uma vez cada um; os gregos, os árabes, os mongóis, os turcos, os tártaros, os persas e os aguanos. Refiro-me apenas à Alta Ásia e deixo de lado as invasões ocorridas no sul dessa parte do mundo, que continuamente sofreu grandes revoluções. Na Europa, ao contrário, só conhecemos, desde o estabelecimento das colônias gregas e fenícias, quatro grandes transformações: a primeira causada pelas conquistas dos romanos; a segunda, pelas inundações dos bárbaros que destruíram os próprios romanos; a terceira, pelas vitórias de Carlos Magno, e a última pela invasão dos normandos. E, se examinarmos esses acontecimentos mais de perto, encontraremos neles uma força geral difundida em todas as partes da Europa. Sabemos das dificuldades que os romanos encontraram para fazer a conquista na Europa e da facilidade que tiveram para invadir a Ásia. Conhecemos os percalços que os povos do Norte sofreram para derrubar o império romano, as guerras e as dificuldades de Carlos Magno e os diversos empreendimentos dos normandos. Os destruidores eram incessantemente destruídos. CAPÍTULO V De como, quando os povos do norte da Ásia e os do norte da Europa conquistaram, os efeitos da conquista não eram os mesmos Os povos do norte da Europa conquistaram-na como homens livres; os povos do norte da Ásia conquistaram-na como escravos, e só venceram para um senhor. Isso ocorreu porque o povo tártaro, conquistador natural da Ásia, tornou-se, ele próprio, escravo. Ele conquista incessantemente no Sul da Ásia, forma impérios, mas a parte do povo que permanece no país encontra-se submetida a um poderoso senhor que, despótico no sul, quer também sê-lo no norte e, com poder arbitrário sobre os súditos conquistados, pretende também estendê-lo aos súditos conquistadores. Atualmente, vê-se bem isso nesta vasta região que se chama Tartária Chinesa, governada pelo imperador quase tão despoticamente como a própria China e que ele aumenta todos os dias com suas conquistas. Podemos ver também na história da China que os imperadores enviaram colônias chinesas à Tartária. Esses chineses tornaram-se tártaros e inimigos mortais da China, mas isso não impediu que introduzissem na Tartária o espírito do governo chinês. Amiúde uma fração da nação tártara, após haver efetuado a conquista, é por sua vez expulsa e leva para seus desertos um espírito de servidão que adquiriu no clima de escravidão. A história da China, bem como nossa história antiga, fornecem-nos grandes exemplos disso. É o que faz com que o gênio da nação tártara ou gética tenha sido sempre semelhante ao dos impérios da Ásia. Os povos, nesta última, são governados pelo bastão; os povos tártaros, pelos compridos chicotes. O espírito da Europa sempre foi contrário a tais costumes e, em todas as épocas, o que os povos da Ásia chamaram punição, os da Europa chamaram ultraje. Destruindo o império grego, os tártaros implantaram nos países conquistados a servidão e o despotismo; os gôdos, conquistando o império romano, implantaram, em toda parte, a monarquia e a liberdade. Não sei se o famoso Rudbeck que, em sua Atlântica, tanto louvou a Escandinávia, referiu-se a essa grande prerrogativa que deve colocar as nações que a habitam acima de todos os povos do mundo; é que elas foram a fonte da liberdade da Europa, ou seja, de quase toda a liberdade que existe atualmente entre os homens. O gôdo Jornandes denominou o norte da Europa fábrica do gênero humano. Eu denominaria antes fábrica dos instrumentos que rompem os grilhões forjados no Sul. É lá que se formam esses povos intimo ratos que saem de seus países para destruir os tiranos e os escravos e ensinar aos homens que, tendo a Natureza feito iguais, a razão só os poderia tornar dependentes para a sua felicidade. CAPÍTULO VI Nova causa física da servidão da Ásia e da liberdade da Europa Na Ásia, sempre encontramos grandes impérios; na Europa, eles nunca puderam subsistir. É que, na Ásia que conhecemos, estão situadas as maiores planícies; e é cortada em maiores porções pelos mares e, como está localizada mais ao sul, as fontes aí secam mais fàcilmente, as montanhas são menos cobertas de neves e os rios menos caudalosos formam barreiras menores. Na Ásia, o poder deve sempre ser despótico, pois não sendo a servidão tão extremada, ocorreria logo uma divisão que a natureza da região não poderia suportar. Na Europa, a divisão natural forma vários Estados de extensão média, nos quais o governo das leis não é incompatível com a manutenção do Estado, sendo, pelo contrário, tão favorável que, sem elas, este Estado cairia na decadência e tornar-se-ia inferior a todos os demais. Foi isso que originou um espírito de liberdade que torna cada parte muito difícil de ser subjugada e submetida a uma força estrangeira, a não ser pelas leis e pela utilidade de seu comércio. Pelo contrário, na Ásia reina um espírito de servidão que nunca a abandonou e, em todas as histórias desse continente, não é possível encontrar um só traço que marque uma alma livre; aí nunca se verá senão o heroísmo da servidão. CAPÍTULO VII Da África e da América Eis o que posso dizer sobre a Ásia e sobre a Europa. A África está situada num clima semelhante ao do sul da Ásia e encontra-se sob uma mesma servidão. A América, destruída e novamente povoada pelas nações da Europa e da África, quase não pode hoje revelar seu verdadeiro espírito, mas o que sabemos de sua antiga história está muito de acordo com nossos princípios. CAPÍTULO VIII Da capital do império Uma das consequências decorrentes do que acabamos de dizer é que é importante para um príncipe muito poderoso escolher corretamente a sede de seu império. Quem a situar ao sul correrá o risco de perder o norte e quem a colocar ao norte conservará facilmente o sul. Não me refiro a casos específicos: a mecânica tem efetivamente seus atritos que, muitas vezes, modificam ou paralisam os efeitos da teoria; a política também tem os seus. LIVRO DÉCIMO OITAVO - Das leis em suas relações com a natureza do terreno CAPÍTULO I Como a natureza do terreno influi sobre as leis A fertilidade das terras de um país estabelece naturalmente a dependência. Os camponeses, que formam a maior parte do povo, não são tão ciosos de sua liberdade; estão muito ocupados e sobrecarregados com seus afazeres particulares. Um campesinato rico teme a pilhagem, teme o exército. "Quem é que forma o bom partido?, dizia Cícero a Ático. Serão os comerciantes ou os lavradores, a menos que não imaginemos que eles se opõem à monarquia, eles, para quem todos os governos são iguais desde que estejam tranquilos?" Assim, o governo de um só geralmente existe nos países férteis e o governo de vários nos países que não o são, o que é, às vezes, uma compensação. A esterilidade do solo da Ática ocasionou o estabelecimento do governo popular e a fertilidade do da Lacedemônia, o governo aristocrático, porque, nesta época, não se queria, na Grécia, o governo de um só: ora, o governo aristocrático é o que mais se aproxima do governo de um só. Plutarco relata-nos que tendo a sedição Ciloniana apaziguado Atenas, a cidade recaiu nas suas antigas dissensões e dividiu-se em tantos partidos quantas espécies de solos havia na região da Ática. Os da montanha queriam à viva força o governo popular; os da planície exigiam o governo dos principais; os que estavam próximos do mar eram favoráveis a um governo formado pelos dois anteriores. CAPÍTULO II Continuação do mesmo assunto Tais regiões férteis são planícies onde nada se pode disputar ao mais forte; está-se, portanto, submetido a ele e, quando se lhe está submetido, o espírito da liberdade não poderá surgir. Os bens agrários são um penhor da fidelidade, Mas, nas regiões montanhosas, pode-se e tem-se pouco a conservar. A liberdade, ou seja, o governo no qual nos comprazemos, é o único bem que merece ser defendido. Ela reina, assim, mais nos países montanhosos e difíceis do que nos que a natureza parece ter favorecido mais. Os montanheses conservam um governo mais moderado porque não estão muito expostos à conquista. Defendem-se fàcilmente e são atacados dificilmente. As munições de guerra e de boca são reunidas e transportadas contra eles com enormes despesas e a região não as fornece. Deste modo, é mais difícil de lhes fazer a guerra, mais perigoso empreendê-la, e todas as leis feitas para a segurança do povo são aí menos necessárias. CAPÍTULO III Quais são as regiões mais cultivadas As regiões não são cultivadas em razão de sua fertilidade, mas em razão de sua liberdade e, se dividíssemos a terra pelo pensamento, ficaríamos admirados por ver, na maioria das vezes, desertos em suas partes mais férteis e grandes povoados naquelas onde o terreno parece recusar tudo. É natural que um povo abandone uma região má para procurar outra melhor, mas não que abandone uma região boa para procurar outra pior. A maioria das invasões ocorrem, portanto, nas regiões que a natureza prepara para ser feliz. E, como nada está tão próximo da devastação como a invasão, as melhores regiões são, amiúde, as mais despovoadas, enquanto que as horríveis regiões do Norte continuam sempre habitadas, por serem quase inabitáveis. Vemos, pelo que nos contam os historiadores do êxodo dos povos da Escandinávia para as margens do Danúbio, que não se tratava de uma conquista, mas somente de uma transmigração para terras desertas . Esses climas favoráveis tinham, assim, sido despovoados por outras transmigrações e não conhecemos as coisas trágicas que aí ocorreram. "Parece, por vários monumentos, diz Aristóteles, que a Sardenha era uma colônia grega. Outrora, fora muito rica, e Aristeu, cujo amor pela agricultura tem sido tão louvado, dera-lhe leis. Mas ela decaiu muito depois, porque os cartagineses, conquistando-a, destruíram tudo o que podia torná-la propícia à alimentação dos homens, e proibiram, sob pena de morte, o culto da terra." A Sardenha ainda não se tinha restabelecido na época de Aristóteles e não o está ainda hoje. As regiões mais temperadas da Pérsia, da Turquia, da Moscóvia e da Polônia, não puderam restabelecer-se das devastações dos grandes e dos pequenos tártaros. CAPÍTULO IV Novos efeitos da fertilidade e da esterilidade da região A esterilidade das terras torna os homens laboriosos, sóbrios, habituados ao trabalho, corajosos, aptos para a guerra, pois é muito necessário que eles se esforcem para obter o que a terra lhes recusa. A fertilidade de uma região oferece juntamente com a abastança, a indolência e certo amor pela conservação da vida. Observou-se que as tropas da Alemanha transportadas para lugares onde os camponeses são ricos, como no Saxe, não são tão boas como as outras. As leis militares poderão remediar este inconveniente com uma severa disciplina. CAPÍTULO V Dos povos das ilhas Os povos das ilhas são mais inclinados à liberdade do que os povos do continente. As ilhas são, geralmente, de pequena extensão•a; assim, uma parte do povo não pode ser empregada com tanto êxito para oprimir a outra; o mar as separa dos grandes impérios e a tirania não se pode manter; os conquistadores são paralisados pelo mar; os insulares não são envolvidos pelas conquistas e conservam mais fàcilmente suas leis. CAPÍTULO VI Das regiões formadas pela indústria dos homens As regiões que o labor dos homens tornou habitáveis e que necessitam desse mesmo labor para existir, atraem os governos moderados. Existe principalmente três dessa espécie; as duas belas províncias de Kiang-Nan e Tche-Kiang, na China, o Egito e a Holanda. Os antigos imperadores da China não eram conquistadores. A primeira coisa que fizeram para engrandecer-se foi a que provou sua sabedoria. Viram-se emergir das águas as duas mais belas províncias do império; foram construídas pelos homens. É a indizível fertilidade dessas duas províncias que deu à Europa as ideias de felicidade desta vasta região. Mas, um cuidado contínuo e necessário para garantir contra a destruição uma parte considerável do império, exigia mais os costumes de um povo austero do que os de um povo voluptuoso, mais o poder legítimo de um monarca do que o poder tirânico de um déspota. Cumpria que o poder aí fosse moderado como o fora, outrora, no Egito. Cumpria que o poder fosse moderado, como o é na Holanda, feita pela natureza para cuidar de si própria e não para ser abandonada ao desleixo ou ao capricho. Assim, malgrado o clima da China, que induz naturalmente à obediência servil, malgrado os horrores resultantes da enorme extensão do império, os primeiros legisladores da China foram obrigados a fazer leis muito boas e o governo, amiúde, foi obrigado a observá-las. CAPÍTULO VII Das obras dos homens Os homens, por seus cuidados e por suas boas leis, tornaram a terra mais adequada a ser habitada. Vemos correrem rios onde apenas existiam lagos e pântanos; trata-se de um benefício que a Natureza não outorgou, mas que é mantido por ela. Quando os persas eram senhores da Ásia, permitiam aos que canalizassem as águas das fontes para algum lugar que não fosse irrigado usufruí-lo durante cinco gerações, e como, do monte Tauro brotam inúmeros regatos, eles não pouparam nenhuma despesa para obter a água. Atualmente, sem que saibamos de onde ela provém, encontramo-la nos campos e jardins. Assim, como povos destruidores causam malefícios que perduram mais do que eles, há outros, laboriosos, que fazem benefícios que não acabam nem mesmo com eles. CAPÍTULO VIII Relação geral das leis As leis estão estreitamente relacionadas com o modo pelo qual os diferentes povos procuram sua subsistência. É necessário um código de leis mais amplo para um povo que se dedica ao comércio e ao mar do que para um povo que se limita a cultivar suas terras. É preciso um maior para este povo do que para outro que vive de seus rebanhos. É necessário um maior para este último do que para outro que vive da caça. CAPÍTULO IX Do solo da América O que faz com que haja tantos povos selvagens na América é o fato de seu solo produzir por si próprio muitos frutos com os quais podemos nos alimentar. Se as mulheres cultivam em redor da cabana uma nesga de terra, logo aparece o milho. A caça e a pesca acabam de oferecer aos homens a abundância. Demais, os animais que pastam, como os bois, os búfalos etc., adaptam-se melhor do que os animais carnívoros. Estes sempre dominaram na África. Creio que todas essas vantagens não existiriam na Europa se se deixasse a terra inculta: aqui quase só nasceriam florestas, carvalhos e outras árvores estéreis. CAPÍTULO X Do número dos homens em relação com a maneira pela qual provêm à subsistência Quando as nações não cultivam a terra, eis em que proporção se encontra o número de homens. Tal como o produto de um solo inculto está para o produto de um solo cultivado, o número dos selvagens, numa região, está para o número dos lavradores em outra. E, quando o povo que cultiva as terras cultiva igualmente as artes, seguem-se daí proporções que exigiriam muitos pormenores. Eles quase não podem formar uma grande nação. Se são pastores, necessitam de uma vasta região para que possam subsistir em certo número; se são caçadores, são ainda em menor número e, para viver, formam um povo menor. Seus domínios são geralmente repletos de florestas e, como os homens aí não canalizaram as águas, a região é cheia de pântanos, em que cada bando se agrupa e forma uma pequena tribo. CAPÍTULO XI Dos povos selvagens e dos povos bárbaros Entre os povos selvagens e os povos bárbaros há esta diferença: os primeiros são pequenas nações esparsas que, por motivos determinados, não se podem agrupar, ao passo que os bárbaros são, comumente, pequenas nações que se podem reunir. Os primeiros, geralmente, são povos caçadores; os segundos, pastores. Vê-se bem isso no norte da Ásia. Os povos da Sibéria não poderiam viver agrupados como um todo porque não poderiam obter alimento; os tártaros podem viver em conjunto durante algum tempo porque seus rebanhos podem ser reunidos durante certo tempo. Todas as hordas podem, portanto, agrupar-se, e isso ocorre quando um chefe submete muitas outras, depois do que é preciso que elas façam uma das duas coisas: que se separem ou que se lancem a alguma grande conquista em algum império do sul. CAPÍTULO XII Do direito das gentes entre os povos que não cultivam as terras Esses povos, não vivendo numa região limitada e circunscrita, terão muitos motivos de querelas entre si. Disputarão mutuamente a terra inculta, como entre nós os cidadãos disputam as heranças. Deste modo, encontrarão frequentes ocasiões de guerra pelas suas caças, pelas suas pescas, pela pastagem de seus animais, pelo apresamento de seus escravos e, não tendo território, terão tanta coisa a regulamentar pelo direito das gentes que pouca coisa terão que decidir pelo direito civil. CAPÍTULO XIII Das leis civis entre os povos que não cultivam as terras É principalmente a partilha das terras que avoluma o código civil. Entre os povos onde esta partilha não se tenha efetuado, haverá poucas leis civis. Poderemos chamar as instituições desses povos mais precisamente costumes do que leis. Entre tais povos, os anciãos, que se lembram das coisas passadas, mantêm grande autoridade; entre eles ninguém se distingue pelos bens mas pelo poder e pelos conselhos. Esses povos erram e dispersam-se nas pastagens e nas florestas. O casamento não é tão estável como entre nós, onde é fortalecido pelo domicílio e onde a esposa se prende a uma casa. Eles podem, portanto, mais fàcilmente mudar de mulheres, possuir várias e, algumas vezes, cruzar-se indiferentemente como animais. Os povos pastores não podem separar-se de seus rebanhos, que constituem sua subsistência; do mesmo modo, não poderiam separar-se de suas mulheres, que deles cuidam. Assim, rebanhos e mulheres devem deslocar-se conjuntamente, tanto mais que, vivendo geralmente nas grandes planícies, em que há poucos sítios defensivos, suas mulheres, filhos e rebanhos tornar-se-iam presa dos inimigos. Suas leis regulamentarão a partilha das pilhagens e concederão, como nossas leis sálicas, atenção particular aos roubos. CAPÍTULO XIV Do Estado político dos povos que não cultivam as terras Esses povos gozam de grande liberdade, pois, como não cultivam as terras, não lhe estão ligados; são errantes, nômades e, se um chefe pretendesse suprimir-lhes a liberdade, iriam logo procurá-la com outro, ou refugiar-se-iam nas florestas para viver com sua família. Entre esses povos a liberdade do homem é tão grande que acarreta necessàriamente a do cidadão. CAPÍTULO XV Dos povos que conhecem o uso da moeda Aristipo, tendo naufragado, nadou e alcançou uma praia próxima; viu que, na areia, haviam sido traçadas figuras de geometria; comoveu-se de alegria, julgando que encontrara um povo grego e não um povo bárbaro. Ficai isolado e encontrai, por algum acidente, um povo desconhecido; se encontrardes uma moeda, ficai certo de que vos encontrais entre um povo civilizado. A cultura da terra requer o uso da moeda. Essa cultura supõe muitas artes e conhecimentos e vemos sempre marcharem paralelamente as artes, os conhecimentos e as necessidades. Tudo isso conduz ao estabelecimento de um símbolo de valores. As torrentes e os incêndios permitiram-nos descobrir que o solo continha metais. Uma vez separados, é fácil utilizá-los. CAPÍTULO XVI Das leis civis entre os povos que não conhecem o uso da moeda Quando um povo não conhece o uso da moeda, encontramos, nele, somente injustiças decorrentes da violência; e os fracos, unindo-se, se defendem contra a violência. Em seu meio, quase só existem conluios políticos. Mas, entre um povo em que a moeda está estabelecida, estamos sujeitos às injustiças decorrentes da astúcia e essas injustiças podem ser exercidas de mil maneiras. Torna-se então necessária a existência de boas leis civis. Elas surgem com os novos meios e com as diversas maneiras de ser desonesto. Nos países em que a moeda não existe, o larápio só rouba coisas e as coisas nunca se assemelham. Nos países onde existe a moeda, o ladrão rouba símbolos e os símbolos se assemelham. Nos primeiros países nada pode ser ocultado pois o ladrão sempre carrega consigo as provas de seu crime; a mesma coisa não ocorre nos outros países. CAPÍTULO XVII Das leis políticas entre os povos que não utilizam a moeda O que mais assegura a liberdade dos povos que não cultivam as terras é o fato de não conhecerem a moeda. Os frutos da caça, da pesca ou dos rebanhos não podem ser reunidos em quantidade muito grande, nem ser conservados por muito tempo, a ponto de um homem se encontrar em condições de corromper todos os demais, ao passo que, quando os símbolos da riqueza existem, podem eles ser amontoados e distribuídos a quem se quiser. Entre os povos que não conhecem o uso da moeda, cada um possui poucas necessidades e as satisfaz fácil e igualmente. A igualdade é, portanto, forçada e, destarte, os chefes não são despóticos. CAPÍTULO XVIII Força das superstições Se é verdade o que nos dizem as relações, a constituição de um povo da Luisiana denominados natchês derroga isso. Seu chefe dispõe dos bens de todos os súditos e os faz trabalhar a seu capricho; não lhe podem recusar sua cabeça. Ele é como o Grão Senhor. Quando o herdeiro presuntivo nasce, dão-se-lhe todas as crianças de peito para servi-l o durante toda a vida. Diríeis que é o grande Sesóstris. Esse chefe é tratado em sua cabana com cerimônias que se dispensaria a um imperador do Japão ou da China. Os preconceitos da superstição são superiores a todos os outros, e suas razões a todas as demais. Assim, apesar de os povos selvagens não conhecerem naturalmente o despotismo, esse povo o conhece. Adoram o Sol e, se o seu chefe não tivesse imaginado que era irmão do Sol, veriam nele apenas um miserável como eles próprios. CAPÍTULO XIX Da liberdade dos árabes e da servidão dos tártaros Os árabes e os tártaros são povos pastores. Os árabes estão incluídos nos casos gerais a que já nos referimos, e são livres, enquanto os tártaros (o mais curioso povo da terra) encontram-se na escravidão política. Já apresentei algumas razões para esse último fato: eis outras novas. Não têm cidades, não têm florestas, têm poucos pântanos; seus rios estão quase sempre gelados; habitam uma imensa planície; têm pastagens e rebanhos e, portanto, bens. Porém, não têm nenhuma espécie de refúgio nem de defesa. Assim que um cã é vencido cortam-lhe o pescoço e tratam seus filhos da mesma maneira e todos seus súditos passam a pertencer ao vencedor. Não são condenados a uma escravidão civil, pois seriam uma carga para uma nação simples que não possui terras a cultivar e não necessita de nenhum serviço doméstico. Assim, eles aumentam a nação. Mas, em lugar da escravidão civil, concebe-se que a escravidão política teve que se introduzir aí. Efetivamente, numa região em que as diversas hordas guerreiam continuamente, e conquistam sem cessar umas às outras; numa região em que, pela morte do chefe, o corpo político de cada horda vencida é sempre destruído, a nação em geral quase não pode ser livre, pois não existe uma parte dela que não deva ter sido subjugada numerosas vezes. Os povos vencidos podem conservar certa liberdade quando, pela força de sua situação, estão em condições de fazer tratados após a derrota. Mas os tártaros, sempre sem defesa, uma vez vencidos, nunca puderam impor condições. Disse, no capítulo lI, que os habitantes das planícies cultivadas quase nunca eram livres: as circunstâncias fazem com que os tártaros, habitando uma terra inculta, estejam no mesmo caso. CAPÍTULO XX Do direito das gentes dos tártaros Os tártaros parecem, entre eles, cordatos e humanos, mas são os mais cruéis conquistadores: passam a fio de espada os habitantes das cidades que conquistam, e quando os vendem, ou os distribuem entre seus soldados, acreditam conceder-lhes uma graça; destruíram a Ásia desde as índias até o Mediterrâneo; toda a região que forma o oriente da Pérsia ficou deserta. Eis o que me parece o resultado de semelhante direito das gentes. Esses povos não possuíam cidades; todas suas guerras realizavam-se rápida e impetuosamente. Quando esperavam vencer, combatiam; quando não esperavam, aumentavam o exército dos mais fortes. Com tais costumes, achavam que era contra seu direito das gentes que uma cidade, que não lhes podia resistir, os detivesse. Não consideravam as cidades como um conglomerado de habitantes, mas como lugares apropriados a resistir a seu poderio. Não possuíam nenhuma habilidade para sitiá-las e expunham-se muito ao fazê-lo; vingavam com sangue todo o sangue que acabavam de verter. CAPÍTULO XXI Leis civis dos tártaros O Pe. de Halde afirma que, entre os tártaros, é sempre o último varão que herda, porque, na medida em que os mais velhos estão em condições de iniciar a vida pastoril, abandonam sua casa com uma certa quantidade de gado que o pai lhes dá e vão constituir uma nova moradia. O último dos varões que permanece no lar com o pai é, assim, o herdeiro natural. Ouvi dizer que semelhante costume era observado em alguns pequenos distritos da Inglaterra e subsiste ainda na Bretanha, no ducado de Rohan entre os plebeus. Trata-se indubitàvelmente de uma lei pastoril originada de algum pequeno povo bretão ou trazido por algum povo germânico. Sabemos, por César e Tácito, que esse último cultivava pouco suas terras. CAPÍTULO XXII De uma lei civil dos povos germânicos Explicarei aqui como esse texto particular da lei sálica, chamada comumente a lei sálica, diz respeito às instituições de um povo que não cultivava as terras, ou, pelo menos, a cultivava pouco. A lei sálica determina que quando um homem deixa filhos, os do sexo masculino herdam a terra sálica em detrimento das filhas. Para saber o que eram as terras sálicas, cumpre verificar o que eram as propriedades ou o uso das terras entre os francos, antes de deixarem a Germânia. Ecchard provou muito bem que a palavra sálica deriva do termo sala, que significa "casa" e que, assim, a terra sálica era a terra da casa. Irei mais longe e examinarei o que era a casa e a terra da casa entre os germanos. "Eles não habitam cidades, diz Tácito, e não podem tolerar que suas casas se toquem; cada um deixa em torno de sua casa um pequeno terreno ou espaço, que é fechado e cercado." Tácito falava corretamente, pois muitas leis dos códigos bárbaros tinham diferentes disposições contra os que destruíssem essa cerca e contra os que penetrassem na própria casa. Sabemos por Tácito e César que as terras cultivadas pelos germanos só lhes era dada por um ano, tornando-se públicas depois desse prazo. Não tinham como patrimônio senão as casas e um pedaço de terra ao redor das mesmas. É esse patrimônio particular que pertencia aos homens. Com efeito, por que teria pertencido às mulheres? Elas passavam para outra casa. A terra sálica era, portanto, esse recinto que dependia da casa do germano; constituía sua única propriedade. Os francos, após a conquista, adquiriram novas propriedades e continuaram a chamá-las terras sálicas. Quando os francos viviam na Germânia, seus bens eram constituídos de escravos, rebanhos, cavalos, armas etc. A casa e a pequena porção de terra que lhe estava agregada, eram naturalmente dadas aos filhos varões que deveriam aí habitar. Mas quando, depois da conquista, os francos adquiriram grandes propriedades, considerou-se injusto que as filhas e seus descendentes não pudessem delas participar. Introduziram uma prática que permitia ao pai convocar à sucessão sua filha e os filhos de sua filha. Fizeram calar a lei vê-se bem que essas convocações se tornaram comuns, uma vez que para elas foram criadas fórmulas. Entre todas essas fórmulas, encontro uma singular. O avô chama à sucessão os netos para que herdem juntamente com os filhos e filhas, Que acontecia, portanto, com a lei sálica? Cumpria que, mesmo nessa época, ela não fosse observada ou que o uso contínuo de chamar à sucessão as filhas tivesse feito com que sua possibilidade de herdar fosse encarada como o caso mais comum. Não tendo a lei sálica por objeto certa preferência por um sexo sobre outro, com muito menos razão teria como objeto a perpetuidade da família, do nome ou da transmissão da terra; essas questões não passaram pela imaginação dos germanos. Tratava-se de uma lei puramente econômica que dava a casa e a terra dela dependente, aos varões que a deviam habitar e a quem, consequentemente, convinha melhor. Basta transcrever aqui o título dos alódios da lei sálica, texto muito famoso, referido por muitos e lido por poucos. 1º "Se um homem morre sem deixar filhos, seu pai ou sua mãe lhe sucederão. 2º Se não tem pai nem mãe, o irmão ou a irmã lhe sucederão. 3º Se não tem nem irmão nem irmã, a irmã de sua mãe lhe sucederá. 4º Se sua mãe não tem irmã, a irmã de seu pai lhe sucederá. 5º Se seu pai não tem irmã, o parente masculino mais próximo lhe sucederá. 6º Nenhuma parcela da terra sálica passará às mulheres, mas pertencerá aos varões, ou seja: os filhos varões sucederão a seu pai." É claro que os cinco primeiros artigos dizem respeito à sucessão de quem morre sem deixar filhos, e o sexto, à sucessão de quem tem filhos. Quando um homem morria sem deixar filhos, a lei estipulava que nenhum dos dois sexos tivesse preferência sobre o outro a não ser em certos casos. Nos dois primeiros graus de sucessão, as vantagens dos varões e das mulheres eram as mesmas; no terceiro e no quarto, as mulheres tinham preferência e os varões a tinham no quinto. Encontro as sementes dessas esquisitices em Tácito. "Os filhos das irmãs, diz ele, são tão queridos pelo tio como pelo próprio pai. Há pessoas que consideram este liame como mais estreito e mesmo mais sagrado; preferem-no ao tornar reféns." É por isso que nossos primeiros historiadores falam-nos tanto do amor dos reis francos pela irmã e pelos filhos dela, pois se os filhos das irmãs eram considerados na casa como os próprios filhos, era natural que as crianças considerassem a tia como a própria mãe. A irmã da mãe tinha preferência com relação à irmã do pai. Isso se explica por outros textos da lei sálica. Quando uma mulher ficava viúva, passava para a tutela dos parentes do marido; a lei preferia para esta tutela os parentes do lado materno aos parentes do lado paterno. Com efeito, a mulher que entrava numa família, unindo-se às pessoas de seu sexo, estava mais próxima dos parentes femininos do que dos parentes masculinos. Além disso, se um homem assassinasse outro e não tivesse com que ressarcir a pena pecuniária na qual incorrera, a lei permitia-lhe ceder seus bens e os parentes deveriam cobrir o que faltasse. Depois do pai, da mãe e da irmã, era a irmã da mãe que pagava, como se esse laço tivesse algo de mais terno. Ora, o parentesco que dava os encargos devia igualmente dar as vantagens. A lei sálica determinava que, depois da irmã do pai, o parente masculino mais próximo tivesse a sucessão, mas, se o parentesco fosse além do quinto grau, ele nada herdava. Assim, uma mulher no quinto grau sucederia em prejuízo de um varão no sexto, e isso se vê na lei dos francos ripuários, fiéis intérpretes da lei sálica, no título dos alódios, onde ela segue passo a passo o mesmo título da lei sálica. Se o pai deixava descendentes, a lei sálica estipulava que as filhas fossem excluídas da sucessão da terra sálica e que esta pertencesse aos varões. Ser-me-á fácil provar que a lei sálica não exclui indistintamente as filhas da terra sálica, mas somente no caso de os irmãos as excluírem. 1º Vemos isso na própria lei sálica que, após declarar que as mulheres nada possuirão da terra sálica, mas somente os varões, interpreta-se e restringe- se a si própria: "isto é, diz ela, que o filho sucederá na herança do pai". 2º O texto da lei sálica é esclarecido pela lei dos francos ripuários, que também tem o título dos alódios, muito semelhante ao da lei sálica. 3º As leis desses povos bárbaros, todos originários da Germânia, interpretam-se mutuamente, tanto mais que todas elas têm aproximadamente o mesmo espírito. A lei dos saxões exige que o pai e a mãe deixem sua herança aos filhos e não às filhas mas que, se só tiverem filhas, a elas caberá toda a herança. 4º Temos duas antigas fórmulas que colocam o caso em que, de acordo com a lei sálica, as filhas são excluídas pelos varões; é quando elas concorrem com o irmão. 5º Outra fórmula prova que a filha herdava em prejuízo do neto; ela era, portanto, excluída apenas pelo irmão. 6º Se as filhas, pela lei sálica, tivessem sido geralmente afastadas da sucessão das terras, seria impossível explicar as histórias, as fórmulas e as cartas que se referem continuamente às terras e aos bens das mulheres na primeira raça. Tem-se errado ao dizer que as terras sálicas eram feudos. 1º Este título é chamado dos alódios. 2º Inicialmente, os feudos não eram hereditários. 3º Se as terras sálicas tivessem sido feudos, como Marculfo teria chamado de ímpio o costume que excluía as mulheres de sua sucessão, uma vez que os próprios varões não herdavam os feudos? 4º As chartas que são citadas para provar que as terras sálicas eram feudos, provam apenas que elas eram terras francas. 5º Os feudos somente foram estabelecidos após a conquista e as práticas sálicas existiam antes que os francos deixassem a Germânia. 6º Não foi a lei sálica que, limitando a sucessão feminina, levou ao estabelecimento dos feudos, mas foi o aparecimento desses últimos que impôs limites à sucessão feminina e às disposições da lei sálica. Depois do que acabamos de dizer, não se acreditaria que a sucessão perpétua dos varões à coroa da França pudesse ter-se originado da lei sálica. Entretanto, é indubitável que ela se originou dessa lei. Demonstrá-lo-ei pelos diversos códigos das leis bárbaras. A lei sálica e a lei dos borguinhões não concediam às filhas o direito de herdar a terra, com seus irmãos; elas também não tinham direito de sucessão à coroa. A lei dos visigodos, pelo contrário, admite que as filhas possam, juntamente com os irmãos, herdar a terra; as mulheres eram capazes de suceder à coroa. Entre esses povos, a disposição da lei civil forçou a lei política. Este não foi o único caso em que a lei política, entre os francos, dobrou-se ante a lei civil. Pela disposição da lei sálica, todos os irmãos sucediam igualmente à terra e esta era também a disposição da lei dos borguinhões. Destarte, na monarquia franca e na dos borguinhões, todos os irmãos sucediam à coroa, com algumas violências, assassínios e usurpações, entre esses últimos. CAPÍTULO XXIII Da longa cabeleira dos reis francos Os povos que não cultivam as terras não têm a mesma ideia do luxo. É preciso ver, em Tácito, a admirável simplicidade dos povos germânicos; as artes não eram aplicadas em seus ornamentos, eles as encontravam na Natureza. Se a família de seus chefes devia ser distinguida por algum sinal, era na própria Natureza que deveriam procurá-lo. Os reis dos francos, dos borguinhões e dos visigodos tinham por diadema sua longa cabeleira. CAPÍTULO XXIV Do casamento dos reis francos Disse mais acima que, entre os povos que não cultivam as terras, os casamentos eram muito menos estáveis e que se tomava, geralmente, muitas mulheres. "Os germanos eram quase os únicos de todos os bárbaros que se contentavam com uma única mulher, com exceção, afirma Tácito, de alguns deles que, não por devassidão mas por nobreza, possuíam várias." Isto explica como os reis da primeira raça tiveram um tão grande número de mulheres. Esses casamentos eram menos um testemunho de incontinência do que um atributo de dignidade: retirar-lhes tal prerrogativa significaria feri-los num lugar muito delicado. Isto explica por que o exemplo dos reis não foi seguido pelos súditos. CAPÍTULO XXV Childerico "Os casamentos entre os germanos são severos, diz Tácito, os vícios não são motivo de ridículo: corromper ou ser corrompido não se chama um hábito ou uma maneira de viver; há poucos exemplos, num povo tão numeroso, de violação da fé conjugal." Isto explica a expulsão de Childerico; ele violara os rígidos costumes que a conquista ainda não tivera tempo de mudar. CAPÍTULO XXVI Da maioridade dos reis francos Os povos bárbaros, que não cultivam as terras, não possuem propriamente um território e são, como dissemos, antes governados pelo direito das gentes do que pelo direito civil. Eles estão, portanto, quase sempre armados. Desta maneira, Tácito diz "que os germanos não tratavam de nenhum negócio público ou particular sem estarem armados. Apresentavam sua opinião por um sinal que faziam com suas armas. Assim que podiam carregá-las, eram apresentados à assembleia; punham-lhes nas mãos um dardo; desde esse momento saíam da infância; eram uma parte da família e tornavam-se uma parte da república". "As águias, dizia o rei dos ostrogodos, deixam de alimentar os filhotes logo que suas penas e unhas estão desenvolvidas; estes não necessitam socorro alheio quando vão sozinhos em busca de uma presa. Seria indigno que nossos jovens que estão em nossos exércitos fossem considerados muito jovens para administrar seus bens e para orientar a conduta de sua vida. Entre os gôdos, é a virtude que determina a maioridade." Childeberto II tinha quinze anos, quando Gontrão, seu tio, o declarou maior e capaz de governar sozinho. Vemos na lei dos ripuários, na idade dos quinze anos, a capacidade de carregar armas e a maioridade marcharem juntas. "Se um ripuário é morto, ou foi morto, diz essa lei, tendo deixado um filho, este não poderá condenar, nem ser condenado em julgamento, até que possua quinze anos completos; então ele mesmo responderá ou escolherá um campeão." Era mister que o espírito estivesse suficientemente formado para se defender em julgamento, como também o estivesse o corpo para se defender em combate. Entre os borguinhões, que também tinham o hábito do combate nas ações judiciais, a maioridade também era de quinze anos. Agatias conta-nos que as armas dos francos eram leves; a maioridade podia ser obtida aos quinze anos. Posteriormente, as armas tornaram-se pesadas, sendo-o já bastante na época de Carlos Magno, como mostram nossas capitulares ou nossos romances. Os que possuíam feudos e que, consequentemente, deviam fazer o serviço militar, só atingiram a maioridade aos vinte e um anos. CAPÍTULO XXVII Continuação do mesmo assunto Vimos que, entre os germanos, não se comparecia às assembleias antes da maioridade; era-se parte da família mas não da República. Isso fez com que os filhos de Clodomiro, rei de Orleans e conquistador da Borgonha, não fossem declarados reis porque, na tenra idade em que se achavam, não podiam estar presentes na assembleia. Ainda não eram reis mas deveriam sê-lo quando fossem capazes de carregar armas e, enquanto isso, Clotilde, sua avó, governava o Estado. Seus tios Clotário e Childeberto os degolaram e dividiram seu reino. Esse exemplo fez com que, posteriormente, os príncipes órfãos fossem declarados reis imediatamente depois da morte dos pais. Assim, o Duque Gondovaldo salvou Childeberto II da crueldade de Chilperico e o proclamou rei com a idade de cinco anos. Porém, nesta própria modificação, obedeceu-se, em primeiro lugar, ao espírito da nação, de modo que os atos nem sequer eram feitos em nome dos reis pupilos. Destarte, houve entre os francos uma dupla administração: uma que dizia respeito à pessoa do rei pupilo e, outra, que dizia respeito ao reino; nos feudos, houve uma diferença entre a tutela e o bailio. CAPÍTULO XXVIII Da adoção entre os germanos Como, entre os germanos, em recebendo armas, obtinha-se a maioridade, a adoção era efetuada sob o mesmo símbolo. Assim, Gontrão, querendo declarar maior seu sobrinho Childeberto e também adotá-lo, disse-lhe: "Coloquei esse dardo em tuas mãos como um símbolo de que te dei meu reino". E, voltando-se para a assembleia: "Vedes que meu filho, Childeberto tornou-se um homem; obedecei-lhe". Teodorico, rei dos ostrogodos, querendo adotar o rei dos hérulos, escreveu-lhe: "É uma bela coisa entre nós poder ser adotado pelas armas, porque os homens corajosos são os únicos que merecem tornar-se nossos filhos. Há uma tal força nesse ato que, aquele que dele é objeto, preferirá sempre morrer a suportar algo de vergonhoso. Assim, pelo costume dos povos e porque sois um homem, adotamos-vos por esses escudos, por essas espadas, esses cavalos, que vos enviamos". CAPÍTULO XXIX Espírito sanguinário dos reis francos Clóvis não foi o único dos príncipes, entre os francos, que empreendeu expedições nas Gálias. Muitos de seus parentes para lá tinham levado tribos particulares; como ele obtivesse grandes êxitos, podendo dar estabelecimentos consideráveis aos que o tinham seguido, francos de todas as tribos acorreram-lhe e os demais chefes encontraram-se muito enfraquecidos para lhe resistir. Ele se impôs como objetivo exterminar toda sua casa e o conseguiu. Temia, diz Gregório de Tours, que os francos tomassem outro chefe. Seus filhos e seus sucessores adotaram a mesma prática tanto quanto puderam. Viram-se irmãos, tios, sobrinhos, que digo? Filhos, pais, conspirarem incessantemente contra toda a família. A lei separava constantemente a monarquia; o temor, a ambição e a crueldade queriam reuni-la. CAPÍTULO XXX Da assembleia da nação entre os francos Dissemos acima que os povos que não cultivam as terras gozam de grande liberdade. Os germanos estavam nesse caso. Tácito conta que eles só outorgavam a seus reis ou chefes um poder muito moderado, e César, que eles não possuíam magistrado comum durante a paz, mas que, em cada aldeia, os príncipes faziam a justiça entre os seus. Desta maneira, os francos, na Germânia, não possuíam reis, como Gregório de Tours prova muito bem. "Os príncipes; diz Tácito, deliberam sobre as pequenas coisas, toda a nação sobre as grandes, de tal maneira, entretanto, que os negócios dos quais o povo toma conhecimento são levados diante do príncipe." Esse costume conservou-se após a conquista, como se vê em todos os monumentos. Tácito diz que os crimes capitais podiam ser levados diante da assembleia. Essa prática continuou após a conquista e os grandes vassalos aí foram julgados. CAPÍTULO XXXI Da autoridade do clero na primeira raça Entre os povos bárbaros, os sacerdotes geralmente têm o poder, porque dispõem da autoridade que devem receber da religião e o poder que entre tais povos dá a superstição. Destarte, vemos em Tácito, que os padres eram muito prestigiados entre os germanos, porque policiavam a assembleia do povo. Só a eles era permitido castigar, prender, bater, coisa que faziam, não por uma ordem do príncipe, nem para infligir uma pena, mas como por uma inspiração da divindade, sempre presente aos que fazem a guerra. Não nos devemos espantar se, desde os inícios da primeira raça, vemos os bispos serem os árbitros dos julgamentos, se os vemos aparecer nas assembleias da nação, se eles foram tão influentes nas resoluções dos reis e se a eles foram dados tantos bens. LIVRO DÉCIMO NONO - Das leis em suas relações com os princípios que formam o espírito geral, os costumes e as maneiras de um povo. CAPÍTULO I Do assunto deste livro Esta matéria é muita extensa. Dessa multidão de ideias que se apresentam a meu espírito, darei mais atenção à ordem das coisas do que às próprias coisas. É preciso que eu afaste à direita e à esquerda, desvende e me esclareça. CAPÍTULO II Como, para as melhores leis, é necessário que os espíritos estejam preparados. Nada parece mais insuportável aos germanos que o tribunal de Varo. Aquele que Justiniano erigiu entre os lazianos para processar o assassino de seu rei, pareceu-lhes uma coisa horrível e bárbara. Mitridates, arengando contra os romanos, censura-lhes sobretudo as formalidades de sua justiça. Os partos não puderam suportar esse rei que, tendo sido educado em Roma, tornou-se afável e acessível a todos. A própria liberdade pareceu insuportável a povos que não estavam acostumados a dela fruir. Assim é que, algumas vezes, o ar puro é prejudicial aos que viveram nas regiões pantanosas. Um veneziano, chamado Balbi, estando em Pegu, foi apresentado ao rei. Quando este soube que em Veneza não existiam reis, riu tanto e foi acometido por um acesso de tosse que lhe deu muita dificuldade para falar a seus cortesões. Que legislador poderia propor o governo popular a povos semelhantes? CAPÍTULO III Da tirania Há duas espécies de tirania: um real, que consiste na violência do governo e, outra, de opinião, que se faz sentir quando os que governam estabelecem coisas que chocam a maneira de pensar de uma nação. Dion diz que Augusto quis se fazer chamar Rômulo mas que, tendo sabido que o povo temia que não quisesse sagrar-se rei, mudou de ideia. Os primeiros romanos não queriam reis porque não lhes poderiam suportar o poder. Porque, apesar de César, os triúnviros e Augusto serem verdadeiros reis, eles conservaram toda a aparência de igualdade e suas vidas particulares encerravam uma espécie de oposição com os faustos dos reis dessa época e, quando os romanos não queriam reis, isto significava que queriam conservar seus costumes e não copiar os dos povos da África e do Oriente. Dion relata-nos que o povo romano indignara-se contra Augusto, por causa de certas leis muito severas que ele fizera, mas que, assim que fez retornar o comediante Piládio, que as facções tinham expulsado da cidade, o descontentamento cessou. Esse povo sentia mais vivamente a tirania quando se expulsava um truão do que quando se lhe suprimiam todas as leis. CAPÍTULO IV O que é o espírito geral Muitas coisas governam os homens: o clima, a religião, as leis, as máximas do governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes, as maneiras, resultando disso a formação de um espírito geral. A medida que, em cada nação, uma dessas causas age com mais força, as demais lhe cedem outro tanto. Entre os selvagens, a natureza e o clima dominam quase sozinhos; as maneiras governam os chineses; as leis tiranizam o Japão; os costumes serviam de regra outrora na Lacedemônia; as máximas do governo e os costumes antigos o faziam em Roma. CAPÍTULO V Como se deve estar atento para não modificar o espírito geral de uma nação Se existisse no mundo uma nação que tivesse um temperamento social, uma sinceridade de coração, uma alegria na vida, um gosto, uma facilidade em comunicar seus pensamentos; que fosse viva, agradável, algumas vezes imprudente, muitas vezes indiscreta; e que tivesse, juntamente com tudo isso, coragem, generosidade, franqueza, certo pundonor, não se deveria procurar constranger, com leis, suas maneiras, para não prejudicar suas virtudes. Se, em geral, o caráter é bom, não importa que alguns defeitos aí se encontrem. Poder-se-ia conter as mulheres, decretar leis para corrigir seus costumes, e limitar seu luxo, mas quem sabe se não perderíamos certo gosto que seria a fonte das riquezas da nação, e uma polidez que atrai para ela os estrangeiros? Cabe ao legislador obedecer ao espírito da nação, quando ele não é contrário aos princípios do governo, pois nada fazemos melhor do que aquilo que fazemos livremente, obedecendo a nossa inclinação natural. Dê-se um espírito de pedanteria a um povo naturalmente alegre: o Estado nada ganhará com isso, nem interna nem externamente. Deixai-o fazer as coisas frívolas seriamente e alegremente as coisas sérias. CAPÍTULO VI Como não se deve tudo corrigir Que nos deixem como somos, dizia um gentil-homem de uma nação que se assemelha muito àquela da qual acabamos de dar uma ideia. A Natureza tudo corrige. Ela nos deu uma vivacidade capaz de ofender e apta a nos fazer faltar a todos os respeitos; essa mesma vivacidade é corrigida pela polidez que ela nos oferece, inspirando-nos o gosto pela sociabilidade e, sobretudo, pelo trato com as mulheres. Que nos deixem tal como somos. Nossas qualidades indiscretas, unidas a nossa pouca malícia, fazem com que as leis que constrangessem o temperamento sociável entre nós não sejam convenientes. CAPÍTULO VII Dos atenienses e dos lacedemônios Os atenienses, prosseguia esse gentil-homem, formavam um povo que tinha alguma relação com o nosso: introduziam jovialidade nos negócios. Uma pequena facécia lhes agradava, tanto na tribuna como no teatro. Esta vivacidade que punham nos conselhos, levavam-na para a execução. O caráter dos lacedemônios era grave, sério, seco, taciturno. Não se tiraria mais proveito de um ateniense aborrecendo-o do que de um lacedemônio, divertindo-o. CAPÍTULO VIII Efeitos do temperamento sociável Quanto mais os povos se comunicam, mais modificam fàcilmente as maneiras, porque cada um é mais um espetáculo para o outro: veem-se melhor as singularidades dos indivíduos. O clima que faz com que um povo goste de se comunicar, faz também com que ele goste de variar, e o que faz com que um povo goste de variar, faz também com que forme seu gosto. A sociedade das mulheres desgasta os costumes e forma o gosto; o desejo de se adornar mais do que os outros estabelece os enfeites, e o desejo de agradar mais do que por si mesmo estabelece as modas. As modas são um objeto importante: à força de tornar o espírito frívolo, aumentam- se incessantemente os ramos de seu comércio. CAPÍTULO IX Da vaidade e do orgulho dos povos A vaidade é uma força tão boa para um governo quanto o orgulho é uma força perigosa. Para ver isto basta imaginar, de um lado, os inumeráveis benefícios que decorrem da vaidade: o luxo, a indústria, as artes, as modas, a polidez, o gosto; e, de outro lado, os infinitos malefícios que nascem do orgulho de certos povos: a indolência, a pobreza, o abandono de tudo, a destruição das nações que o acaso fez cair entre suas mãos, e sua própria destruição. A preguiça é o resultado do orgulho; o trabalho é uma consequência da vaidade; o orgulho de um espanhol levá-lo-á a não trabalhar; a vaidade de um francês levá-lo-á a saber trabalhar melhor que os outros. Todo povo preguiçoso é grave, pois os que não trabalham se consideram como soberanos dos que trabalham. Examinai todos os povos e vereis que, na maioria, a gravidade, o orgulho e a indolência marcham na mesma cadência. Os povos de Achim são orgulhosos e indolentes; os que não possuem escravos alugam um, mesmo que seja para andar cem passos e carregar duas pintas de arroz; considerar-se-iam desonrados se eles próprios as carregassem. Há vários lugares da terra em que se deixa crescer as unhas para mostrar que não se trabalha. As mulheres das Índias creem que lhes é vergonhoso aprender a ler; esse assunto, dizem elas, cabe aos escravos que entoam cânticos nos pagodes. Numa casta, elas não fiam; em outra, apenas fazem cestos e esteiras, não devendo mesmo pilar o arroz; em outras, não devem buscar água. O orgulho, aí, estabeleceu suas regras e faz com que sejam obedecidas. Não é necessário dizer que as qualidades morais têm efeitos diferentes segundo estejam unidas a outras. Assim, o orgulho, unido a uma grande ambição, à grandeza de ideias etc., produziu entre os romanos o resultado que conhecemos. CAPÍTULO X Do caráter dos espanhóis e dos chineses Os diversos caracteres dos povos estão mesclados de virtudes e de vícios, de boas e más qualidades. As misturas felizes são aquelas que produzem grandes benefícios que frequentemente não seriam suspeitados; há misturas das quais resultam grandes males, que muito menos seriam suspeitados. A boa-fé dos espanhóis sempre foi famosa. Justino fala-nos de sua fidelidade em guardar os depósitos; muitas vezes, morreram para mantê-los secretos. Esta fidelidade que outrora possuíam, ainda hoje a conservam. Todos os povos que comerciam em Cádiz confiam suas fortunas aos espanhóis e nunca se arrependeram. Mas essa qualidade admirável, unida à preguiça, forma uma mistura cujo resultado lhes é pernicioso: os povos da Europa fazem, sob seus olhos, todo o comércio de sua monarquia. O caráter dos chineses forma outra mistura que está em contraste com o caráter dos espanhóis. Sua vida precária faz com que tenham uma atividade prodigiosa e um desejo de lucro tão grande que nenhum povo comerciante pode fiar-se neles. Esta reconhecida infidelidade conservou-lhes o comércio com o Japão; nenhum comerciante europeu ousou empreendê-lo sob o nome deles, qualquer que fosse a facilidade que para isso tivesse, através de suas províncias marítimas do Norte. CAPÍTULO XI Reflexão Não disse tudo isso para diminuir em nada a distância infinita que há entre os vícios e as virtudes; que Deus não permita! Pretendi somente mostrar como todos os vícios políticos não são vícios morais, e como todos os vícios morais não são vícios políticos, e é isso que não devem ignorar os que fazem leis que afetam o espírito geral. CAPÍTULO XII Das maneiras e dos costumes no Estado despótico É máxima capital nunca mudar os costumes e as maneiras no Estado despótico; nada ocorreria tão prontamente como uma revolução. É que, nesses Estados, não há leis, por assim dizer; há somente costumes e maneiras e, se derrubardes isso, derrubareis tudo. As leis são estabeleci das, os costumes são inspirados; estes concernem mais ao espírito geral; aquelas a uma instituição particular; ora, é tão perigoso, e mesmo mais, destruir o espírito geral quanto modificar uma instituição particular. Comunica-se menos nos países em que cada um, tanto o superior como o inferior, exerce e suporta um poder arbitrário, do que nos países em que a liberdade reina em todas as condições. Portanto, modificam-se menos as maneiras e os costumes. As maneiras mais fixas aproximam-se mais das leis. Assim, cumpre que um príncipe ou um legislador aí contrarie menos os costumes e as maneiras do que em qualquer outro país. As mulheres são geralmente enclausuradas e não têm opinião a emitir. Em outros países em que vivem com os homens, o desejo que têm de agradar, e o desejo que também se tem de agradá-las, fazem com que se mude constantemente de maneiras. Os dois sexos estragam-se mutuamente, perdendo ambos sua qualidade distintiva e essencial; surge um arbitrário no que era absoluto, e as maneiras transformam-se diàriamente. CAPÍTULO XIII Das maneiras dos chineses Mas é na China que as maneiras são indestrutíveis. Além de serem as mulheres absolutamente separadas dos homens, nas escolas ensinam-se tanto as maneiras como os costumes. Conhece-se um letrado pela maneira como ele faz a reverência. Essas coisas, uma vez transmitidas como preceitos e por circunspectos doutores, fixam-se como princípios de moral e não mudam mais. CAPÍTULO XIV Quais são os meios naturais de mudar os costumes e as maneiras de uma nação Dissemos que as leis eram instituições particulares e exatas do legislador e os costumes e as maneiras, instituições da nação em geral. Disso decorre que, quando se quer modificar os costumes e as maneiras, não é com leis que se deve modifica-los: isto pareceria muito tirânico; é melhor modificá-los por outros costumes e outras maneiras. Assim, quando um príncipe pretende introduzir grandes modificações em sua nação, cumpre que reforme por leis o que está estabelecido por leis, e que modifique por novas maneiras o que está estabelecido pelas maneiras. A lei que obrigava os moscovitas a raspar a barba e encurtar as roupas, e a violência de Pedro I, que mandava aparar até os joelhos os trajes compridos dos que entravam na cidade, eram tirânicas. Há meios para impedir os crimes: as penas; há outros para acarretar a mudança das maneiras: os exemplos. A facilidade e a rapidez com que essa nação se policiou demonstrou bem que esse príncipe lhe tinha péssima opinião e que esses povos não eram animais, como ele dizia. As medidas violentas que empregou eram inúteis; ele teria igualmente atingido seu objetivo pela brandura. Ele próprio experimentou a facilidade dessas modificações. As mulheres eram enclausuradas e, de certa maneira, escravizadas; ele as atraiu à corte, fê-las vestirem-se à moda alemã, enviou-lhes tecidos. Este sexo experimentou então uma maneira de viver que agradava muito fortemente seu gosto, sua vaidade e suas paixões, e fez com que os homens também a apreciassem. O que tornou a transformação mais fácil foi o fato de os costumes de então serem estranhos ao clima, e haverem sido para aí levados por uma mistura de nações e pelas conquistas. Pedro I, impondo os costumes e as maneiras da Europa a uma nação da Europa, encontrou facilidades que ele próprio não esperava. A supremacia do clima é a primeira de todas as supremacias. Portanto, ele não necessitava de leis para modificar os costumes e as maneiras de seu povo: ter-lhe-ia sido suficiente inspirar outros costumes e outras maneiras. Em geral, os povos são muito apegados a seus costumes; suprimir-lhos violentamente é torná-los infelizes. Não se deve, assim, modificá-los, mas fazer com que eles próprios os modifiquem. Toda pena que não deriva da necessidade é tirânica. A lei não é um puro ato de poder; as coisas indiferentes por sua natureza não são de sua alçada. CAPÍTULO XV Influência do governo doméstico na política Tais mudanças nos costumes das mulheres indubitàvelmente influenciará muito o governo da Moscóvia. Tudo está estreitamente relacionado: o despotismo do príncipe relaciona-se naturalmente com a servidão das mulheres; a liberdade das mulheres, com o espírito da monarquia. CAPÍTULO XVI Como alguns legisladores confundiram os princípios que governam os homens Os costumes e as maneiras são práticas que as leis não estabeleceram, ou não puderam, ou não quiseram estabelecer. Há esta diferença entre as leis e os costumes: as leis regem mais as ações do cidadão e os costumes regem mais as ações do homem. Há esta diferença entre os costumes e as maneiras: as primeiras concernem mais à conduta interior e as outras à exterior. Algumas vezes, num Estado, essas coisas confundem-se. Licurgo fez um mesmo código para as leis, os costumes e as maneiras; e os legisladores da China também fizeram o mesmo. Não nos devemos admirar se os legisladores da Lacedemônia e os da China confundiram as leis, os costumes e as maneiras. É que os costumes representam as leis, e as maneiras representam os costumes. Os legisladores da China tinham como objetivo principal fazer com que o povo vivesse tranquilo. Queriam que os homens muito se respeitassem, que cada qual sentisse a todo instante que muito devia aos demais e que não existia cidadão que não dependesse, de algum modo, de outro. Eles deram, portanto, às regras da civilidade, o maior alcance. Assim, entre os povos chineses, viu-se aldeões observarem entre si cerimônias como pessoas de elevada condição; meio muito próprio para inspirar a brandura, para manter entre o povo a paz e a boa ordem, e para extirpar todos os vícios que decorrem de um espírito inflexível. Com efeito, despojar-se das regras da civilidade não significa procurar uma maneira de colocar os defeitos mais à vontade? A civilidade vale mais, a esse respeito, do que a polidez. A polidez favorece os vícios dos outros e a civilidade impede-nos de revelar os nossos: é uma barreira que os homens colocam entre si para se impedirem de se corromper. Licurgo, cujas instituições eram severas, não teve como objetivo a civilidade quando formou as maneiras; tinha em mira este espírito belicoso que pretendia incutir em seu povo. Pessoas que estão sempre corrigindo, ou que são sempre corrigi das, que instruem sempre e que são sempre instruídas, ao mesmo tempo simples e rudes, praticariam mais entre si as virtudes, do que teriam considerações. CAPÍTULO XVII Propriedade particular ao governo da China Os legisladores da China fizeram mais; confundiram a religião, as leis, os costumes e as maneiras: tudo isso foi a moral, tudo isso foi a virtude. Os preceitos concernentes a esses quatro pontos foram chamados ritos. Foi na estrita observância desses ritos que o governo chinês triunfou. Passaram toda sua vida aprendendo-os e toda a sua vida praticando-os. Os letrados ensinaram-nos, os magistrados pregaram-nos. E, como eles envolviam todas as pequenas ações da vida, logo que se encontrou o meio de fazer com que eles fossem estritamente observados, a China foi bem governada. Duas coisas puderam gravar fàcilmente os ritos no coração e no espírito dos chineses: uma, a maneira de escrever extremamente complexa que fez com que, durante uma grande parte de sua vida, o espírito estivesse ocupado unicamente com esses ritos, porque era necessário aprender a ler nos livros e pelos livros que os continham; outra, porque os preceitos dos ritos, nada tendo de espiritual, mas sendo simplesmente regras de uma prática comum, convencem e impressionam mais fàcilmente os espíritos do que uma coisa intelectual. Os príncipes que, em lugar de governar pelos ritos, governaram pela força dos suplícios, quiseram que os suplícios fizessem o que não está no seu poder, ou seja, impor os costumes. Os suplícios efetivamente eliminarão da sociedade um cidadão que, tendo perdido os bons costumes, viola as leis. Mas se todos perderem seus bons costumes, restabelecê-los-ão eles? Os suplícios suprimirão, de fato, várias consequências do mal geral, mas não corrigirão esse mal. Desta maneira, quando se abandonaram os princípios do governo chinês, quando a moral desapareceu, o Estado mergulhou na anarquia, e viram-se revoluções. CAPÍTULO XVIII Consequência do capítulo precedente Disso resulta que a China não perde suas leis pela conquista. As maneiras, os costumes, as leis, a religião, sendo nesse país a mesma coisa, não se pode mudar tudo isso ao mesmo tempo. E como é necessário que o vencedor ou o vencido mudem, na China foi sempre o vencedor que mudou, porque seus costumes, não sendo suas maneiras; suas maneiras, suas leis; suas leis, sua religião, tem sido mais fácil ao vencedor dobrar-se paulatinamente ao povo vencido, do que o povo vencido a ele. Disso também decorre uma coisa bem triste: é quase impossível ao cristianismo implantar-se na China. Os votos de castidade, a reunião das mulheres nas igrejas, sua comunicação necessária com os ministros da religião, sua participação nos sacramentos, a confissão auricular, a extrema-unção, a monogamia, tudo isso aniquila os costumes e as maneiras do país, atingindo também, ao mesmo tempo, a religião e as leis. A religião cristã, pelo estabelecimento da caridade, por um culto público, pela participação nos mesmos sacramentos, parece exigir que tudo se una; os ritos dos chineses parecem ordenar que tudo se separe. E, como vimos que a separação diz respeito, em geral, ao espírito do despotismo, encontrar-se-á nisso uma das razões que fazem com que o governo monárquico e todo governo moderado se entrosem melhor com a religião cristã. CAPÍTULO XIX Como se efetuou entre os chineses a união da religião, das leis, dos costumes e das maneiras. Os legisladores da China tiveram como principal objetivo do governo a tranquilidade do império. A subordinação pareceu-lhes a maneira mais adequada para mantê-la. Nessa ideia, acreditaram dever inspirar o respeito pelos pais e, para isso, congregaram todas as suas forças. Estabeleceram uma infinidade de ritos e de cerimônias para honrá-los durante sua vida e depois de sua morte. Era impossível honrar tanto os pais falecidos sem honrá-los quando vivos. As cerimônias para os pais falecidos relacionavam-se mais à religião; as cerimônias para os pais vivos relacionavam-se mais às leis, aos costumes e às maneiras, mas isso não era senão as partes de um mesmo código e esse código era muito extenso. O respeito pelos pais estava necessàriamente relacionado a tudo que os pais representavam: os anciãos, os senhores, os magistrados, o imperador. Esse respeito pelos pais supunha uma reciprocidade do amor pelos filhos e, consequentemente, a mesma reciprocidade dos anciãos aos jovens, dos magistrados aos que lhes estavam submetidos, do imperador aos seus súditos. Tudo isso formava os ritos, e esses ritos o espírito geral da nação. Notaremos a relação que podem ter, com a constituição fundamental da China, as coisas que parecem mais indiferentes. Esse império está baseado na ideia do governo de uma família. Se diminuirdes a autoridade paterna ou mesmo se reduzirdes as cerimônias que expressam o respeito que se tem por ela, enfraquecereis o respeito pelos magistrados, que são considerados como pais. Os magistrados não mais terão o mesmo desvelo para com povos aos quais devem considerar como crianças; a relação de amor que existe entre o príncipe e os súditos também desaparecerá pouco a pouco. Eliminai uma dessas práticas e abalareis o Estado. É muito indiferente, em si mesmo, que todas as manhãs uma nora se levante para ir cumprir esses ou aqueles deveres à sogra. Porém, se prestarmos atenção ao fato de que essas práticas exteriores despertam sem cessar um sentimento que é necessário imprimir em todos os corações e que irá, em todos os corações, formar o espírito que governa o império, veremos que é necessário que tal ação particular seja efetuada. CAPÍTULO XX Explicação de um paradoxo sobre os chineses O que há de singular é que os chineses, cuja vida é inteiramente dirigi da pelos ritos, sejam, entretanto, o povo mais velhaco da terra. Isso se manifesta sobretudo no comércio, que nunca lhes pôde inspirar a boa-fé que lhe é própria. Quem compra deve levar sua própria balança, tendo cada negociante três delas: uma pesada, para comprar; uma leve, para vender, e uma exata, para os que estão prevenidos. Creio poder explicar essa contradição. Os legisladores da China tiveram dois objetivos: pretenderam que o povo fosse submisso e pacífico e que fosse diligente e trabalhador. Pela natureza do clima e do solo, ele tem uma vida precária; aí só se está com a vida assegurada à força de indústria e de trabalho. Quando todos obedecem e todos trabalham, o Estado encontra-se numa feliz situação. Foi a necessidade, e talvez a natureza do clima, que deu a todos os chineses uma avidez inconcebível pelo ganho, e as leis não pensaram em detê-lo, Tudo foi proibido quando se tratou de adquirir pela violência; tudo foi permitido quando se tratou de obter pelo artifício ou pela indústria. Não comparemos, portanto, a moral dos chineses com a da Europa. Todos, na China, tiveram que estar atentos ao que lhes era útil. Se o tratante vela por seus interesses, o que é simplório deve cuidar dos seus. Na Lacedemônia, era permitido roubar; na China, é permitido ludibriar. CAPÍTULO XXI Como as leis devem ser relativas aos costumes e às maneiras Somente instituições singulares confundem assim coisas naturalmente separadas: as leis, os costumes e as maneiras; mas, apesar de serem separadas, não deixam de manter entre si estreitas relações. Perguntou-se a Sólon se as leis que ele dera aos atenienses eram as melhores: "Dei-lhes, respondeu ele, as melhores que podiam suportar". Belas palavras, que deveriam ser ouvidas por todos os legisladores. Quando a sabedoria divina diz ao povo judeu: "Dei-vos preceitos que não são bons", isso significa que tinham apenas uma bondade relativa, o que é a esponja de todas as dificuldades que se pode fazer quanto às leis de Moisés. CAPÍTULO XXII Continuação do mesmo assunto Quando um povo possui bons costumes, as leis devem ser simples. Platão diz que Radamante, que governava um povo extremamente religioso, expedia todos os processos com celeridade, deferindo somente o juramento para cada chefe. Mas, diz o mesmo Platão, quando um povo não é religioso, somente se pode fazer uso do juramento nas ocasiões em que quem jura não é interessado, como um juiz e testemunhas. CAPÍTULO XXIII Como as leis seguem os costumes Na época em que os costumes de Roma eram puros, não havia lei específica contra o peculato. Quando esse crime começou a aparecer, acharam-no tão infame que ser condenado a restituir o que se tomara, foi considerado como um grande castigo, tal como o testemunha o julgamento de Cipião. CAPÍTULO XXIV Continuação do mesmo assunto As leis que dão a tutela à mãe concedem maior atenção à conservação da pessoa do pupilo; as que a dão ao herdeiro mais próximo concedem maior atenção à conservação dos bens. Entre os povos cujos costumes estão corrompidos, é melhor dar a tutela à mãe. Entre os povos em que as leis devem confiar nos costumes dos cidadãos, dá-se a tutela ao herdeiro dos bens, ou à mãe, e algumas vezes a ambos. Se refletirmos sobre as leis romanas, veremos que seu espírito é conforme ao que afirmo. Na época em que se fez a lei das Doze Tábuas, os costumes de Roma eram admiráveis. Concedeu- se a tutela ao parente mais próximo do pupilo, imaginando-se que quem tivesse o encargo da tutela deveria ter a vantagem da sucessão. Nem se pensava que a vida do pupilo pudesse estar em perigo, apesar de estar colocada entre as mãos daqueles a quem sua morte deveria ser útil. Mas quando em Roma os costumes mudaram, viram-se legisladores mudar também de maneira de pensar. "Se, na substituição pupilar, afirmam Caio e Justiniano, o testador teme que o substituto arme ciladas ao pupilo, ele pode deixar a descoberto a substituição vulgar, e colocar a pupilar numa parte do testamento que só poderá ser aberta depois de certo tempo." Eis temores e precauções desconhecidos dos primeiros romanos. CAPÍTULO XXV Continuação do mesmo assunto A lei romana dava liberdade de se fazerem donativos antes do casamento; depois do casamento, não o permitia mais. Isso estava baseado nos costumes dos romanos, que só eram levados ao casamento pela frugalidade, simplicidade e modéstia, mas que podiam se deixar seduzir pelos carinhos domésticos, pelos desvelos e pela felicidade de toda uma vida. A lei dos visigodos determinava que o esposo não pudesse oferecer àquela que deveria desposar além de um décimo de seus bens e que, durante o primeiro ano de casamento, nada lhe poderia dar. Isso decorria também dos costumes do país. Os legisladores quiseram sustar essa jactância espanhola, inclinada unicamente a liberalidades excessivas num ato de ostentação. Os romanos, por suas leis, sustaram alguns inconvenientes do império mais durável do mundo, que é o da virtude. Os espanhóis, pelas suas, queriam impedir os maus efeitos da mais frágil tirania do mundo, que é a da beleza. CAPÍTULO XXVI Continuação do mesmo assunto A lei de Teodósio e de Valentiniano extraiu as causas do repúdio dos antigos costumes e das maneiras dos romanos. Ela incluiu no número dessas causas o gesto de um marido que castiga a esposa de maneira indigna de uma pessoa ingênua. Essa causa foi omitida nas leis seguintes: é que os costumes, a esse respeito, tinham mudado, tendo os costumes orientais substituído os da Europa. O primeiro eunuco da imperatriz, esposa de Justiniano Segundo, ameaçou, diz a História, de lhe aplicar o castigo com o qual se punem as crianças nas escolas. Somente costumes estabelecidos ou costumes que procuram estabelecer-se permitem imaginar semelhante coisa. Vimos como as leis acompanham os costumes; veremos agora como os costumes acompanham as leis. CAPÍTULO XXVII Como as leis podem contribuir para formar os costumes, as maneiras e o caráter de um povo. Os costumes de um povo escravo fazem parte de sua servidão; os de um povo livre fazem parte de sua liberdade. Referi-me, no livro XI, a um povo livre; apresentei os princípios de sua constituição. Vejamos os efeitos deles decorrentes, o caráter que se formou e as maneiras que deles resultaram. Não afirmo que o clima não produza, em grande parte, as leis, os costumes e as maneiras dessa nação, mas sim que os costumes e as maneiras desta nação deveriam ter estreita relação com as suas leis. Como haveria, neste Estado, dois poderes visíveis - o poder legislativo e o executivo - e como todo cidadão teria sua vontade própria e faria valer a seu bel-prazer sua independência, a maioria das pessoas teria mais afeição por um desses poderes do que por outro, não tendo a grande maioria, geralmente, suficiente equidade nem discernimento para simpatizar igualmente com ambos. E, como o poder executivo, dispondo de todos os empregos, poderia dar grandes esperanças e nunca temores, todos os que dele obtivessem algo seriam levados a voltar-se para seu lado, e ele poderia ser atacado por todos os que dele nada esperassem. Sendo aí livres todas as paixões, o ódio, a inveja, o ciúme, a febre de enriquecer e se distinguir, surgiriam em toda sua amplidão; e, se isso ocorresse de outro modo, o Estado seria como um homem derrotado pela doença, que não tem paixões porque não tem força. O ódio que existiria entre as duas partes prolongar-se-ia, porque seria sempre impotente. Sendo esses partidos compostos de homens livres, se um adquirisse muita preponderância, as consequências da liberdade fariam com que este fosse rebaixado, enquanto os cidadãos, como mãos que socorrem um corpo, viriam levantar o outro. Como cada cidadão, sempre independente, obedeceria muito a seus caprichos e fantasias, mudar-se-ia frequentemente de partido; abandonar-se-ia um, onde se deixaria a todos os amigos, para se ligar ao outro no qual se encontraria a todos os inimigos e, amiúde, nesta nação, poder-se-ia esquecer as leis da amizade e as do ódio. O monarca estaria no caso dos cidadãos e, contra as máximas ordinárias da prudência, seria constantemente obrigado a confiar nos que mais o tivessem ofendido e infelicitar os que melhor o tivessem servido, fazendo por necessidade o que os outros príncipes fazem deliberadamente. Tememos ver escapar um bem que percebemos, que quase não conhecemos e que pode nos ser disfarçado; e o temor sempre amplia os objetos. O povo inquietar-se-ia com sua situação e acreditaria estar em perigo mesmo nos momentos mais estáveis. Tanto mais que os que se oporiam mais ardorosamente ao poder executivo, não podendo confessar os motivos de sua oposição, aumentariam o terror do povo, que nunca saberia exatamente se estaria ou não em perigo. Porém, isso mesmo contribuiria para lhe fazer evitar os verdadeiros perigos a que poderia, consequentemente, ser exposto. Mas tendo o corpo legislativo a confiança do povo e sendo mais esclarecido que ele, poderia fazê-lo esquecer as más impressões que lhe teriam sido inculcadas, e acalmar seus movimentos. É esta a grande vantagem que teria esse governo com relação às antigas democracias, nas quais o povo tinha um poder imediato, pois, quando os oradores agitavam, essas agitações alcançavam sempre seus objetivos. Assim, quando os terrores incutidos não tivessem um objetivo certo, eles só produziriam vãos clamores e injúrias, e teriam mesmo esse bom efeito: distenderiam todas as molas do governo e manteriam atentos os cidadãos. Mas se eles nascessem por ocasião do desmoronamento das leis fundamentais, seriam surdos, funestos, atrozes e produziriam catástrofes. Logo se veria uma horrenda calmaria, durante a qual tudo se reuniria contra o poder violador das leis. Se, no caso em que as inquietações não têm um objeto preciso, alguma potência estrangeira ameaçasse o Estado e colocasse em perigo sua glória ou sua fortuna, então, os interesses mesquinhos, cedendo lugar aos maiores, tudo se reuniria em favor do poder executivo. Porque, se as disputas surgissem por ocasião da violação das leis fundamentais e se uma potência estrangeira aparecesse, haveria uma revolução que não mudaria a forma de governo, nem sua constituição, uma vez que as revoluções que asseguram a liberdade não são mais que uma confirmação da liberdade. Um povo livre pode ter um libertador; um povo subjugado só pode ter um opressor, pois todo homem que tem força suficiente para expulsar quem já é senhor absoluto num Estado, a possui suficiente para tornar-se ele próprio senhor absoluto. Como, para fruir da liberdade, cumpre que todos possam dizer o que pensam, e como, para conservá-la, é também necessário que todos possam dizer o que pensam, um cidadão, nesse Estado, diria e escreveria tudo o que as leis não lhe proíbem expressamente dizer ou escrever, Esta nação, sempre exaltada, poderia mais fàcilmente ser conduzida por suas paixões do que pela razão, que nunca produz grandes efeitos sobre o espírito dos homens, e seria fácil aos que governam fazê-la agir contra seus verdadeiros interesses. Esta nação amaria prodigiosamente sua liberdade, porque esta liberdade seria verdadeira e poderia acontecer que, para defendê-la, ela sacrificasse seus bens, sua comodidade, seus interesses; que ela se sobrecarregasse de impostos tão pesados e tão numerosos que o príncipe mais absoluto não ousaria fazer com que seus súditos suportassem. Mas, como ela teria um conhecimento certo da necessidade de se submeter, como pagaria na esperança bem fundada de não mais pagar, os encargos seriam mais pesados que o sentimento desses encargos, ao passo que há Estados em que o sentimento está infinitamente acima do mal. Teria crédito garantido, porque emprestaria e pagaria a si própria. Poderia ocorrer que ela empreendesse acima de suas forças naturais, e faria valer contra seus inimigos imensas riquezas fictícias, que a confiança e a natureza de seu governo tornariam reais. Para conservar sua liberdade, esta nação emprestaria a seus súditos, que veriam que seu crédito estaria perdido se fosse conquistada e teriam um novo motivo de envidar esforços para defender sua liberdade. Se esta nação habitasse uma ilha, não seria conquistadora, porque as conquistas separadas a enfraqueceriam. Se o solo desta ilha fosse bom, seria ainda menos conquistadora, porque não teria necessidade de guerra para enriquecer-se. E, como nenhum cidadão dependeria de outro, cada um daria mais importância à sua liberdade do que à glória de alguns cidadãos, ou de um só deles. Ali considerar-se-iam os militares como pessoas de um ofício que pode ser útil e muitas vezes perigoso, como pessoas cujos serviços são laboriosos para o próprio povo, e as qualidades civis seriam mais consideradas. Esta nação, que a paz e a liberdade tornariam abastada, liberta dos preconceitos destruidores, seria levada a tornar-se comerciante. Se possuísse qualquer dessas mercadorias primitivas, que servem para fazer essas coisas às quais a mão do operário confere um preço, poderia fazer estabelecimentos adequados para obter a fruição desse dom do céu em toda sua extensão. Se esta nação fora situada para o norte, e se tivesse um grande número de gêneros supérfluos, como também lhe faltaria um grande número de mercadorias que seu clima recusaria, estabeleceria um comércio necessário, mas grande, com os povos do sul, e, escolhendo os Estados que favoreceria com um comércio vantajoso, faria tratados reciprocamente úteis com a nação que tivesse escolhido. Num Estado em que, de um lado, a opulência fosse extrema e, de outro, os impostos excessivos, quase não se poderia viver sem indústria com uma fortuna limitada. Muitas pessoas, sob pretexto de viagens ou de saúde, exilar-se-iam e procurariam a abundância até em países de servidão. Uma nação comerciante tem um número prodigioso de pequenos interesses particulares; pode, portanto, ofender e ser ofendida de uma infinidade de maneiras. Isso a tornaria soberanamente invejosa e se afligiria mais com a prosperidade dos outros, do que desfrutaria a sua. E suas leis, aliás amenas e fáceis, poderiam ser tão rígidas a respeito do comércio e da navegação que nela se fizessem que pareceria negociar apenas com inimigos. Se esta nação estabelecesse colônias longínquas, fá-lo-ia antes para ampliar seu comércio do que sua dominação. Como prefere estabelecer em outros lugares o que se encontra estabelecido em casa, daria ao povo de suas colônias a forma de seu próprio governo e esse governo, trazendo consigo a prosperidade, veria formarem-se grandes povos nas próprias florestas que mandasse habitar. Poderia acontecer que ela tivesse outrora subjugado uma nação vizinha que, por sua situação, pela qualidade de seus portos, pela natureza de suas riquezas, lhe causasse inveja. Assim, apesar de que lhe tivesse outorgado suas próprias leis, mantê-la-ia numa grande dependência, de modo que os cidadãos seriam livres, mas o próprio Estado seria escravo. O Estado conquistado teria um governo civil muito bom, mas seria oprimido pelo governo das gentes, e ser-lhe-iam impostas leis de nação para nação, que seriam tais que sua prosperidade não seria senão precária, e somente como depósito para um senhor. Habitando a nação dominadora uma grande ilha, e possuindo um comércio muito desenvolvido, teria todo tipo de facilidades para possuir uma força naval, e como a preservação de sua liberdade exigiria que ela não possuísse nem praças, nem fortaleza, nem exército, teria necessidade de uma armada que a garantisse contra invasões, e sua marinha seria superior à de todas as outras potências que, tendo necessidade de aplicar suas finanças para a guerra terrestre, não as teria em quantidade suficiente para a guerra marítima. O império do mar sempre deu aos povos que o possuíram um orgulho natural porque, sentindo-se capazes de atacar, acreditam que seu poder não possui outros limites que o oceano. Esta nação poderia ter uma grande influência nos negócios de seus vizinhos, pois, como não utilizaria seu poderio para conquistar, procuraria mais sua amizade, e temer-se-ia mais seu ódio do que a inconstância de seu governo e sua agitação interna não pareceriam permitir. Assim, seria destino do poder executivo ser quase sempre perturbado internamente, e respeitado externamente. Se acontecesse de esta nação tornar-se em algumas ocasiões o centro das negociações da Europa, a elas traria um pouco mais de probidade e de boa-fé do que as outras, porque sendo seus ministros frequentemente obrigados a justificar sua conduta diante de um conselho popular, suas negociações não poderiam ser secretas, e eles seriam forçados a ser, a esse respeito, um pouco mais honestos. Demais, como seriam, de algum modo, fiadores dos acontecimentos que uma conduta fraudulenta poderia originar, o mais seguro para eles seria seguir o caminho reto. Se os nobres tivessem tido, em alguns períodos, um poder imoderado na nação, e se o monarca tivesse encontrado o meio de submetê-los enaltecendo o povo, o ponto extremo da servidão estaria entre o momento da queda dos poderosos e o momento em que o povo tivesse começado a sentir seu poder. Poderia acontecer que essa nação, tendo estado outrora submetida a um poder arbitrário, tivesse, em muitas ocasiões, conservado o modelo, de modo que, sobre a base de um governo livre, ver-se-ia, amiúde, a forma de um governo absoluto. Relativamente à religião, como nesse Estado cada cidadão teria sua vontade própria, e seria, consequentemente, guiado por suas próprias luzes, ou por seus caprichos, aconteceria que ou cada cidadão seria muito indiferente a todas as formas de religião, quaisquer que fossem elas, mediante o que todos seriam levados a abraçar a religião dominante, ou se zelaria pela religião em geral, mediante o que as seitas se multiplicariam. Não seria impossível existirem, nesta nação, pessoas que não tivessem religião e que, entretanto, não poderiam tolerar que as obrigassem a mudar a que tivessem, caso tivessem uma, porque sentiriam inicialmente que a vida e os bens, tanto como sua maneira de pensar, não mais lhes pertenciam, e que quem pode arrebatar os primeiros, pode ainda mais fàcilmente suprimir a segunda. Se, entre as diferentes religiões, existisse uma cujo estabelecimento tivesse sido tentando por intermédio da escravidão, ela seria odiosa, pois, como julgamos as coisas pelas relações e pelos acessórios que nelas introduzimos, aquela jamais se apresentaria ao espírito unida à ideia de liberdade. As leis contra os que professassem esta religião não seriam sanguinárias, porque a liberdade não imagina esses tipos de penas, mas seriam tão repressoras que ocasionariam todo mal que se pode fazer a sangue frio. Poderia acontecer de mil maneiras que o clero desfrutasse de tão pouco crédito que os outros cidadãos o tivessem mais. Assim, em lugar de se separar, acharia melhor suportar os mesmos encargos que os leigos, formando apenas, a esse respeito, um mesmo corpo. Mas, como procuraria sempre atrair o respeito do povo, distinguir-se-ia por uma vida mais retirada, uma conduta mais reservada e costumes mais puros. Não podendo este clero proteger a religião, nem por ela ser protegido, sem força para coagir, procuraria persuadir e veríamos saírem de sua pena obras excelentes, para provar a revelação e a providência do Grande Ser. Poderia acontecer que se evitassem suas assembleias e que não se quisesse permitir que ele corrigisse seus próprios abusos; e que, por um delírio de liberdade, se preferisse deixar sua reforma imperfeita do que suportar que ele fosse o reformador. As dignidades, fazendo parte da constituição fundamental, seriam mais fixas do que alhures. Porém, de outro lado, os poderosos, neste país de liberdade, aproximar-se-iam mais do povo; as ordens seriam portanto mais separadas e as pessoas mais próximas. Tendo os que governam um poder que se renova, por assim dizer, e se refaz todos os dias, teriam mais consideração pelos que lhes são úteis do que pelos que os divertem. Assim, ver-se-iam poucos cortesãos, bajuladores, aduladores, enfim toda sorte de pessoas que fazem pagar aos grandes o próprio vazio de seu espírito. Quase não se estimariam os homens pelos talentos ou pelos atributos frívolos, mas pelas qualidades reais e, desse gênero, só há duas: as riquezas e o mérito pessoal. Haveria um luxo sólido, baseado não nos refinamentos da vaidade, mas em suas reais necessidades, e quase só se procurariam nas coisas os prazeres que a natureza nelas inseriu. Desfrutar-se-ia de um grande supérfluo, e entretanto as coisas frívolas seriam proibidas. Assim, muitas pessoas, tendo mais bens do que ocasiões de despesa, os utilizariam de uma estranha maneira e nessa nação ter-se-ia mais espírito do que gosto. Como sempre se estaria ocupado com os próprios interesses, não se teria essa polidez que está baseada na ociosidade, realmente, não se teria tempo para isso. A época da polidez dos romanos é a mesma do estabelecimento do poder arbitrário. O governo absoluto produz a ociosidade, e a ociosidade origina a polidez. Quanto mais gente há numa nação que tem necessidade de ter deferências entre si e não desagradar, mais há polidez. Mas é mais a polidez dos costumes do que a das maneiras que deve nos distinguir dos povos bárbaros. Numa nação em que todo homem, à sua maneira, participa da administração do Estado, as mulheres pouco deveriam imiscuir-se com os homens. Elas seriam, portanto, modestas, ou seja, tímidas. Essa timidez constituiria sua virtude, enquanto os homens, sem galanteria, mergulhariam numa depravação que lhes deixaria toda sua liberdade e lazer. Não sendo as leis feitas para um cidadão mais que para outro, todos se considerariam monarcas, e os homens, nesta nação, seriam antes confederados do que concidadãos. Se o clima tivesse dado a muitas pessoas um espírito inquieto e vistas largas, num país em que a constituição outorgasse a todos uma participação no governo e interesses políticos, falar-se-ia muito de política. Veríamos pessoas que passariam sua vida a calcular os acontecimentos que, considerando-se a natureza das coisas e o capricho da sorte, isto é, dos homens, quase não são suscetíveis de cálculo. Numa nação livre, é frequentemente indiferente que os cidadãos raciocinem bem ou mal; hasta que raciocinem; daí origina-se a liberdade que assegura os resultados desses mesmos raciocínios. Da mesma maneira, num governo despótico, é igualmente pernicioso que se raciocine bem ou mal; é suficiente raciocinar para que o princípio do governo seja atingido. Muitas pessoas não cuidariam de agradar a ninguém; entregar-se-iam ao seu temperamento. A maioria dos que fossem dotados de espírito, seria atormentada por seu próprio espírito: no desdém ou na aversão a todas as coisas, seriam infelizes com tantos motivos para não sê-lo. Nenhum cidadão temendo outro, esta nação seria orgulhosa, porque o orgulho dos reis só está baseado sobre sua independência. As nações livres são soberbas, as outras podem mais facilmente ser vãs. Mas, esses homens tão orgulhosos, vivendo muito consigo mesmos, encontrar-se-iam muitas vezes em meio a pessoas desconhecidas; seriam tímidas, e veríamos neles, a maior parte do tempo, uma estranha mistura de tolo acanhamento e de orgulho. O caráter da nação aparecerá, sobretudo, nas obras de espírito, nas quais ver-se-á pessoas retraídas que as teriam pensado completamente sós. A sociedade ensina-nos a sentir os ridículos; o recolhimento faz-nos mais aptos a sentir os vícios. Seus escritos satíricos seriam impiedosos e encontrar-se-iam muitos Juvenais entre eles, antes de se encontrar um Horácio. Nas monarquias completamente absolutas, os historiadores traem a verdade, porque não têm liberdade para dizê-la. Nos Estados extremamente livres, traem a liberdade por causa da própria liberdade, que sempre produzindo divisões, cada qual se torna tão escravo dos preconceitos de sua facção, como o seria de um déspota. Seus poetas teriam mais frequentemente essa rudeza original da invenção do que certa delicadeza criada pelo gosto. Encontrar-se-ia neles algo que mais se aproximaria da força de Miguel Ângelo do que da graça de Rafael. QUARTA PARTE LIVRO VIGÉSIMO DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O COMÉRCIO, CONSIDERADO EM SUA NATUREZA E EM SUAS DISTINÇÕES INVOCAÇÃO ÀS MUSAS VIRGENS DO MONTE PIÉRIO, escutais O nome que vos dou? Inspirai-me. Percorro um longo caminho; estou sucumbindo com tristezas e tédios. Inseri em meu espírito este encanto e esta doçura que sentia outrora e que fogem para longe de mim. Nunca sois tão divinas como quando conduzis ã sabedoria e â verdade pelo prazer. Mas se não pretendeis amenizar o rigor de meus trabalhos, ocultai o próprio trabalho; fazei com que seja instruído e com que eu não ensine; que reflita e que pareça sentir; e quando eu anunciar coisas novas, fazei com que se creia que eu nada sabia e que vós tudo me dissestes. Quando as águas de vossa fonte saem do rochedo que amais, elas não sobem aos ares para recair; correm nas campinas, fazem vossas delícias porque fazem as delícias dos pastores. Encantadoras Musas, se pousardes sobre mim um só de vossos olhares, todos lerão minha obra, e o que não passaria de recreação será prazer. Musas divinas, sinto que me inspirais, não o que se canta em Tempé nas flautas ou o que se repete em Oelos com a lira; quereis que fale â razão; ela é o mais perfeito, o mais nobre e o mais delicado de nossos sentimentos. CAPÍTULO I DO COMÉRCIO As MATÉRIAS QUE se seguem exigiriam ser tratadas mais amplamente; mas a natureza desta obra não o permite. Desejaria deslizar sobre um rio tranquilo; sou arrastado por uma torrente. O comércio afasta os preconceitos destruidores; e é quase uma regra geral que, onde quer que haja costumes amenos, exista comércio e, onde quer que haja comércio, existam costumes amenos. Não nos espantemos, portanto, se nossos costumes são menos rudes que outrora. O comércio fez com que o conhecimento dos costumes de todas as nações penetrasse em toda parte; compararam-nos mutuamente e disso resultaram grandes benefícios. Pode-se dizer que as leis do comércio aperfeiçoam os costumes, pela mesma razão pela qual estas mesmas leis deturpam os costumes. O comércio corrompe os costumes puros: era esse o assunto das queixas de Platão; civiliza e suaviza os costumes bárbaros, como vemos todos os dias. CAPÍTULO II DO ESPÍRITO DO COMÉRCIO O efeito natural do comércio é trazer a paz. Duas nações que comerciam juntas tornam-se reciprocamente dependentes; se uma tem interesse em comprar, a outra tem em vender; e todas as uniões estão baseadas nas mútuas necessidades. Mas se o espírito de comércio une as nações, não une do mesmo modo os indivíduos. Vemos que nos países em que só se é afetado pelo espírito de comércio trafica-se com todas as ações humanas e com todas as virtudes morais: as menores coisas, as que a humanidade exige, se fazem ou se dão por dinheiro. O espírito de comércio produz nos homens certo sentimento de justiça exata, oposto, de um lado, à pilhagem e, de outro, a essas virtudes morais que fazem com que nem sempre se discutam seus interesses com rigidez e que se possa negligenciá-los pelos dos outros. A ausência total de comércio produz, pelo contrário, a pilhagem, que Aristóteles coloca no número das maneiras de adquirir. O espírito não é oposto a certas virtudes morais: por exemplo, a hospitalidade, muito rara nos países de comércio, encontra-se admiravelmente entre os povos salteadores. É um sacrilégio, entre os germanos, diz Tácito, fechar a casa a um homem, quem quer que ele seja, conhecido ou desconhecido. Quem exerceu? a hospitalidade com relação a um estranho mostrar-lhe-á outra casa onde ela é também praticada, e ele é recebido com a mesma humanidade. Mas, quando os germanos fundaram reinos, a hospitalidade se lhes tomou uma carga. Isso transparece por duas leis do código dos borguinhões, no qual uma lei inflige uma pena a todo bárbaro que mostre a um estrangeiro a casa de um romano; a outra reza que quem receber um estrangeiro será indenizado pelos habitantes, cada um com sua quota-parte. CAPÍTULO III DA POBREZA DOS POVOS Há duas espécies de povos pobres: os que a dureza do governo assim tomou e os que são incapazes de quase toda virtude, porque sua pobreza faz parte de sua servidão; os outros só são pobres porque foram desdenhados, ou porque não conheceram as comodidades da vida; estes podem fazer grandes coisas, porque esta pobreza faz parte de sua liberdade. CAPÍTULO IV DO COMÉRCIO NOS DIVERSOS GOVERNOS O comércio tem relação com a constituição. No governo de um só, é comumente baseado no luxo e, apesar de estar também baseado em suas necessidades reais, seu objetivo primordial é proporcionar, à nação que o faz, tudo o que pode servir a seu orgulho, delícias e fantasias. No governo de muitos, ele é mais amiúde baseado na economia. Os negociantes, que têm em suas vistas todas as nações da terra, levam a uma o que tiram de outra. É assim que as repúblicas de Tiro, de Cartago, de Atenas, de Marselha, de Florença, de Veneza e da Holanda praticaram o comércio. Esta espécie de tráfico relaciona-se ao governo de muitos por sua natureza, e ao monárquico por ocasião. Pois como apenas está fundado sobre a prática de ganhar pouco, e mesmo de ganhar menos que qualquer outra nação e de só se ressarcir ganhando continuamente, é quase impossível que possa ser feito por um povo no qual o luxo está estabelecido, que despende muito e que apenas vê grandes objetos. É nesse espírito que Cícero dizia tão bem: "Não gosto que um mesmo povo seja ao mesmo tempo dominador e distribuidor do universo". Com efeito, cumpriria supor que cada indivíduo, nesse Estado, e mesmo todo o Estado, tivesse sempre a cabeça cheia de grandes projetos e esta mesma cabeça repleta de pequenos projetos: isso é contraditório. Não que, nesses Estados que subsistem pelo comércio de economia, não se façam também os maiores empreendimentos, e que não se tenha uma audácia que não se encontra nas monarquias; eis a razão disso. Um comércio leva a outro: o pequeno ao medíocre, o medíocre ao grande; e quem teve tanto desejo de ganhar pouco se coloca numa situação em que não tem menos desejo de ganhar muito. Demais, os maiores empreendimentos dos negociantes estão sempre necessariamente confundidos com os negócios públicos. Porém, nas monarquias, os negócios públicos são, na maior parte do tempo, tão suspeitos aos comerciantes quanto lhes parecem seguros nos Estados republicanos. Os grandes empreendimentos de comércio não são, portanto, para as monarquias, mas para o governo de muitos. Numa palavra, uma maior certeza de propriedade, que se acredita ter nestes Estados, faz com que tudo se empreenda; e, porque se acredita estar seguro do que se adquiriu, ousa-se expor para adquirir ainda mais; correm-se riscos apenas quanto aos meios de aquisição; ora, os homens esperam muito de sua fortuna. Não quero dizer que exista alguma monarquia que esteja totalmente excluída do comércio de economia; mas, por sua natureza, ela está menos inclinada a isso. Não quero dizer que as repúblicas que conhecemos estejam inteiramente privadas do comércio do luxo, mas este tem menos relação com sua constituição. Quanto ao Estado despótico, é inútil referirmo-nos a ele. Regra geral: numa nação que está na servidão, trabalha-se mais para conservar do que para adquirir. Numa nação livre, trabalha-se mais para adquirir do que para conservar. CAPÍTULO V DOS POVOS QUE FIZERAM O COMÉRCIO DE ECONOMIA MARSELHA, REFÚGIO necessário em meio a um mar tempestuoso; Marselha, lugar onde os ventos, os bancos de areia, a disposição das costas obrigam a atracar, foi frequentada pela gente do mar. A esterilidade de seu território levou seus cidadãos ao comércio de economia. Foi necessário que eles fossem laboriosos, para substituir o que a Natureza lhes recusava, que fossem justos para viver entre as nações bárbaras que deviam fazer sua prosperidade, que fossem moderados, para que seu governo fosse sempre tranquilo, que tivessem, enfim, costumes frugais para que sempre pudessem viver de um comércio que conservariam mais seguramente quanto menos vantajoso fosse. Viu-se em toda parte a violência e as vexações darem nascimento ao comércio de economia, quando os homens foram constrangidos a se refugiar nos pântanos, nas ilhas, nos baixios e até nos escolhos. É assim que Tiro, Veneza e as cidades da Holanda foram fundadas; os fugitivos aí encontraram sua segurança. Cumpria subsistir; eles tiraram sua subsistência de todo o universo. CAPÍTULO VI ALGUNS EFEITOS DE UMA GRANDE NAVEGAÇÃO Sucede, às vezes, que uma nação que pratica o comércio de economia, tendo necessidade de uma mercadoria de um país que lhe fornece recursos para adquirir mercadorias de outro, contenta-se com ganhar muito pouco, e por vezes nada, sobre umas, na esperança ou certeza de ganhar muito sobre as outras. Assim, quando a Holanda comerciava quase sozinha do Sul ao Norte da Europa, os vinhos franceses que ela transportava para o Norte apenas lhe serviam, de alguma maneira, de fundos para fazer seu comércio no Norte. Sabemos que, amiúde, na Holanda, certos gêneros de mercadorias vindas de longe não se vendiam mais caro do que custaram nos lugares onde foram adquiridas. Eis a explicação: um capitão que necessita lastrar seu navio adquirirá mármore; se necessita de madeira para a estivagem, comprá-la-á; e, uma vez que nada perca, acreditará ter feito muito. É assim que a Holanda tem também suas pedreiras e florestas. Não só um comércio que nada rende pode ser útil como um comércio, mesmo desvantajoso, pode sê-lo. Ouvi dizer, na Holanda, que a pesca da baleia, em geral, quase nunca rende o que custa; mas os que foram empregados na construção de barcos, os que forneceram massames, aprestos e víveres são também os que têm o principal interesse nesta pesca. Se perdem na pesca, ganham nos fornecimentos. Este comércio é uma espécie de loteria, e cada qual é seduzido pela esperança de tirar o bilhete premiado. Todos gostam de jogar; os mais sábios jogam voluntariamente quando não veem as aparências do jogo, seus desregramentos, suas violências, suas dissipações, a perda de tempo e mesmo de toda a vida. CAPÍTULO VII ESPÍRITO DA INGLATERRA QUANTO AO COMÉRCIO A Inglaterra quase não mantém tarifa regulamentada com as demais nações; sua tarifa muda, por assim dizer, com cada parlamento, pelos direitos particulares que suprime ou impõe. Quis também conservar sobre isso sua independência. Soberanamente zelosa do comércio que nela se faz, pouco se prende a tratados e apenas depende de suas leis. Outras nações deixaram os interesses políticos sobrepujarem os do comércio; a Inglaterra sempre subordinou os interesses políticos aos de seu comércio. É o povo do mundo que melhor soube prevalecer-se, ao mesmo tempo, dessas três grandes coisas: da religião, do comércio e da liberdade. CAPÍTULO VIII COMO ALGUMAS VEZES SE PERTURBOU O COMÉRCIO DE ECONOMIA Fizeram-se, em certas monarquias, leis adequadas a rebaixar os Estados que fazem o comércio de economia. Proibiram-nos de transportar mercadorias que não fossem produzidas no país; só lhes permitiram traficar com navios da fábrica do país de que provinham. Cumpre que o Estado que impõe essas leis possa facilmente fazer, por si só, o comércio; sem isso, ocasionará a si mesmo um prejuízo igual. É melhor negociar com uma nação que exige pouco - e que as necessidades do comércio tornam, de alguma forma, dependente - do que com uma nação que, pela extensão de seus horizontes ou de seus negócios, sabe onde colocar todas as mercadorias supérfluas; que é rica e pode sobrecarregar-se de muitos gêneros; que os pagará prontamente; que tem, por assim dizer, necessidade de ser fiel; que é, por princípio, pacífica; que procura ganhar e não conquistar; é melhor, dizia eu, negociar com esta nação do que com outras sempre rivais, e que não dariam todas essas vantagens. CAPÍTULO IX DA EXCLUSÃO EM QUESTÃO DE COMÉRCIO A verdadeira máxima é nunca excluir nenhuma nação do comércio sem que para isso haja grandes motivos. Os japoneses só comerciam com duas nações: a chinesa e a holandesa. Os chineses ganham mil por cento sobre o açúcar e, por vezes, outro tanto sobre as devoluções. Os holandeses obtêm quase os mesmos lucros. Toda nação que siga as normas japonesas será necessariamente enganada. A concorrência é que dá um justo preço às mercadorias e que estabelece as verdadeiras relações entre elas. Um Estado deve sujeitar-se ainda menos a vender suas mercadorias a uma só nação, sob pretexto de que esta lhe adquirirá todas a certo preço. Os poloneses, com o trigo, praticaram esse comércio com a cidade de Danzig; vários reis da Índia têm semelhantes contratos para as especiarias com os holandeses. Estas convenções só são adequadas a uma nação pobre, que quer justamente perder a esperança de enriquecer-se, uma vez que tenha uma subsistência assegurada; ou a nações cuja servidão consiste em renunciar ao uso das coisas que a Natureza lhes tinha proporcionado; ou em fazer com estas coisas um comércio desvantajoso. CAPÍTULO X ESTABELECIMENTO PRÓPRIO DO COMÉRCIO DE ECONOMIA Nos estados que fazem o comércio de economia, em boa hora estabeleceram-se bancos que, pelo crédito, formaram novos símbolos de valores. Mas seria um erro transporta-los para Estados que praticam o comércio do luxo. Estabelecê-los em países governados por um só é supor o dinheiro de um lado e o poder de outro: isto é, de um lado, a faculdade de tudo possuir sem nenhum poder e, de outro, o poder sem a faculdade de coisa alguma. Em semelhante governo, nunca existiu um príncipe que tenha possuído, ou que tenha podido possuir um tesouro; e, em toda parte onde há um, desde que seja excessivo, torna-se logo o tesouro do príncipe. Pela mesma razão, as companhias de negociantes que se associam para certo comércio raramente convêm ao governo de um só. A natureza dessas companhias é dar às riquezas particulares a força das riquezas públicas. Mas, nesses Estados, essa força só pode encontrar-se nas mãos do príncipe. Digo mais: elas nem sempre convêm nos Estados onde se faz o comércio de economia; e, se os negócios não são tão grandes a ponto de se acharem abaixo do alcance dos particulares, far-se-á ainda melhor não obstando, por privilégios exclusivos, a liberdade do comércio. CAPÍTULO XI CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Nos estados que praticam o comércio de economia, pode-se estabelecer um porto franco. A economia do Estado, que sempre acompanha a frugalidade dos indivíduos, dá, por assim dizer, alma a seu comércio de economia. O que perde em tributos pelo estabelecimento ao qual nos referimos é compensado pelo que pode extrair da riqueza industriosa da república. Mas, no governo monárquico, semelhantes estabelecimentos seriam contrários à razão; não teriam outro efeito senão o de aliviar o luxo do peso dos impostos. Ficar-se-ia privado do único bem que o luxo pode proporcionar, e do único freio que, em semelhante constituição, ele pode receber. CAPÍTULO XII DA LIBERDADE DE COMÉRCIO A liberdade de comércio não é uma faculdade concedida aos negociantes de fazerem o que querem: isto seria antes sua servidão. O que prejudica o comerciante não prejudica por isso o comércio. É nos países da liberdade que o negociante encontra inumeráveis contradições; e ele nunca é menos obstado pelas leis do que nos países da servidão. A Inglaterra proíbe a exportação de suas lãs; quer que o carvão seja transportado por via marítima para a capital; não permite a exportação de seus cavalos e estes não são castrados; os navios de suas colônias que comerciam na Europa devem fundear na Inglaterra. Ela prejudica o comerciante mas em favor do comércio. CAPÍTULO XIII O QUE DESTRÓI ESTA LIBERDADE Onde há comércio há alfândegas. O objetivo do comércio é a exportação e a importação das mercadorias em favor do Estado, e o objetivo das alfândegas é certo direito sobre essa mesma exportação e importação, também em benefício do Estado. Cumpre, portanto, que o Estado se mantenha neutro entre sua alfândega e seu comércio, e que proceda de maneira que as duas coisas não se interponham; goza-se, então, da liberdade de comércio. A finança destrói o comércio pelas suas injustiças, por suas vexações, pelo excesso do que impõe; mas, independentemente disso, ela o destrói também pelas dificuldades que origina e pelas formalidades que exige. Na Inglaterra, onde as alfândegas estão sob a administração do governo, há singular facilidade em negociar: a palavra escrita resolve os maiores negócios; não é necessário que o comerciante perca um tempo infinito e que possua um caixeiro expressamente para impedir todas as dificuldades dos contratadores ou para a elas submeter-se. CAPÍTULO XIV DAS LEIS DO COMÉRCIO QUE IMPLICAM O CONFISCO DAS MERCADORIAS A grande constituição dos ingleses proíbe que se apreendam e confisquem, em caso de guerra, as mercadorias dos negociantes estrangeiros, exceto como represália. É notável que a nação inglesa tenha feito disso um dos itens de sua liberdade. Na guerra que a Espanha travou com os ingleses, em 1740, ela estabeleceu uma lei que punia com a morte os que introduzissem nos Estados da Espanha mercadorias inglesas; ela infligia a mesma pena aos que levassem a Estados da Inglaterra mercadorias da Espanha. Semelhante ordenação só pode, creio, encontrar modelo nas leis do Japão. Ela choca nossos costumes, o espírito do comércio e a harmonia que deve existir na proporção das penas; ela confunde todas as ideias, transformando em crime de Estado o que não passa de uma violação de polícia. CAPÍTULO XV DA ORDEM DE PRISÃO POR DÍVIDA Sólon ordenou, em Atenas, que não mais houvesse prisões por dívidas civis. Tirou esta lei do Egito; Bochóris a estabelecera e Sesóstris a renovara. Esta lei é muito boa para os negócios civis ordinários; porém temos razão de não observá-la nos do comércio, pois, sendo os negociantes obrigados a confiar grandes somas em prazos amiúde muito curtos, a dá-las e retomá-las, faz-se mister que o devedor salde sempre seus compromissos no prazo determinado, o que supõe a prisão por dívida. Nos negócios que decorrem dos contratos civis ordinários, a lei não deve permitir a prisão por dívida, porque atribui mais importância à liberdade de um cidadão do que ao bem-estar de outro. Mas, nas convenções que derivam do comércio, a lei deve dar mais importância ao bem-estar público do que à liberdade de um cidadão, o que não impede as restrições e as limitações que a humanidade e a boa política podem exigir. CAPÍTULO XVI BELA LEI A lei de Genebra que exclui das magistraturas, e mesmo do ingresso no Grande Conselho, os filhos dos que viveram ou morreram insolventes, salvo se saldarem as dívidas de seus pais, é muito boa. Tem este efeito: dá confiança aos negociantes, aos magistrados e também à própria cidade. A fé particular aqui tem também a força da fé pública. CAPÍTULO XVII LEI DE RODES Os ródios foram mais longe. Sexto Empírico diz que, entre eles, o filho não podia deixar de pagar as dívidas do pai, renunciando à sua sucessão. A lei de Rodes era feita para uma república baseada no comércio. Ora, penso que a razão do próprio comércio deveria introduzir esta limitação: as dívidas contraídas pelo pai depois que o filho tivesse começado a comerciar não afetariam os bens adquiridos por este último. Um comerciante deve sempre conhecer suas obrigações e se conduzir, a cada instante, de acordo com o estado de sua fortuna. CAPÍTULO XVIII DOS JUÍZES PARA O COMÉRCIO Xenofonte, no livro das Rendas, pretendia que se recompensasse aos prefeitos do comércio que expedissem os processos mais rapidamente. Ele sentia a necessidade de nossa jurisdição consular. Os negócios do comércio são muito pouco suscetíveis de formalidades. São ações de cada dia, a que outras da mesma natureza devem seguir cada dia. Cumpre, portanto, que possam ser decididas cada dia. Não ocorre a mesma coisa com as ações da vida que influem muito sobre o futuro, mas que raramente acontecem. Casa-se apenas uma vez; nem todos os dias se fazem doações ou testamentos; atinge-se a maioridade somente uma vez. Platão afirma que, numa cidade em que não há comércio marítimo, basta a metade das leis civis; e isso é muito verdadeiro. O comércio introduz no mesmo país diferentes tipos de povos, um grande número de convenções, de espécies de bens e de maneiras de adquirir. Assim, numa cidade comerciante; há menos juízes e mais leis. CAPÍTULO XIX DE COMO O PRÍNCIPE NÃO DEVE COMERCIAR Teófilo, vendo um navio onde havia mercadorias para sua mulher Teodora, mandou queimá-lo. “Sou imperador", afirmou, "e vós me fazeis dono de galera. Em que poderão as pobres gentes ganhar a vida, se nós também praticamos seu ofício?" Ele poderia ter acrescentado: Quem poderá nos conter se fazemos o monopólio? Quem nos obrigará a cumprir nossos compromissos? O comércio que fazemos, os cortesões desejarão fazê-lo: serão mais ávidos e mais injustos do que nós. O povo confia em nossa justiça mas não confia em nossa opulência; tantos impostos que causam sua miséria são provas exatas da nossa. CAPÍTULO XX CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Quando os portugueses e os castelhanos dominavam nas Índias Orientais, tinha o comércio ramos tão ricos, que seus príncipes não deixaram de arrebatá-los. Isso arruinou seus estabelecimentos nesses lugares. O vice-rei de Goa concedia a particulares privilégios exclusivos. Não se tem confiança em semelhante gente; o comércio é descontinuado pela perpétua mudança daqueles a quem é confiado; ninguém administra este comércio nem se importa em deixá-lo arruinado a seu sucessor; o lucro permanece em mãos de particulares e não se amplia suficientemente. CAPÍTULO XXI DO COMÉRCIO DA NOBREZA NA MONARQUIA É contra o espírito do comércio que, na monarquia, a nobreza o pratique. "Isto seria pernicioso às cidades", diziam os imperadores Honório e Teodósio, "e suprimiria, entre os mercadores e plebeus, a facilidade de comprar e vender”. É contra o espírito da monarquia que a nobreza comercie. O uso que, na Inglaterra, permitiu que a nobreza praticasse o comércio é uma das coisas que mais contribuíram para enfraquecer, neste país, o governo monárquico. CAPÍTULO XXII REFLEXÃO PARTICULAR Pessoas impressionadas pelo que se pratica em alguns Estados pensam que seria necessário que, na França, existissem leis que induzissem os nobres a comerciar. Este seria o meio de destruir a nobreza, sem nenhuma utilidade para o comércio. A prática deste país é muito sábia: os negociantes não são nobres mas podem chegar a sê-lo. Têm a esperança de obter a nobreza sem dela ter o inconveniente atual. Não têm meio mais seguro de sair de sua profissão do que praticá-la bem, ou fazê-la com honra, coisa que está comumente relacionada à suficiência. As leis que ordenam que cada um permaneça em sua profissão, e a transmita aos filhos, não são nem podem ser úteis senão nos Estados despóticos, onde ninguém pode nem deve ter emulação. Que não se diga que cada um seguirá melhor sua profissão quando não puder trocá-la por outra. Afirmo que se praticará melhor a profissão quando os que nela se tiverem distinguido esperarem obter outra. A aquisição que se pode fazer da nobreza a preço de dinheiro encoraja muitos negociantes a se colocarem em situação de adquiri-la. Não examino se se fez bem em dar assim às riquezas o preço da virtude: há governos nos quais isso pode ser muito útil. Na França, este estado de toga que se encontra entre a alta nobreza e o povo; que, sem ter o brilho daquela, possui todos os seus privilégios; este estado que deixa os particulares na mediocridade, enquanto o corpo das leis está na glória; este estado, também, no qual não se tem meio de se distinguir senão pela suficiência e pela virtude; profissão honrada, mas que permite sempre ver uma mais distinguida: esta nobreza, inteiramente guerreira, que pensa que, qualquer que seja o grau de riquezas em que se esteja, cumpre fazer fortuna, mas que é vergonhoso aumentar seu patrimônio se não se começa por dissipá-lo: esta parte da nação, que serve sempre com o capital de seu bem; que, quando está arruinada, dá seu lugar a outra que servirá ainda com seu capital; que vai à guerra para que ninguém ouse dizer que ela aí não esteve; que, quando não pode esperar riquezas, espera as honrarias, e que, quando não as obtém, se consola porque adquiriu honrarias: todas essas coisas têm necessariamente contribuído para a grandeza deste reino. E se, a partir de dois ou três séculos, ela aumentou constantemente seu poderio, faz-se mister atribuir isso à bondade de suas leis, e não à fortuna que não tem essas espécies de constância. CAPÍTULO XXIII A QUE NAÇÕES É DESVANTAJOSA A PRÁTICA DO COMÉRCIO As riquezas consistem em fundos territoriais ou em bens mobiliários: os fundos territoriais de cada país são geralmente possuídos por seus habitantes. A maioria dos Estados tem leis que desinteressam os estrangeiros pela aquisição de suas terras; só mesmo a presença do proprietário as faz valer: este gênero de riquezas pertence, pois, a cada Estado em particular. Mas os bens mobiliários, como o dinheiro, as cédulas, as letras de câmbio, as ações de companhias, navios, todas as mercadorias, pertencem ao mundo inteiro, que, nesta relação, forma apenas um único Estado, do qual todas as sociedades formam membros; o povo que possui a maioria desses bens mobiliários do universo é o mais rico; alguns Estados possuem-nos em grande quantidade; adquiriram-nos, cada um, por seus gêneros, pelo trabalho de seus operários, pela sua indústria, pelas suas descobertas e pelo próprio acaso. A avareza das nações disputa os móveis de todo o universo. Podemos encontrar um Estado tão infeliz que esteja privado dos bens de outros países e mesmo de quase todos os seus: os proprietários dos fundos territoriais não passarão de colonos de estrangeiros. Este Estado será carente de tudo e nada poderá adquirir; melhor seria que não comerciasse com nação alguma do mundo: é o comércio que, nas circunstâncias em que ele se encontra, o conduz à pobreza. Um país que sempre envia menos mercadorias ou gêneros do que recebe, coloca a si mesmo em equilíbrio empobrecendo-se: receberá sempre menos, até que, numa extrema pobreza, nada mais receberá. Nos países de comércio, o dinheiro que subitamente desaparece torna a voltar porque os Estados que o receberam o devem: nos Estados a que nos referimos, o dinheiro nunca retoma, porque os que o adquiriram nada devem. A Polônia servirá aqui de exemplo. Ela não tem quase nenhuma das coisas a que chamamos bens mobiliários do universo, a não ser o trigo de suas terras. Alguns senhores são proprietários de províncias inteiras; eles pressionam os lavradores para ter maior quantidade de trigo para poder enviar ao exterior e obter coisas que o luxo requer. Se a Polônia não comerciasse com nenhuma nação seus povos seriam mais felizes. Os poderosos, que apenas teriam seu trigo, dá-lo-iam aos camponeses para viver; domínios demasiado grandes ser-lhes-iam um fardo; eles reparti-los-iam entre os camponeses; encontrando toda gente peles ou lãs em seus rebanhos, não mais haveria uma imensa despesa a fazer com as vestimentas; os poderosos, que sempre apreciam o luxo, e que só o poderiam encontrar em seu país, estimulariam os pobres ao trabalho. Digo que esta nação seria mais florescente, a menos que se tornasse bárbara, coisa que as leis poderiam prevenir. Consideremos agora o Japão. A quantidade excessiva do que pode receber produz a quantidade excessiva do que pode exportar: as coisas estarão em equilíbrio se a importação e a exportação forem moderadas; e, aliás, esta espécie de excesso acarretaria ao Estado mil vantagens: haveria maior consumo, mais coisas sobre as quais as artes poderiam exercer-se, mais homens empregados, mais meios de adquirir poder; podem ocorrer casos em que se tenha necessidade de um rápido auxílio, que um Estado tão abastado possa dar mais depressa do que outro. É difícil que um país tenha coisas supérfluas, mas é da natureza do comércio tornar úteis as coisas supérfluas, e necessárias as coisas úteis. O Estado poderá, portanto, oferecer as coisas necessárias a um maior número de súditos. Digamos, portanto, que não são as nações que não têm necessidade de nada que perdem ao praticar o comércio; perderão as que têm necessidade de tudo. Não são os povos que se bastam a si próprios mas os que nada têm em seu país que se beneficiam em não traficar com ninguém. LIVRO VIGÉSIMO PRIMEIRO DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O COMÉRCIO, CONSIDERADO NAS REVOLUÇÕES QUE TEVE NO MUNDO CAPÍTULO I ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS EMBORA O COMÉRCIO esteja sujeito a grandes revoluções, pode acontecer que certas causas físicas, a qualidade do terreno ou do clima, determinem para sempre sua natureza. Hoje, só fazemos comércio com a Índia pelo dinheiro que para ali mandamos. Os romanos para lá levavam cerca de cinquenta milhões de sestércios cada ano. Esse dinheiro, como o nosso hoje, era convertido em mercadorias que traziam para o Ocidente. Todos os povos que negociaram com as Índias sempre levaram metais e trouxeram mercadorias. É a própria Natureza que produz esse efeito. Os indianos têm suas artes, que se adaptam à sua maneira de viver. Nosso luxo não poderia ser o deles, nem nossas necessidades suas necessidades. Seu clima não lhes pede nem lhes permite quase nada do que vem de nós. Andam nus; as vestes que possuem, fornece-as convenientes o país; e a religião, que tem sobre eles tanto poder, provoca-lhes repugnância pelas coisas que nos servem de alimento. Não têm necessidade, portanto, a não ser dos nossos metais, que são os símbolos dos valores e pelos quais dão mercadorias que sua frugalidade e a natureza do país lhes proporcionam em grande abundância. Os autores antigos que nos falaram das Índias descrevem-nas tais como as vemos hoje, quanto à polícia, às maneiras e aos costumes. As Índias foram, as Índias serão o que são atualmente; e, em todos os tempos, os que negociarem com as Índias levarão para lá dinheiro e não o trarão de volta. CAPÍTULO II DOS POVOS DA ÁFRICA A maioria dos povos das costas da África são selvagens ou bárbaros. Creio que isso se deve muito ao fato de regiões quase inabitáveis separarem as pequenas regiões que podem ser habitadas. Não têm indústrias; não têm artes; possuem em abundância metais preciosos que recebem imediatamente das mãos da Natureza. Todos os povos civilizados estão, portanto, em situação de negociar com eles vantajosamente; podem fazê-los estimar muitas coisas sem valor algum, e por elas receber elevados preços. CAPÍTULO III DE COMO AS NECESSIDADES DOS POVOS DO SUL SÃO DIFERENTES DAS DOS POVOS DO NORTE Há na Europa uma espécie de equilíbrio entre as nações do Sul e as do Norte. As primeiras possuem toda espécie de comodidades para a vida, e poucas necessidades: as segundas têm muitas necessidades e poucas comodidades para a vida. A umas, a Natureza deu muito e elas só lhe pedem pouco; a outras, a Natureza deu pouco e elas pedem muito. O equilíbrio se mantém pela preguiça que ela deu às nações do Sul, e pela indústria e atividade que deu às do Norte. Essas últimas são obrigadas a trabalhar muito, sem o que tudo lhes faltaria, e tornar-se-iam bárbaras. Foi o que implantou a servidão entre os povos do Sul: como podem facilmente prescindir de riquezas podem ainda melhor prescindir de liberdade. Mas os povos do Norte têm necessidade da liberdade, que lhes proporciona mais meios de satisfazer todos os desejos de que a Natureza os dotou. Os povos do Norte ficam, pois, numa situação forçada, quando não são livres nem bárbaros: quase todos os povos do Sul estão, de alguma forma, num estado violento, quando não são escravos. CAPÍTULO IV PRINCIPAL DIFERENÇA ENTRE O COMÉRCIO DOS ANTIGOS E O DE HOJE O mundo atravessa, de tempos em tempos, situações que mudam o comércio. Hoje o comércio da Europa se faz principalmente do Norte para o Sul. Assim, a diferença de clima faz com que os povos tenham grande necessidade das mercadorias uns dos outros. Por exemplo, as bebidas do Sul levadas ao Norte constituem uma espécie de comércio que os Antigos não faziam. Também a capacidade dos navios, que outrora se media por moios de trigo, mede-se hoje por tonéis de licor. O comércio antigo que conhecemos e que se fazia de um porto do Mediterrâneo a outro localizava-se quase todo no Sul. Ora, povos de mesmo clima, possuindo quase as mesmas coisas, não têm tanta necessidade de comerciar entre si quanto os de clima diferente. O comércio na Europa era, portanto, outrora, menos extenso do que o é hoje. Isso não está em contradição com o que disse acerca de nosso comércio com as Índias: a diferença excessiva do clima faz com que as necessidades relativas sejam nulas. CAPÍTULO V OUTRAS DIFERENÇAS O comércio, ora destruído pelos conquistadores, ora impedido pelos monarcas, percorre a terra, foge de onde é oprimido, radica-se onde o deixam respirar: reina hoje onde só se viam desertos, mares e rochedos; onde reinava não há senão desertos. Vendo-se hoje a Cólquida, que nada mais é do que uma vasta floresta, onde o povo, que diminui dia a dia, só defende sua liberdade para vender-se aos poucos aos turcos e aos persas, não se diria nunca que essa região tivesse sido, ao tempo dos romanos, cheia de cidades onde o comércio atraía todas as nações do mundo. Não se encontra nenhum de seus monumentos na região; só há traços delas em Plínio e Estrabão. A história do comércio é a da comunicação dos povos. Suas diversas destruições e certos fluxos e refluxos de populações e de devastações constituem seus maiores acontecimentos. CAPÍTULO VI DO COMÉRCIO DOS ANTIGOS Os imensos tesouros de Semírames, que não poderiam ter sido adquiridos em um dia, fazem-nos pensar que os assírios haviam eles próprios pilhado outras nações ricas, como as outras nações os pilhariam depois. Os efeitos do comércio são as riquezas; a consequência das riquezas, o luxo; a do luxo, a perfeição das artes. As artes, no estágio em que as encontramos na época de Semíramís, indicam-nos um grande comércio já estabelecido. Havia um grande comércio de luxo nos impérios da Ásia. A história do luxo constituiria uma bela parte da história do comércio; o luxo dos persas era o dos medos, como o dos medos era o dos assírios. Ocorreram grandes mudanças na Ásia. A parte da Pérsia que está a nordeste, a Hircânia, a Margiana, a Bactriana etc. eram outrora cheias de cidades florescentes- que já não existem; e o Norte desse império, isto é, o istmo que separa o mar Cáspio do Ponto Euxino, era coberto de cidades e de nações que também não existem mais. Eratóstenes e Aristóbulo sabiam de Pátroclo que as mercadorias das Índias passavam pelo Oxo no mar do Ponto. Marco Varrão nos diz que se soube, na época de Pompeu, na guerra contra Mitridates, que se ia em sete dias da Índia ao país dos bactrianos, e ao rio Ícaro que desemboca no Oxo; que por aí as mercadorias da Índia podiam atravessar o mar Cáspio e penetrar na embocadura do Ciros; que deste rio bastava um trajeto por terra de cinco dias para ir ao Fásis, que conduzia ao Ponto Euxino. É indubitavelmente pelas nações que povoavam esses diversos países que os grandes impérios dos assírios, dos medos e dos persas comunicavam-se com as regiões do Oriente e do Ocidente mais afastadas. Essa comunicação não mais existe. Todos esses países foram devastados pelos tártaros, e esta nação destruidora ainda os habita para infestá-los. O Oxo não mais chega ao mar Cáspio: os tártaros desviaram-no por motivos particulares; ele se perde nas areias áridas. O Iaxartes, que outrora formava uma barreira entre as nações policiadas e as nações bárbaras, foi igualmente desviado pelos tártaros e não mais atinge o mar. Seleuco Nicátor projetou ligar o Ponto Euxino ao mar Cáspio. Este desígnio, que teria proporcionado muitas facilidades ao comércio que nessa época se fazia, desapareceu com sua morte. Não se sabe se ele teria podido executá-lo no istmo que separa os dois mares. Essa região é atualmente muito pouco conhecida; é despovoada e coberta de florestas. Não há falta de água, pois uma infinidade de rios para aí descem pelo monte Cáucaso; mas este Cáucaso, que forma o Norte do istmo e que estende espécies de braços- para o Sul, teria sido um grande obstáculo, sobretudo nesse tempo em que não se possuía a arte de fazer eclusas. Poder-se-ia acreditar que Seleuco pretendia fazer a ligação dos dois mares no mesmo lugar em que o Czar Pedro I o fez depois, isto é, nessa mesma faixa de terra em que o Tânais se aproxima do Volga; mas o Norte do mar Cáspio não fora ainda descoberto. Enquanto nos impérios da Ásia havia um comércio de luxo, os tírios faziam por toda a terra um comércio de economia. Bochard dedicou o primeiro livro de seu Canaã à enumeração das colônias que eles enviaram a todos os países que estão situados próximos do mar; eles passaram as colunas de Hércules e fundaram estabelecimentos nas costas do oceano. Naqueles tempos, os navegadores eram obrigados a seguir as costas, que eram, por assim dizer, sua bússola. As viagens eram longas e penosas. Os trabalhos da navegação de Ulisses foram um assunto fértil para o poema mais belo do mundo, depois daquele que é o primeiro de todos. O pouco conhecimento que a maioria dos povos tinha dos que estavam afastados deles favorecia as nações que praticavam o comércio de economia. Inseriam em seus negócios as obscuridades que desejassem; tinham todas as vantagens que as nações inteligentes adquirem sobre os povos ignorantes. O Egito, afastado de toda comunicação com os estrangeiros pela religião e pelos costumes, quase não praticava um comércio exterior; tinha um solo fértil e de extrema abundância. Era o Japão dessa época; bastava-se a si próprio. Os egípcios foram tão pouco zelosos do comércio exterior, que deixaram o do mar Vermelho a todas as pequenas nações que aí tivessem algum porto. Toleraram que os idumeus, os judeus e os sírios aí tivessem frotas. Salomão empregou nessa navegação os tírios, que conheciam esses mares. Josefo conta que sua nação, ocupando-se unicamente da agricultura, pouco conhecia o mar; assim, foi apenas ocasionalmente que os judeus negociaram no mar Vermelho. Eles tomaram Elath e Asiongaber dos idumeus, que lhes deram esse comércio: eles perderam essas duas cidades e perderam também esse comércio. A mesma coisa não ocorreu com os fenícios: não faziam um comércio de luxo; não negociavam pela conquista: sua frugalidade, habilidade, indústria, audácias, fadigas, os tornavam necessários a todas as nações do mundo. As nações vizinhas do mar Vermelho apenas negociavam neste e no mar da África. O assombro do universo quando da descoberta do mar das Índias, efetuada na época de Alexandre, o prova suficientemente. Dissemos que sempre se levam às Índias metais preciosos que não são trazidos de volta: as frotas judias que, pelo mar Vermelho, transportavam ouro e prata voltavam da África e não das Índias. Digo mais: esta navegação fazia-se na costa oriental da África; e o estado em que então se encontrava a marinha prova suficientemente que não se ia a lugares longínquos. Sei que as frotas de Salomão e de Josafá só retomavam no terceiro ano mas não vejo por que a duração da viagem prova a extensão do afastamento. Plínio e Estrabão informam-nos que o caminho que um navio das Índias e do mar Vermelho, fabricado com juncos, percorria em vinte dias era coberto em sete por um navio grego ou romano. Nesta proporção, a viagem de um ano para as frotas gregas e romanas significava aproximadamente três para as de Salomão. Dois navios de velocidade desigual não fazem sua viagem num tempo proporcional à sua velocidade: a lentidão produz amiúde uma lentidão maior. Quando se trata de seguir costas; quando se encontra constantemente numa posição diferente; quando cumpre esperar um bom vento para sair de um golfo, e outro para avançar, um navio bom de velas aproveita-se de todos os tempos favoráveis enquanto o outro permanece num lugar difícil e espera vários dias por outra mudança. Essa lentidão dos navios das Índias, que, num tempo igual, não podiam percorrer senão um terço do caminho que percorriam os navios gregos e romanos, pode ser explicada pelo que vemos atualmente em nossa marinha. Os navios das Índias, sendo de junco, eram de menor calado que os barcos gregos e romanos, que eram de madeira e unidos com ferro. Podem-se comparar esses navios das Índias com os de algumas nações de hoje, cujos portos são pouco profundos; tais como os de Veneza e mesmo, em geral, como os da Itália, do mar Báltico e da província da Holanda. Seus navios, que dali devem sair e entrar, são de fabrica redonda e larga quanto ao fundo; ao passo que os navios de outras nações que possuem bons portos são por baixo de uma forma que os faz calar profundamente na água. Esta mecânica faz com que estes últimos naveguem mais perto do vento e que os primeiros quase só naveguem quando têm vento pela popa. Um navio que cala muito na água navega para a mesma direção com quase todos os ventos, o que decorre da resistência encontrada na água pelo barco impulsionado pelo vento, que constitui um ponto de apoio, e da forma alongada do barco, que é apresentado ao vento lateralmente, enquanto, graças à forma do leme, vira-se a proa para o lado que se deseja; de modo que se pode navegar muito perto do vento, isto é, muito perto do lado de onde o vento sopra. Mas, quando o navio é de formato redondo e de fundo largo e, consequentemente, mergulha pouco na água, não há mais porto de apoio, o vento acossa o barco que não pode resistir e nem tampouco seguir na direção oposta ao vento. Conclui-se daí que os barcos de construção redonda de fundo são mais lentos em suas viagens: 1°) perdem muito tempo esperando o vento, sobretudo se são obrigados a mudar frequentem ente de direção; 2°) andam mais lentamente porque, não tendo ponto de apoio, não poderiam contar com tantas velas como os outros. Pois, se numa época em que a marinha está tão aperfeiçoada, numa época em que as artes se comunicam, numa época em que se corrigem, pela arte, tanto os defeitos da natureza como os defeitos da própria arte, sentimos essas diferenças, como não o seria na marinha dos Antigos? Eu não poderia abandonar este assunto. Os navios das Índias eram pequenos e os dos gregos e dos romanos, se excetuamos essas máquinas que a ostentação fez aparecer, eram menores do que os nossos. Ora, quanto menor um navio, mais perigo sofre no mau tempo. Uma tempestade, que poderia submergir um navio, apenas fustigaria outro, se ele fosse maior. Quanto mais um corpo ultrapassa outro em grandeza, relativamente menor será sua superfície; daí segue que, num navio pequeno, há uma razão menor, isto é, uma maior diferença do que num grande, entre a superfície do navio e o peso ou a carga que pode transportar. Sabemos que, por uma prática quase geral, introduz-se num navio uma carga de peso igual ao da metade da água que ele poderia conter. Suponhamos que um navio contém oitocentos tonéis de água; sua carga será de quatrocentos tonéis; a de um navio que apenas contém quatrocentos tonéis de água será de duzentos. Assim, a grandeza do primeiro navio estaria, para o peso que levaria, como oito está para quatro; e a do segundo, como quatro está para dois. Suponhamos que a superfície do grande esteja para a superfície do pequeno como oito está para seis; a superfície deste estará, em relação a seu peso, como seis para dois, enquanto a superfície daquele só estará, em relação a seu peso, como oito está para quatro; e atuando os ventos e as vagas apenas sobre a superfície, o barco grande, graças a seu peso, resistirá mais à impetuosidade das águas do que o pequeno. CAPÍTULO VII DO COMÉRCIO DOS GREGOS Os primeiros gregos eram todos piratas. Minos, que havia possuído o império do mar, só obtivera talvez grandes êxitos nas pilhagens: esse império achava-se limitado às cercanias de sua ilha. Porém, quando os gregos tornaram-se um grande povo, os atenienses obtiveram o verdadeiro império do mar porque esta nação comerciante e vitoriosa ditou a lei ao monarca mais poderoso de então, e sobrepujou as forças marítimas da Síria, da ilha de Chipre e da Fenícia. É necessário que eu me refira a este império marítimo que Atenas teve. "Atenas", diz Xenofonte, "tem o império do mar; porém, como a Ática está presa à terra, os inimigos devastam-na, enquanto ela empreende suas expedições às regiões longínquas. Os principais deixam destruir suas terras e colocam seus bens em segurança em alguma ilha: o populacho, que não possui terras, vive sem nenhuma inquietação. Mas, se os atenienses habitassem uma ilha e tivessem, por outro lado, o domínio do mar, teriam o poder de prejudicar os outros sem que pudessem ser prejudicados, enquanto fossem senhores do mar”. Dir-se-ia que Xenofonte quis referir-se à Inglaterra. Atenas, repleta de projetos de glória; Atenas, que aumentava a inveja em vez de aumentar a influência, mais preocupada em estender seu império marítimo do que dele fruir; com um governo político de tal espécie, que o baixo povo partilhava entre si as rendas públicas, enquanto os ricos permaneciam oprimidos, não fez este grande comércio que lhe prometiam o trabalho de suas minas, a multidão de seus escravos, o número de seus marinheiros, sua autoridade sobre as cidades gregas e, mais do que tudo isso, as belas instituições de Sólon. Seu negócio quase só se limitou à Grécia e ao Ponto Euxino, de onde ela extraiu sua subsistência. Corinto se achou admiravelmente bem situada: separou dois mares, abriu e fechou o Peloponeso, e abriu e fechou a Grécia. Foi uma cidade de grande importância, numa época em que o povo grego era um mundo e as cidades gregas eram nações. Ela praticou um comércio maior do que o de Atenas. Tinha um porto para receber as mercadorias da Ásia e outro para receber as da Itália; pois, como havia grandes dificuldades em contornar o promontório Máleo, onde ventos opostos se encontram e ocasionam naufrágios, preferia-se antes ir a Corinto e se podia mesmo fazer passar os navios de um mar a outro, por terra. Em nenhuma outra cidade se enalteciam tanto as obras de arte. A religião acabou de corromper o que sua opulência lhe deixara de costumes. Ela erigiu um templo a Vênus, onde mais de mil cortesãs foram consagradas. Foi desse seminário que saiu a maioria das belezas célebres cuja história Atenas ousou escrever. Parece que, na época de Homero, a opulência da Grécia situava-se em Rodes, em Corinto e em Orcômeno. "Júpiter", diz ele, "amou os ródios e deu-lhes grandes riquezas” Dá a Corinto o epíteto de rica. Da mesma maneira, quando quer referir-se a cidades que possuem muito ouro, cita Orcômeno, que compara com Tebas do Egito. Rodes e Corinto conservaram seu poderio, e Orcômeno o perdeu. A posição de Orcômeno, perto do Helesponto, da Propôntida e do Ponto Euxino, leva naturalmente a pensar que ela extraía suas riquezas de um comércio sobre as costas desses mares que tinham dado origem à fábula do tosão de ouro. E, efetivamente, o nome de Miniares é atribuído a Orcômeno e também aos argonautas. Porém, como em seguida estes mares tornaram-se mais conhecidos; como os gregos aí estabeleceram grande número de colônias; como essas colônias negociaram com povos bárbaros; como elas se comunicaram com sua metrópole, Orcômeno começou a decair e entrou na multidão das demais cidades gregas. Os gregos, antes de Homero, quase só tinham negociado entre si e com alguns povos bárbaros; mas estenderam seu domínio à medida que formavam novos povos. A Grécia era uma grande península cujos cabos pareciam ter feito o mar recuar e os golfos abrirem-se de todos os lados, como também para os receber. Se lançarmos o olhar sobre a Grécia, veremos, numa região bastante comprimida, uma vasta extensão de costas. Suas incontáveis colônias traçavam uma enorme circunferência em seu derredor; e ela via, por assim dizer, todo o mundo que não era bárbaro. Penetrou na Sicília e na Itália e aí formou nações. Navegou para os mares do Ponto, para as costas da Ásia Menor, para as da África e aí procedeu da mesma forma. Suas cidades adquirem prosperidade à medida que se encontram perto de novos povos. E, o que era admirável, inumeráveis ilhas, situadas como em primeira linha, circundavam-na ainda. Quantas causas de prosperidade para a Grécia; quantos espetáculos oferecia, por assim dizer, ao universo; templos para onde todos os reis enviavam oferendas; festas onde se reuniam forasteiros de todas as partes; oráculos que atraíam a atenção de toda a curiosidade humana; enfim, os gostos e as artes levados a tal ponto, que acreditar supera-los significará sempre não os conhecer! CAPÍTULO VIII DE ALEXANDRE. SUA CONQUISTA Quatro acontecimentos, na época de Alexandre, ocasionaram grande revolução no comércio: a tomada de Tiro, a conquista do Egito, a da Índia e a descoberta do mar que se situa ao sul deste país. O império persa estendia-se até o Indo. Muito tempo antes de Alexandre, Dario enviara navegadores que desceram esse rio e foram até o mar Vermelho. Como, portanto, foram os gregos que primeiro comerciaram, pelo Sul, com as Índias? Como os persas não o fizeram anteriormente? De que lhes serviam mares que estavam tão próximos deles, mares que banhavam seu império? E verdade que Alexandre conquistou as Índias: mas cumpre conquistar um país para negociar? Examinarei essa questão. A Ariana, que se estendia desde o golfo Pérsico até o Indo, e do mar do Sul até as montanhas dos Paropamísades, efetivamente dependia de alguma maneira do império dos persas; porém, em sua parte meridional, ela era árida, calcinada, inculta, bárbara. A tradição contava que os exércitos de Semíramis e de Ciro pereceram nesses desertos; e Alexandre, que se fez acompanhar por sua frota, não deixou de aí perder grande parte de seu exército. Os persas deixavam toda a costa em poder dos Ictiófagos, dos Oritas e outros povos bárbaros. Aliás, os persas não eram navegantes e sua própria religião lhes interditava toda ideia de comércio marítimo. A navegação que Dario mandou estabelecer no Indo e no mar das Índias foi mais uma fantasia de um príncipe que pretendia demonstrar seu poderio do que o projeto organizado de um monarca que quis utilizá-lo. Essa navegação não teve consequência nem para o comércio nem para a marinha; e se se saiu da ignorância foi para nela recair. Há mais: era admitido, antes da expedição de Alexandre, que a parte meridional das Índias era inabitável, o que decorria da tradição de que Semíramis daí trouxera apenas vinte homens e Ciro sete. Alexandre penetrou pelo Norte. Seu desígnio era marchar para o Oriente; mas, tendo encontrado a parte do Sul repleta de grandes nações, de cidades e de rios, tentou a conquista e realizou-a. Nessas condições, planejou unir as Índias ao Ocidente por um comércio marítimo, como os unira por colônias que estabelecera nas terras. Mandou construir uma frota no Hidaspes, desceu este rio, entrou no Indo e navegou até sua embocadura. Deixou seu exército e sua frota em Patala e ele próprio foi com alguns barcos reconhecer o mar, assinalou os lugares onde quis que se construíssem portos, angras e arsenais. De volta a Patala, separou-se de sua frota e seguiu o caminho por terra para lhe dar auxílios e recebê-los. A frota seguiu a costa desde a embocadura do Indo, ao longo das costas do país dos Oritas, dos Ictiófagos, da Caramânia e da Pérsia. Mandou abrir poços, construir cidades: proibiu os ictíófagos de viverem de peixe; quis que as margens deste mar fossem habitadas por nações civilizadas. Nearco e Onesícrito redigiram o diário dessa navegação que durou dez meses. Chegaram a Susa; aí encontraram Alexandre que oferecia festas a seu exército. Este conquistador fundara Alexandria com o objetivo de apoderar-se do Egito; era uma chave para abri-lo, no próprio lugar em que os reis seus predecessores tinham uma chave para fechá-lo; e ele não pensava num comércio do qual a descoberta do mar das Índias poderia por si só inspirar-lhe a ideia. Parece mesmo que, após esta descoberta, não teve mais nenhum novo objetivo com relação a Alexandria. Tinha efetivamente, em geral, o projeto de estabelecer um comércio entre as Índias e as partes ocidentais de seu império; mas faltavam-lhe muitos conhecimentos para poder conceber o projeto de fazer o comércio pelo Egito. Vira o Indo, vira o Nilo, mas não conhecia os mares da Arábia, que estão entre os dois. Assim que chegou das Índias mandou construir novas frotas e navegou pelo Euleus, pelo Tigre, pelo Eufrates e pelo mar: retirou as cataratas que os persas haviam colocado nestes rios: descobriu que o seio pérsico era um golfo do oceano. Como foi reconhecer este mar, assim como reconhecera o das Índias; como mandou construir um porto na Babilônia para mil barcos, e arsenais; como enviou quinhentos talentos para a Fenícia e a Síria, a fim de que lhe enviassem navegantes, que desejava colocar nas colônias que espalhava nas costas; como, finalmente, realizou imensos trabalhos no Eufrates e em outros rios da Assíria, não se pode duvidar que seu intento fosse comerciar com as Índias pelo golfo Pérsico. Algumas pessoas, sob pretexto de que Alexandre pretendia conquistar a Arábia, disseram que ele intencionava aí estabelecer a sede de seu império; mas como teria escolhido um lugar que não conhecia? Aliás, tratava-se da região mais incômoda do mundo; ele estaria separado de seu império. Os califas, que conquistaram regiões longínquas, abandonaram primeiramente a Arábia para se estabelecerem alhures. CAPÍTULO IX DO COMÉRCIO DOS REIS GREGOS DEPOIS DE ALEXANDRE Quando Alexandre conquistou o Egito, conhecia-se muito pouco o mar Vermelho e nada desta parte do oceano que se liga a este mar e que banha, de um lado, a costa da África e, de outro, a da Arábia: acreditou-se mesmo, desde então, que era impossível contornar a península da Arábia. Os que haviam tentado de cada lado tinham abandonado a empresa. Dizia-se: Como seria possível navegar ao sul das costas da Arábia, uma vez que o exército de Cambises, que a atravessou do lado norte, pereceu quase completamente, e o que Ptolomeu, filho de Lagos, enviou em socorro de Seleuco Nicátor à Babilônia sofreu perdas incríveis e, devido ao calor, não pôde marchar senão à noite. Os persas não possuíam nenhuma espécie de navegação. Quando conquistaram o Egito, para aí trouxeram o mesmo espírito que tinham tido em seu país; e a negligência foi tão extraordinária, que os reis gregos acharam que não somente as navegações dos tírios, dos idumeus e dos judeus, no oceano, eram ignoradas, como até mesmo as do mar Vermelho o eram. Creio que a destruição da primeira Tiro por Nabucodonosor e a das diversas pequenas nações e cidades vizinhas do mar Vermelho fizeram com que se perdessem os conhecimentos adquiridos. O Egito, na época dos persas, não se defrontava com o mar Vermelho: continha apenas essa faixa de terra longa e estreita que o Nilo cobre com suas inundações, e que está comprimida de ambos os lados por cadeias de montanhas. Foi necessário, portanto, descobrir o mar Vermelho uma segunda vez e o oceano uma segunda vez; e esta descoberta se deve à curiosidade dos reis gregos. Subiu-se o Nilo; caçaram-se elefantes nas regiões que estão situadas entre o Nilo e o mar; descobriram-se, por terra, as margens deste mar; e, como esta descoberta foi efetuada pelos gregos, seus nomes são gregos, e os templos são consagrados a divindades gregas. Os gregos do Egito puderam realizar um comércio muito extenso; eram senhores dos portos do mar Vermelho: Tiro, rival de toda nação comerciante, não mais existia; não eram mais perturbados pelas antigas superstições do país; o Egito tornara-se o centro do universo. Os reis da Síria deixaram aos do Egito o comércio meridional das Índias e apenas se dedicaram ao comércio setentrional que era realizado pelo Oxo e pelo mar Cáspio. Acreditava-se, nessa época, que este mar era uma parte do oceano setentrional; e Alexandre, algum tempo antes de sua morte, mandara construir uma frota para descobrir se ele se comunicava com o oceano pelo Ponto Euxino, ou por qualquer outro mar oriental do lado das Índias. Depois dele, Seleuco e Antíoco esforçaram-se particularmente por reconhecê-lo. Aí mantiveram frotas. O que Seleuco reconheceu foi chamado mar Selêucida; o que Antíoco descobriu foi denominado mar Antióquido. Preocupados com os projetos que poderiam realizar para essas bandas, negligenciaram os mares do Sul, seja porque os Ptolomeus, com suas frotas no mar Vermelho, já se tivessem apoderado do império, seja porque tivessem descoberto, nos persas, uma invencível aversão pela marinha. As costas do Sul da Pérsia não forneciam marinheiros; estes só tinham sido vistos ali nos derradeiros momentos da vida de Alexandre. Mas os reis do Egito, senhores da ilha de Chipre, da Fenícia e de inúmeras regiões nas costas da Ásia Menor, tinham todos os tipos de meios para realizar empreendimentos marítimos. Não tinham que constranger o gênio de seus súditos; bastava segui-lo. É difícil compreender a obstinação dos Antigos em acreditar que o mar Cáspio era uma parte do oceano. As expedições de Alexandre, dos reis da Síria, dos partos e dos romanos não conseguiram fazê-los mudar de ideia: é que nos corrigimos de nossos erros o mais tarde que podemos. Inicialmente conhecia-se apenas o Sul do mar Cáspio; acreditou-se tratar do oceano; à medida que se progredia ao longo de suas costas, ao norte, acreditou-se ainda que era o oceano que penetrava nas terras. Seguindo as costas, apenas se reconhecera, do lado este, até o Iaxartes, e do lado oeste, até as extremidades da Albânia. O mar, do lado norte, era lodoso e, consequentemente, muito pouco próprio à navegação. Tudo determinou com que nunca se visse senão o oceano. O exército de Alexandre não fora, do lado oriental, senão até o Hipanis, que é o último dos rios que desembocam no Indo. Assim, o primeiro comércio que os gregos tiveram nas Índias realizou-se numa parte muito pequena do país. Seleuco Nicátor penetrou até o Canges e, por essa via, descobriu-se o mar onde este rio desemboca, isto é, o golfo de Bengala. Atualmente descobrem-se terras por meio de viagens marítimas; outrora, descobriam-se mares pela conquista das terras. Estrabão, apesar do testemunho de Apolodoro, parece duvidar que os reis gregos de Bactriana tenham ido mais além que Seleuco e Alexandre. Ainda que seja certo que, do lado oriental, não tenham ido mais longe que Seleuco, foram mais além em direção ao sul: descobriram Siger e portos no Malabar que deram lugar à navegação a que vou me referir. Plínio ensina-nos que se seguiram sucessivamente três rotas para fazer a navegação das Índias. Primeiramente, ia-se do promontório de Siagre à ilha de Pata Iene, na embocadura do Indo; vê-se que este foi o percurso seguido pela frota de Alexandre. Depois, seguiu-se um caminho mais curto e mais seguro e foi-se do mesmo promontório a Siger. Este Siger só pode ser o reino de Siger ao qual se refere Estrabão, que os reis gregos de Bactriana descobriram. Plínio só pôde dizer que este caminho foi mais curto considerando que era percorrido em menos tempo, pois Siger deveria estar mais afastado que o Indo, uma vez que os reis de Bactriana o descobriram. Cumpria, portanto, que assim se evitasse o contorno de certas costas e que se aproveitasse de certos ventos. Enfim, os mercadores seguiram um terceiro caminho: dirigiam-se a Canes ou a Océlis, portos situados na embocadura do mar Vermelho, de onde, por um vento de oeste, chegava-se a Muzíris, primeira etapa das Índias, e de lá a outros portos. Vê-se que em lugar de ir da embocadura do mar Vermelho até Siagre, subindo a costa da Arábia propícia a nordeste, ia-se diretamente de oeste a este, de um lado a outro, por intermédio das monções, cujas mudanças se descobriram navegando-se nessas paragens. Os Antigos só abandonaram as costas quando se serviram das monções e dos ventos alísios, que eram uma espécie de bússola para eles. Plínio informa que se partia para as Índias em meados do verão e que se voltava por volta do fim de dezembro e começo de janeiro. Isto é inteiramente conforme aos diários de nossos navegantes. Nesta parte do mar das Índias que está situada entre a península da África e a de aquém Ganges, há duas monções: a primeira, durante a qual os ventos sopram de oeste a leste, começa nos meses de agosto e setembro; a segunda, durante a qual os ventos sopram de leste a oeste, começa em janeiro. Assim, partimos da África para o Malabar no tempo em que partiam as frotas de Ptolomeu, e retornamos no mesmo tempo. A frota de Alexandre despendeu sete meses para ir de Patala a Susa. Partiu ela no mês de julho, isto é, num tempo em que atualmente nenhum navio ousaria fazer-se ao mar para regressar das Índias. Entre uma monção e outra, há um intervalo de tempo durante o qual os ventos variam; e em que um vento do norte, misturando-se com os ventos comuns, causa, principalmente junto às costas, horríveis tempestades. Isso abarca os meses de junho, julho e agosto. A frota de Alexandre, partindo de Patala no mês de julho, sofreu muitas tempestades; e a viagem foi longa porque ela navegou numa monção contrária. Diz Plínio que se partia para as Índias no fim do verão: assim, utilizava-se o tempo da variação da monção para fazer o trajeto de Alexandria ao mar Vermelho. Vede, peço-vos, como nos aperfeiçoamos pouco a pouco na navegação. A que Dario mandou efetuar para descer o Indo e ir ao mar Vermelho durou dois anos e meio. A frota de Alexandre, descendo o Indo, chegou a Susa dez meses depois, tendo navegado três meses no Indo e sete no mar das Índias. Em seguida, o trajeto da costa do Malabar ao mar Vermelho fez-se em quarenta dias. Estrabão, que explica os motivos da ignorância que se tinha sobre as regiões situadas entre o Hiyanis e o Ganges, diz que, entre os navegantes que vão do Egito às Índias, poucos iam até o Ganges. Efetivamente, vemos que as frotas não iam até aí; pelas monções, iam de oeste a leste, da embocadura do mar Vermelho à costa do Malabar. Paravam nas etapas que aí se localizavam e não chegavam a efetuar a volta da península do aquém Ganges pelo cabo de Comorim e pela costa do Coromandel. O plano da navegação dos reis egípcios e dos romanos era de fazer o retorno no mesmo ano. Assim, faltava muito para que o comércio dos gregos e dos romanos nas Índias fosse tão extenso quanto o nosso; nós, que conhecemos regiões imensas que eles não conheciam; nós, que fazemos nosso comércio com todas as nações indianas e que inclusive comerciamos para elas e navegamos para elas. Mas eles faziam este comércio com mais facilidade do que nós; e, se apenas se negociasse na costa do Guzerate e do Malabar e, sem procurar as ilhas do Sul, se se contentasse com as mercadorias que os insulares viessem trazer, dever-se-ia preferir a rota do Egito à do cabo da Boa Esperança. Informa Estrabão que se negociava assim com os povos da Taprobana. CAPÍTULO X DO PÉRIPLO DA ÁFRICA Conta a história que, antes da descoberta da bússola, tentou-se quatro vezes fazer o périplo da África. Fenícios, enviados por Neco e Eudoxo, fugindo da cólera de Ptolomeu-Latura, partiram do mar Vermelho e obtiveram êxito. Sataspo, no reinado de Xerxes, e Honon, que foi enviado pelos cartagineses, partiram das colunas de Hércules e não obtiveram êxito. O ponto capital para a realização da volta da África era descobrir e dobrar o cabo da Boa Esperança. Porém, se se partia do mar Vermelho, encontrava-se este cabo na metade do caminho mais depressa do que partindo do Mediterrâneo. A costa que vai do mar Vermelho ao cabo é menos perigosa do que a que vai do cabo às colunas de Hércules. Para que os que partiam das colunas de Hércules pudessem descobrir o cabo foi necessária a invenção da bússola, a qual permitiu afastar-se da costa da África e navegar no vasto oceano em direção à ilha de Santa Helena ou em direção à costa do Brasil. Era portanto muito possível que se tivesse ido do mar Vermelho ao Mediterrâneo sem que se tivesse retomado do Mediterrâneo ao mar Vermelho. Destarte, sem efetuar esse grande circuito, após o que não mais se podia retomar, era mais natural praticar o comércio da África oriental pelo mar Vermelho, e o da costa ocidental pelas colunas de Hércules. Os reis gregos do Egito descobriram, inicialmente, no mar Vermelho, a parte da costa da África que se estende desde o golfo onde se localiza a cidade de Herum até Dira, isto é, até o estreito hoje denominado Babelmândeb. Daí até o promontório dos arômatas, situado na entrada do mar Vermelho, a costa não fora reconhecida pelos navegantes; e isso torna-se evidente pelo que nos informa Artemidoro, que se conheciam os lugares desta costa mas se ignoravam as distâncias; o que provém do fato de se haver conhecido sucessivamente estes portos por terra, e sem ir de um a outro. Além desse promontório, onde começa a costa do oceano, nada era conhecido, como no-lo informam Eratóstenes e Artemidoro. Tais eram os conhecimentos que se tinham das costas da África na época de Estrabão, isto é, na época de Augusto. Porém, desde Augusto, os romanos descobriram o promontório Raptum e o promontório Prassum, de que Estrabão nada diz, porque não eram ainda conhecidos. Vemos que esses dois nomes são romanos. Ptolomeu, o geógrafo, vivia na época de Adriano e Antonino Pio; e o autor do périplo do mar Eritreu, quem quer que seja, viveu pouco tempo depois. Entretanto, o primeiro limita a África conhecida no promontório Prassum, situado cerca do décimo quarto grau de latitude sul; e o autor do périplo, no promontório Raptum, situado aproximadamente no décimo grau dessa latitude. Parece que este tomava por limite um lugar aonde se ia, e Ptolomeu um lugar aonde não se ia. O que confirma esta ideia é que os povos localizados em tomo do Prassum eram antropófagos. Ptolomeu, que nos fala de grande número de lugares entre o porto dos arômatas e o promontório Raptum, deixa um vazio total desde o Raptum até o Prassum. Os grandes lucros da navegação das Índias devem ter levado a negligenciar a da África. Finalmente, os romanos nunca estabeleceram, nesta costa, uma navegação regular: tinham descoberto esses portos por terra e por navios desviados pelas tormentas: e assim como atualmente conhecem-se muito bem as costas da África e muito maio interior, os Antigos conheciam bastante bem o interior e pessimamente as costas. Disse eu que os fenícios, enviados por Neco e Eudoxo no período de Ptolomeu-Latura, tinham efetuado o périplo da África: é preciso que, na época de Ptolomeu, o geógrafo, essas duas navegações fossem consideradas fabulosas, pois ele situa, desde o sinus Magnus, que é, creio, o golfo de Sião, uma terra desconhecida, que vai da Ásia à África, terminando no promontório Prassum; de sorte que o mar das Índias não passaria de um lago. Os Antigos, que reconheceram as Índias pelo norte, tendo avançado para o oriente, situaram no sul esta terra desconhecida. CAPÍTULO XI CARTAGO E MARSELHA Cartago possuía um singular direito das gentes; mandava afogar todos os estrangeiros que traficavam na Sardenha e cerca das colunas de Hércules. Seu direito político não era menos extraordinário; proibia os sardos de cultivar a terra, sob pena de morte. Ela aumentou seu poderio pelas riquezas, e, em seguida suas riquezas por seu poderio. Senhora das costas da África que banha o Mediterrâneo, estendeu-se ao longo das do oceano. Hanon, por ordem do senado de Cartago, espalhou trinta mil cartagineses desde as colunas de Hércules até Cerné. Afirma ele que essas regiões eram tão afastadas das colunas de Hércules, quanto estas eram de Cartago. Essa posição é notável; revela que Hanon limitou seus estabelecimentos ao vigésimo grau de latitude norte, isto é, dois ou três graus além das ilhas Canárias, para o sul. Estando Hanon em Cemé, empreendeu outra navegação, cujo objetivo era realizar descobertas cada vez mais para o sul. Quase não tomou conhecimento do continente. A extensão das costas que seguiu foi de vinte e seis dias de navegação, tendo sido obrigado a retomar por falta de víveres. Parece que os cartagineses não fizeram nenhum uso do empreendimento de Hanon. Cílax diz que, além de Cemé, o mar não é navegável, porque é raso, cheio de limo e de ervas marinhas: efetivamente, há grandes quantidades delas nessas paragens. Os mercadores cartagineses, aos quais Cílax se refere, podiam encontrar obstáculos que Hanon, que possuía sessenta navios de cinquenta remos cada um, tinha superado. As dificuldades são relativas e, demais, não devemos confundir um empreendimento que tem a audácia e a temeridade como objetivo, com o que é resultado de uma conduta comum. O relatório de Hanon é um belo documento da antiguidade: o mesmo homem que executou, escreveu; ele não insere nenhuma ostentação em suas narrativas. Os grandes capitães escreveram suas ações com simplicidade porque são mais gloriosos pelo que fizeram do que pelo que escreveram. As coisas são como o estilo. Ele não introduz o maravilhoso: tudo o que diz do clima, da terra, dos costumes, das maneiras dos habitantes, se relaciona com o que vemos atualmente nesta costa africana; parece que se trata do diário de um de nossos navegantes. Hanon observou em sua frota que, durante o dia, reinava no continente um vasto silêncio; que, à noite, se ouvia o som de diversos instrumentos de música e que, em toda parte, se viam fogos, uns maiores, outros menores. Nossas relações confirmam isso: julga-se que, de dia, os selvagens, para evitar o ardor do sol, se refugiam nas florestas; que, à noite, acendem grandes fogos para afastar os animais ferozes, e que apreciam apaixonadamente a dança e os instrumentos de música. Hanon descreve-nos um vulcão com todos os fenômenos que o Vesúvio apresenta atualmente; e a descrição que faz das duas mulheres peludas que preferiam ser mortas a seguir os cartagineses, e cuja pele mandou levar a Cartago, não é, como se disse, inverossímil. Esta relação é tanto mais preciosa porque é um monumento púnico; e é porque se trata de um monumento púnico que foi considerada fabulosa, pois os romanos conservaram seu ódio contra os cartagineses mesmo depois de havê-los destruído. Mas foi apenas a vitória que decidiu se cumpriria a fé púnica ou a fé romana. Modernos seguiram este preconceito. Que é feito, dizem eles, das cidades que Hanon descreveu e das quais, já no tempo de Plínio, não restava o menor vestígio? O maravilhoso seria que elas tivessem permanecido. Era Corinto, ou Atenas, que Hanon ia levantar nessas costas? Ele deixava, nesses lugares propícios ao comércio, famílias cartaginesas e, rapidamente, as colocava em segurança contra os homens selvagens e os animais ferozes. As calamidades dos cartagineses fizeram cessar a navegação da África, e essas famílias teriam de perecer ou tornar-se selvagens. Digo mais: mesmo que as ruínas dessas cidades subsistissem, quem iria descobri-las nas florestas e nos pântanos? Entretanto, vê-se, em Cílax e em Políbio, que os cartagineses possuíram grandes estabelecimentos nessas costas. Eis os vestígios das cidades de Hanon; não há outros porque mal existem os da própria Cartago. Os cartagineses estavam no caminho das riquezas: e, se eles tivessem ido até o quarto grau de latitude norte, e ao décimo quinto de longitude teriam descoberto a Costa do Ouro e as costas vizinhas. Teriam praticado um comércio de importância completamente diferente daquele que se pratica hoje, quando a América parece ter aviltado as riquezas de todos os outros países; teriam encontrado tesouros que não poderiam ter sido arrebatados pelos romanos. Disseram coisas surpreendentes das riquezas da Espanha. A crer em Aristóteles, os fenícios, que abordaram em Tartesso, aí encontraram tanta prata, que seus navios não puderam contê-la, e fizeram, desse metal, os utensílios mais vis. Os cartagineses, no relatório de Diodoro.ê encontraram tanto ouro e prata nos Pirineus, que os utilizaram como âncoras de seus navios. Não devemos dar crédito a essas narrativas populares; eis os fatos precisos: Vemos, num fragmento de Políbio citado por Estrabão, que as minas de prata situadas na nascente do Bétis, onde quarenta mil homens eram empregados, davam ao povo romano vinte e cinco mil dracmas por dia: isto perfaz aproximadamente cinco milhões de libras por ano, a cinquenta francos o marco. Chamavam-se as montanhas onde estavam estas minas de montanhas de prata, o que nos mostra que eram o Potosi daquela época. Atualmente, as minas de Hanôver não utilizam um quarto dos operários que se empregavam nas minas da Espanha, e elas produziam mais: porém os romanos, quase só possuindo minas de cobre e poucas de prata, e os gregos, só conhecendo as minas da Ática, muito pouco ricas, devem ter-se espantado com a abundância das minas espanholas. Durante a guerra pela sucessão da Espanha, um homem chamado Marquês de Rodes, de quem se dizia que se arruinara com as minas de ouro e se enriquecera com os hospitais, propôs à, corte de França abrir as minas dos Pirineus. Citou os tírios, os cartagineses e os romanos. Permitiram-lhe pesquisar; ele procurou, esquadrinhou todos os lugares; citava sempre mas nada encontrou. Os cartagineses, senhores do comércio do ouro e da prata, quiseram sê-lo também do chumbo e do estanho. Estes metais eram transportados por terra, dos portos da Gália, no oceano, até os do Mediterrâneo. Os cartagineses quiseram recebê-los em primeira mão; enviaram Himilcon para organizar estabelecimentos nas ilhas Cassitérides, que se julgava serem as de Scilly. Essas viagens da Bética à Inglaterra levaram certas pessoas a pensar que os cartagineses conheciam a bússola, mas é claro que eles seguiam as costas. É-me suficiente, como prova, o que afirma Himilcon, que levou quatro meses para ir da embocadura do Bétis à Inglaterra; sem me referir à famosa história deste piloto cartaginês que, vendo um barco romano aproximar-se, se deixou encalhar para não lhe revelar a rota da Inglaterra, fato que mostra que esses barcos estavam muito próximos da costa quando eles se encontraram. Os antigos poderiam ter feito viagens marítimas que levariam a pensar que eles tivessem a bússola, embora não a tivessem. Se um piloto se tivesse afastado das costas e, durante a viagem, tivesse havido tempo sereno, tendo visto sempre, durante a noite, uma estrela polar, e, durante o dia, levantar-se e pôr-se o sol, é evidente que ele poderia orientar-se como atualmente se orienta com a bússola; mas seria um fato fortuito e não uma navegação regular. Vemos, no tratado que pôs fim à primeira guerra púnica, que Cartago se esforçou, primeiramente, em conservar o império do mar, e Roma em conservar o da terra. Hanon, nas negociações com os romanos, declarou que não permitiria nem sequer que eles lavassem as mãos nos mares da Sicília; não lhes foi permitido navegar além do belo promontório; foi-lhes proibido traficar na Sícílía, na Sardenha, na África, com exceção de Cartago, exceção que revela como não lhes preparava um comércio vantajoso. Houve, nos primeiros tempos, grandes guerras entre Cartago e Marselha a respeito da pesca. Depois da paz, elas fizeram competitivamente o comércio de economia. Marselha foi tanto mais ciosa quanto, igualando sua rival na indústria, se tornara inferior em poderio: eis a razão dessa grande fidelidade aos romanos. A guerra que estes travaram contra os cartagineses na Espanha foi uma fonte de riquezas para Marselha que servia de entreposto. A ruína de Cartago e de Corinto aumentou ainda mais a glória de Marselha; e, sem as guerras civis, em que era necessário fechar os olhos e tomar um partido, ela teria sido feliz sob a proteção dos romanos, que não tinham inveja de seu comércio. CAPÍTULO XII ILHA DE DELOS. MITRIDATES Tendo Corinto sido destruída pelos romanos, os mercadores se retiraram para Delos. A religião e a veneração dos povos faziam com que se considerasse esta ilha um lugar seguro: demais, ela estava muito bem situada para o comércio com a Itália e a Ásia, que, desde o aniquilamento da África e o enfraquecimento da Grécia, tornara-se muito importante. Desde os primeiros tempos, os gregos enviaram, como já dissemos, colônias para a Propôntida e o Ponto Euxino: elas conservaram, sob o domínio persa, suas leis e sua liberdade. Alexandre, que só marchara contra os bárbaros, não as atacou. Não parece, mesmo, que os reis do Ponto, que as ocuparam várias vezes, lhes tivessem suprimido o governo político. O poder desses reis aumentou tão logo as submeteram. Mitridates viu-se na situação de comprar tropas em toda parte, de reparar continuamente suas perdas, de ter operários, navios, máquinas de guerra, de conseguir aliados, de corromper os dos romanos e os próprios romanos, de assoldadar os bárbaros da Ásia e da Europa, de guerrear durante longo tempo e, consequentemente, de disciplinar suas tropas; ele pôde armá-las e instruí-las na arte militar dos romanos e formar corpos consideráveis com seus trânsfugas; enfim, pôde suportar grandes perdas e sofrer grandes malogros sem perecer; e não teria perecido se, na prosperidade, o rei voluptuoso e bárbaro não tivesse destruído o que, na adversidade, o grande príncipe fizera. É assim que, na época em que os romanos tinham atingido o ápice da grandeza, e pareciam só ter a temer a si próprios, Mitridates recolocou em discussão o que a tomada de Cartago, as derrotas de Filipe, de Antíoco e de Perseu haviam decidido. Nunca guerra alguma fora mais funesta; e, tendo os dois partidos poder e vantagens mútuas, os povos da Grécia e da Ásia foram destruídos, ou como amigos de Mitridates ou como seus inimigos. Delos foi envolvida na infelicidade comum. O comércio declinou em toda parte; efetivamente, ele deveria ser destruído, pois os povos o estavam. Os romanos, adotando um sistema a que já me referi alhures, destruidores para não parecerem conquistadores, arruinaram Cartago e Corinto; e, com tal prática, ter-se-iam também arruinado se não houvessem conquistado toda a terra. Quando os reis do Ponto se tornaram senhores das colônias gregas do Ponto Euxino, se abstiveram de destruir o que deveria ser a causa de sua grandeza. CAPÍTULO XIII DO GÊNIO DOS ROMANOS PARA A MARINHA Os romanos apenas atribuíam importância às tropas de terra cujo espírito era permanecer sempre firme, combater no mesmo lugar e aí morrer. Não podiam eles apreciar a prática da gente do mar que se apresenta ao combate, foge, retorna, evita sempre o perigo, empregando amiúde a astúcia e raramente a força. Tudo isso não era do gênio dos gregos e ainda menos do dos romanos. Portanto, só destinavam à marinha os que não eram cidadãos suficientemente considerados para participar das legiões: a gente do mar era, normalmente, composta de libertos. Atualmente, não temos nem a mesma estima pelas tropas de terra, nem o mesmo desprezo pelas de mar. Entre as primeiras a arte diminuiu; entre as segundas aumentou: ora, estimam-se as coisas na proporção do grau de suficiência exigido para fazê-las corretamente. CAPÍTULO XIV DO GÊNIO DOS ROMANOS PARA O COMÉRCIO Nunca se observou nos romanos inveja com relação ao comércio. Foi como nação rival e não como nação comerciante que atacaram Cartago. Favoreceram as cidades que praticavam o comércio, apesar de estas não serem súditas: assim, aumentaram, pela cessão de várias regiões, o poder de Marselha. Temiam tudo dos bárbaros e nada de um povo negociante. Aliás, seu gênio, sua glória, sua educação militar, a forma de seu governo, tudo os afastava do comércio. Na cidade, apenas se ocupavam de guerras, de eleições, de intrigas e de processos; no campo, só da agricultura; e, nas províncias, um governo brutal e tirânico era incompatível com o comércio. Se sua constituição política a isso se opunha, seu direito das gentes não se repugnava menos. "Os povos", diz o jurisconsulto Pompônio, "com os quais não mantemos nem amizade, nem hospitalidade, nem aliança, não são nossos inimigos: entretanto, se uma coisa que nos pertence cai em suas mãos, eles se tornam seus proprietários: os homens livres tornam-se seus escravos, e eles estão nos mesmos termos com relação a nós." Seu direito civil não era menos opressivo. A lei de Constantino, depois de ter declarado bastardos os filhos das pessoas vis que se tivessem casado com as de condição elevada, confunde as mulheres que têm uma loja de mercadorias com as escravas, as taberneiras, as mulheres de teatro, as filhas de um homem que mantém um antro de prostituição ou que fora condenado a combater na arena. Isso provinha das antigas instituições romanas. Sei perfeitamente que pessoas possuidoras dessas duas ideias: uma, que o comércio é a coisa mais útil do mundo a um Estado e, outra, que os romanos possuíam a melhor polícia do mundo, acreditaram que eles muito encorajaram e honraram o comércio; mas a verdade é que eles raramente pensaram nele. CAPÍTULO XV COMÉRCIO DOS ROMANOS COM OS BÁRBAROS Os romanos tinham feito da Europa, da Ásia e da África um vasto império: a fraqueza dos povos e a tirania do comando uniram todas as partes desse imenso corpo. Então, a política romana se resumiu em separar todas as nações que não tinham sido dominadas: o temor de lhes levar a arte de vencer fez com que se negligenciasse a arte de enriquecer. Eles fizeram leis para impedir todo comércio com os bárbaros. "Que ninguém", dizem Valente e Graciano, "envie vinho, óleo ou outros líquidos aos bárbaros, mesmo que seja apenas para provar." "Que não se lhes leve ouro", acrescentam Graciano, Valentiniano e Teodósio, "e que mesmo o que eles possuem lhes seja retirado com habilidade." O transporte do ferro foi proibido sob pena de morte. Domiciano, príncipe tímido, mandou arrancar as vinhas na Gália, temendo, sem dúvida, que esta bebida atraísse os bárbaros como os tinha outrora atraído à Itália. Probo e Juliano, que nunca os temeram, restabeleceram seu cultivo. Sei perfeitamente que, na fraqueza do império, os bárbaros obrigaram os romanos a estabelecer entrepostos e comerciar com eles. Porém, isso mesmo prova que o espírito dos romanos era não comerciar. CAPÍTULO XVI DO COMÉRCIO DOS ROMANOS COM A ARÁBIA E AS ÍNDIAS O negócio da Arábia feliz e o das Índias foram os dois ramos, quase os únicos, do comércio exterior. Os árabes tinham grandes riquezas; eles as extraíam de seus mares e de suas florestas; e, como compravam pouco e vendiam muito, atraíam para si o ouro e a prata de seus vizinhos. Augusto- conheceu sua opulência e resolveu tê-los como amigos, ou como inimigos. Mandou Élio Galo passar do Egito para a Arábia. Ele encontrou povos ociosos, tranquilos e pouco aguerridos. Travou batalhas, estabeleceu cercos e apenas perdeu sete soldados; mas a perfídia de seus guias, as marchas, o clima, a fome, a sede, as moléstias, as medidas mal tomadas, fizeram-no perder seu exército. Foi preciso, portanto, contentar-se com negociar com os árabes, como outros tinham feito, isto é, levar a eles ouro e prata em troca de suas mercadorias; a caravana de Alepo e o navio real de Suez levaram-lhes imensas somas. A Natureza destinara os árabes ao comércio mas não os destinara à guerra; porém, quando estes povos tranquilos se encontraram nas fronteiras dos partos e dos romanos, tornaram-se auxiliares de uns e de outros. Élio Galo os havia encontrado comerciantes; Maomé os encontrou guerreiros; infundiu-lhes entusiasmo e ei-los conquistadores. O comércio dos romanos com as Índias era considerável. Estrabão fora informado no Egito que eles empregavam cento e vinte navios: este comércio ainda se sustentava apenas por seu dinheiro. Enviavam todos os anos cinquenta milhões de sestércios. Plínio informa que as mercadorias que daí se traziam eram vendidas em Roma pelo cêntuplo. Creio que ele fala de uma maneira geral: uma vez conseguido este lucro, todos teriam querido obtê-lo e, desde esse momento, ninguém mais o obteria. Podemos pôr em dúvida se era necessário aos romanos fazer o comércio da Arábia e das Índias. Cumpria que eles enviassem para lá sua prata e eles não tinham, como nós, o recurso da América, que supre o que enviamos. Estou persuadido que uma das razões que fizeram aumentar, entre eles, o valor numérico das moedas, isto é, estabelecer o bilhão, foi a raridade da prata, causada pelo transporte contínuo que dela se fazia nas Índias. Pois, se as mercadorias desse país eram vendidas em Roma pelo cêntuplo, este lucro dos romanos era realizado sobre os próprios romanos e não enriquecia o império. Poder-se-a dizer, de um lado, que este comércio proporcionava aos romanos grande navegação, isto é, grande poderio; que mercadorias novas aumentavam o comércio interno, favoreciam as artes, mantinham a indústria; que o número de cidadãos se multiplicava na proporção dos novos meios que se tinham para viver; que este novo comércio produzia o luxo, o qual provamos ser tão favorável ao governo de um só quanto fatal ao de vários; que este estabelecimento é da mesma época que a queda de sua república; que o luxo de Roma era necessário; e que cumpria que uma cidade que atraía todas as riquezas do universo as restituísse pelo seu luxo. Estrabão diz que o comércio dos romanos nas Índias era muito mais considerável que o dos reis do Egito; e é singular que os romanos, que conheciam pouco o comércio, tenham tido pelo das Índias mais atenção que os reis do Egito que o tinham, por assim dizer, sob seus olhos. Cumpre explicar isso. Após a morte de Alexandre, os reis do Egito estabeleceram nas Índias um comércio marítimo; e os reis da Síria, que possuíram as províncias mais orientais do império, e consequentemente as Índias, mantiveram este comércio ao qual nos referimos no capítulo VI, que se praticava pelas terras e pelos rios e que recebera novas facilidades pelo estabelecimento de colônias macedônicas; de sorte que a Europa se comunicava com as Índias, através do Egito e do reino da Síria. O desmembramento que se fez do reino da Síria, de onde se formou o reino da Bactriana, em nada prejudicou este comércio. Marino, tírio citado por Ptolomeu, fala das descobertas feitas nas Índias por intermédio de alguns mercadores macedônios. O que as expedições dos reis não tinham feito, os mercadores fizeram. Vemos, em Ptolomeu. que eles foram desde a torre de Pedro até Sera: e a descoberta pelos mercadores de uma etapa tão afastada, situada na parte oriental e setentrional da China, foi uma espécie de prodígio. Assim, sob os reis da Síria e da Bactriana, as mercadorias do Sul das Índias passavam pelo Indo, pelo Oxo e pelo mar Cáspio, ao Ocidente; e as das regiões mais orientais e mais setentrionais eram levadas desde Sera, a torre de Pedro e outras etapas, até o Eufrates. Estes mercadores percorriam sua rota acompanhando, aproximadamente, o quadragésimo grau de latitude norte, por regiões que estão a oeste da China, mais policiadas do que atualmente o são, porque os tártaros ainda não as haviam infestado. Ora, enquanto o império da Síria estendia tanto seu comércio do lado das terras, o Egito não aumentou muito seu comércio marítimo. Os partos apareceram e fundaram seu império; e, quando o Egito caiu sob domínio romano, este império estava no auge de sua força e recebera sua extensão. Os romanos e os partos foram duas potências rivais que combateram, não para saber quem deveria reinar, mas quem deveria existir. Entre os dois impérios formaram-se desertos; entre os dois impérios se esteve sempre em armas; bem longe de haver comércio, não houve mesmo comunicação. A ambição, a inveja, a religião, o ódio, os costumes, tudo separava. Destarte, o comércio entre o Ocidente e o Oriente, que tivera diversas rotas, não possuiu mais do que uma; e, tendo Alexandria se tornado a única etapa, esta etapa cresceu. Direi apenas uma palavra sobre o comércio interno. Seu principal ramo foi o do trigo que se mandava buscar para a subsistência do povo de Roma: o que era matéria de polícia mais do que objeto de comércio. Nessa ocasião, os navegantes receberam alguns privilégios, porque a salvação do império dependia de sua vigilância. CAPÍTULO XVII DO COMÉRCIO APÓS A DESTRUIÇÃO DOS ROMANOS NO OCIDENTE O império romano foi invadido e um dos efeitos da calamidade geral foi a destruição do comércio. Os bárbaros inicialmente apenas o consideraram um objeto de suas pilhagens; e quando se estabeleceram não o honraram mais do que a agricultura e as demais profissões do povo vencido. Em pouco tempo quase não houve mais comércio na Europa; a nobreza, que reinava em toda parte, não se interessava por ele. A lei dos visigodos permitia aos particulares ocupar a metade do leito dos grandes rios, contando que a outra ficasse livre para as redes de pesca e para os barcos; era forçoso que houvesse bem pouco comércio nas regiões que eles tinham conquistado. Naquela época, estabeleceram-se os direitos insensatos de aubaine e de naufrágio: os homens pensaram que os estrangeiros, não lhes estando unidos por nenhuma comunicação do direito civil, não lhes deviam, de um lado, nenhum tipo de justiça e, de outro, nenhuma sorte de piedade. Nos estreitos limites em que se encontravam os povos do Norte, tudo lhes era estranho: na sua pobreza, tudo lhes era objeto de riquezas. Estabelecidos, antes de suas conquistas, nas costas de um mar fechado e repleto de escolhos, eles tiraram proveito dos próprios escolhos. Mas os romanos, que faziam leis para todo o universo, tinham-nas feito muito mais humanas a respeito dos naufrágios: reprimiram, a este respeito, as pilhagens dos que habitavam as costas e, o que era ainda mais, a rapacidade de seu fisco. CAPÍTULO XVIII REGULAMENTO PARTICULAR A lei dos visigodos, entretanto, fez uma disposição favorável ao comércio; ordenou que os mercadores que viessem de além-mar seriam julgados, nos litígios que surgissem entre eles, pelas leis e pelos costumes de sua nação. Isto estava baseado no uso estabelecido entre esses povos mestiços que cada homem vivesse sob sua própria lei: coisa a que me referirei em seguida. CAPÍTULO XIX DO COMÉRCIO DEPOIS DO ENFRAQUECIMENTO DOS ROMANOS NO ORIENTE Os maometanos apareceram, conquistaram e se dividiram. O Egito teve soberanos particulares; continuou a fazer o comércio das Índias. Senhor das mercadorias desse país, atraiu as riquezas de todos os outros. Seus sultões foram os príncipes mais poderosos dessa época: podemos ver, na História, como, com uma força constante e bem orientada, eles paralisaram o ardor, o arrebatamento e a impetuosidade dos cruzados. CAPÍTULO XX COMO O COMÉRCIO SURGIU NA EUROPA ATRAVÉS DA BARBÁRIE Tendo a filosofia de Aristóteles sido trazida para o Ocidente, agradou a muitos espíritos sutis que, em tempos de ignorância, são os belos espíritos. Os escolásticos nela se enfatuaram e tomaram desse filósofo muitas explicações sobre o empréstimo a juros, ao passo que sua origem era tão natural no Evangelho; eles o condenaram indistintamente e em todos os casos. Assim, o comércio, que era apenas a profissão das pessoas vis, tornou-se também a das pessoas desonestas, pois, todas as vezes que se proíbe uma coisa naturalmente permitida ou necessária, apenas se transforma em desonesta a gente que a pratica. O comércio passou a uma nação desde então coberta de infâmia e logo não foi mais distinguido das usuras mais horríveis, dos monopólios, da arrecadação de subsídios e de todos os meios desonestos de aquisição de dinheiro. Os judeus, enriquecidos pelas exações, eram pilhados pelos príncipes com a mesma tirania; coisa que consolava os povos e não os aliviava. O que se passou na Inglaterra dá uma ideia do que se fez nos demais países. Tendo o Rei João mandado aprisionar os judeus para apoderar-se de seus bens, poucos dentre eles deixaram de ter, pelo menos, um olho perfurado: este rei fazia assim sua câmara de justiça. Um deles, a quem se arrancaram sete dentes, um cada dia, deu dez mil marcos de prata no oitavo. Henrique III arrancou de Aaron, judeu de York, quatorze mil marcos de prata, e dez mil para a rainha. Nesses tempos fazia-se violentamente o que hoje se faz com moderação na Polônia. Não podendo os reis revistar as bolsas de seus súditos, por causa de seus privilégios, mandavam torturar os judeus, os quais não eram considerados cidadãos. Finalmente, introduziu-se um costume que confiscou todos os bens dos judeus que abraçaram o cristianismo. Este costume tão estranho, nós o conhecemos através da lei que o ab-rogou. Para isso razões bem fúteis foram dadas; disse-se que se queria experimentá-los, e fazer com que nada restasse da escravidão do demônio. Mas é evidente que esta confiscação era uma espécie de direito de amortização para o príncipe ou para os senhores, das taxas que arrecadavam sobre os judeus, e das quais eram frustrados quando estes abraçavam o cristianismo. Nessa época, os homens eram considerados terras. E, observo de passagem, quanto de um século a outro se trapaceou com esta nação. Confiscavam seus bens quando eles desejavam ser cristãos e, logo depois, queimavam-nos quando não mais desejavam sê-lo. Entretanto, vimos o comércio sair do seio da vexação e do desespero. Os judeus, proscritos sucessivamente de cada país, encontraram meios de salvar seus efeitos. Com isso, tornaram para sempre suas retiradas fixas, pois o príncipe que quisesse se desfazer deles não estaria igualmente disposto a desfazer-se do seu dinheiro. Eles inventaram as letras de câmbio e, com isso, o comércio pôde afastar-se da violência e manter-se em toda parte, não tendo o negociante mais rico senão bens invisíveis, que podiam ser enviados a toda parte, em nenhuma deixando vestígios. Os teólogos foram obrigados a restringir seus princípios; e o comércio, que fora violentamente associado à má-fé, entrou, por assim dizer, no seio da probidade. Destarte, devemos às especulações escolásticas todas as desgraças que acompanharam a destruição do comércio; e, à avareza dos príncipes, o estabelecimento de uma coisa que o coloca, de algum modo, fora do poder. Foi necessário, a partir dessa época, que os príncipes se governassem com mais prudência que eles próprios teriam imaginado, pois, com o acontecimento, os grandes atos de autoridade se revelaram tão inábeis que se tornou uma experiência aceita que nada mais do que a bondade do governo acarreta prosperidade. Começamos a nos curar do maquiavelismo e curar-nos-emos todos os dias. Faz-se necessária mais moderação nos conselhos. O que outrora chamaríamos de golpes de Estado, não passaria, atualmente, de imprudências, independentemente do horror. E é uma felicidade para os homens estar numa situação em que, enquanto suas paixões lhes inspiram o pensamento de ser maus, têm, entretanto, o interesse de não o ser. CAPÍTULO XXI DESCOBERTA DE DOIS NOVOS MUNDOS; ESTADO DA EUROPA A ESSE RESPEITO. A bússola abriu, por assim dizer, o universo. Encontramos a Ásia e a África, das quais apenas conhecíamos algumas costas, e a América, da qual nada conhecíamos. Os portugueses, navegando pelo oceano Atlântico, descobriram a ponta mais meridional da África; viram um vasto mar; ele levou às Índias Orientais. Os perigos que enfrentaram neste mar, e a descoberta de Moçambique, de Melinda e de Calecute, foram louvados por Camões, cujo poema faz sentir alguma coisa dos encantos da Odisseia e da magnificência da Eneida. Os venezianos tendo praticado, até essa época, o comércio com as Índias, pela região dos turcos, o tinham prosseguido em meio às avanias e aos ultrajes. Pela descoberta do cabo da Boa Esperança, e com as que foram feitas pouco tempo depois, a Itália foi deslocada do centro do mundo comerciante; ela ficou, por assim dizer, num canto do universo e aí permanece ainda hoje. Dependendo atualmente o próprio comércio do Levante daquele que as grandes nações fazem nas duas Índias, a Itália apenas o pratica acessoriamente. Os portugueses traficaram nas Índias como conquistadores. As leis constrangedoras que os holandeses, hoje em dia, impõem aos pequenos príncipes indianos sobre o comércio, os portugueses as haviam estabelecido antes deles. A fortuna da Casa da Áustria foi prodigiosa. Carlos Quinto recebeu a sucessão de Borgonha, de Castela e de Aragão; alcançou o império; e para lhe proporcionar um novo gênero de grandeza, o universo dilatou-se, e vimos aparecer um novo mundo sob sua obediência. Cristóvão Colombo descobriu a América; e, apesar de que a Espanha para ali só tivesse enviado forças que um pequeno príncipe da Europa também poderia enviar, ela submeteu dois grandes impérios e outros grandes Estados. Enquanto os espanhóis descobriam e conquistavam do lado do Ocidente, os portugueses impeliam suas conquistas e descobertas do lado do Oriente: estas duas nações se encontraram; recorreram ao Papa Alexandre VI que estabeleceu a célebre linha de demarcação, e julgou um grande processo. Mas as outras nações da Europa não os deixavam gozar tranquilamente sua partilha: os holandeses expulsaram os portugueses de quase todas as Índias Orientais, e diversas nações organizaram estabelecimentos na América. Os espanhóis consideraram inicialmente as terras descobertas objetos de conquistas: povos mais sofisticados que eles acharam que essas terras eram objetos de comércio, e foi com essa intenção que dirigiram suas vistas. Vários povos se conduziram com tanta sabedoria que deram o império a companhias de negociantes que, governando esses Estados afastados unicamente como negócio, constituíram grande poder acessório, sem embaraçar o Estado principal. As colônias que aí foram formadas estão sob um tipo de dependência do qual não encontramos senão poucos exemplos nas antigas colônias, sejam as que atualmente dependem do próprio Estado, ou alguma companhia comerciante estabelecida nesse Estado. O objeto dessas colônias é fazer o comércio em melhores condições do que quando feito com os povos vizinhos, com os quais todas as vantagens são recíprocas. Estabeleceu-se que somente a metrópole poderia negociar na colônia; e isso com grande razão, porque a finalidade do estabelecimento foi a extensão do comércio e não a fundação de uma cidade ou de um novo império. Assim, é ainda uma lei fundamental da Europa que todo comércio com uma colônia estrangeira seja considerado um puro monopólio punível pelas leis do país; e isso não deve ser julgado pelas leis e pelos exemplos dos antigos povos, que não são aqui aplicáveis. É igualmente estabelecido que o comércio efetuado entre as metrópoles não acarreta permissão para as colônias, que permanecem sempre em estado de proibição. A desvantagem das colônias, que perdem a liberdade de comércio, é visivelmente compensada pela proteção da metrópole, que a defende com suas armas, ou a mantém com suas leis. Conclui-se daí uma terceira lei da Europa, que, quando o comércio estrangeiro é proibido com a colônia, não se pode navegar em seus mares senão em casos estabelecidos em tratados. As nações, que estão em relação com todo o universo como os particulares estão em relação com um Estado, se governam entre si pelo direito natural e pelas leis que estabeleceram. Um povo pode ceder a outro o mar, tal como pode ceder a terra. Os Cartagineses exigiram dos romanos que estes não navegassem além de certos limites, como os gregos tinham exigido do rei da Pérsia que se mantivesse sempre afastado das costas do mar, à distância da corrida de um cavalo. O extremo afastamento de nossas colônias não é inconveniente para sua segurança, pois, se a metrópole está distanciada para defendê-las, as nações rivais da metrópole também estão para conquistá-las. Demais, este afastamento faz com que os que aí se vão estabelecer não possam adotar o modo de viver de um clima tão diferente; são obrigados a perder todas as comodidades da vida do país de origem. Os cartagineses, para tornar os sardos e os corsos mais dependentes, lhes tinham proibido, sob pena de morte, de plantar, semear ou de fazer qualquer coisa semelhante a isso; enviavam-lhes víveres da África. Chegamos ao mesmo ponto sem estatuir leis tão severas. Nossas colônias das ilhas das Antilhas são admiráveis; têm objetivos de comércio que não ternos nem podemos ter; falta-lhes o que forma o objeto do nosso. O resultado da descoberta da América foi unir a Europa, a Ásia e a América. A América fornece à Europa a matéria de seu comércio com essa vasta parte da Ásia que se chama Índias Orientais. A prata, esse metal tão útil ao comércio como símbolo, foi também a base do maior comércio do universo como mercadoria. Finalmente, a navegação da África se tornou necessária: fornecia homens para o trabalho das minas e das terras da América. A Europa atingiu um grau de poderio tão alto, que a História nada apresenta de comparável, se consideramos a imensidade das despesas, a grandeza dos empreendimentos, o número de tropas e a continuidade de sua manutenção, mesmo quando são as mais inúteis e são mantidas apenas como ostentação. O Padre du Halde afirma que o comércio interior da China é maior do que o de toda a Europa. Isso seria verdadeiro se nosso comércio exterior não aumentasse o interior. A Europa faz o comércio e a navegação de três outras partes do mundo; como a França, a Inglaterra e a Holanda fazem aproximadamente a navegação e o comércio da Europa. CAPÍTULO XXII DAS RIQUEZAS QUE A ESPANHA EXTRAIU DA AMÉRICA Se a Europa encontrou tantas vantagens no comércio com a América, seria natural acreditar que a Espanha obteve as maiores. Ela extraiu do mundo recentemente descoberto uma quantidade de ouro e de prata tão prodigiosa, impossível de comparar-se com o que até então se tinha. Porém (o que nunca se teria suspeitado), a miséria fê-la malograr quase em toda parte. Filipe lI, que sucedeu a Carlos V, foi obrigado a fazer a célebre bancarrota que toda gente conhece, e quase nunca houve príncipe que tenha sofrido mais do que ele murmúrios, insolências e revolta de suas tropas, sempre mal pagas. A partir dessa época, a monarquia espanhola declinou incessantemente. É que existia um vício interno e físico na natureza dessas riquezas que as tornava inúteis; e esse vício aumentou todos os dias. O ouro e a prata são uma riqueza de ficção ou de símbolo. Esses símbolos são muito duráveis e se destroem pouco, como convém à sua natureza. Quanto mais se multiplicam, mais perdem seu preço, porque representam menos coisas. Quando da conquista do México e do Peru, os espanhóis abandonaram as riquezas naturais para apoderar-se das riquezas de símbolo que por si próprias se aviltavam. O ouro e a prata eram muito raros na Europa, e a Espanha, senhora, repentinamente, da imensa quantidade desses metais, concebeu esperanças que jamais tivera. As riquezas encontradas nas regiões conquistadas não eram, entretanto, proporcionais às de suas minas. Os índios ocultaram parte delas; e, demais, estes povos, que só utilizavam o ouro e a prata para a magnificência dos templos dos deuses e dos palácios dos reis, não os procuravam com a mesma avareza que nós; enfim, eles não conheciam o segredo da extração dos metais de todas as minas, mas somente das que a separação era feita pelo fogo, não conhecendo a maneira de empregar o mercúrio, nem talvez o próprio mercúrio. A prata, no entanto, não deixou de dobrar muito rapidamente na Europa, o que se revela pelo fato de o preço de tudo que se comprava ter-se tornado aproximadamente o dobro. Os espanhóis escavaram as minas, abriram as montanhas, inventaram máquinas para esvaziar a água, quebrar o minério e separa-lo: e, como menosprezavam a vida dos indígenas, fizeram-nos trabalhar sem descanso. A prata logo duplicou na Europa, o lucro diminuiu sempre da metade para a Espanha, que cada ano só obtinha a mesma quantidade de um metal que se tornara a metade menos preciso. No dobro do tempo, a prata duplicou ainda, e o lucro diminuiu ainda da metade. Diminuiu mesmo mais da metade: eis como. Para extrair o ouro das minas, para dar-lhe as preparações necessárias e transporta-lo para a Europa, era preciso alguma despesa. Suponho que ela estivesse como 1 está para 64: quando a prata duplicou uma vez, e consequentemente tomou-se pela metade menos preciosa, a despesa esteve como 2 está para 64. Assim, as frotas que trouxeram para a Europa a mesma quantidade de ouro, trouxeram uma coisa que realmente valia a metade menos e custava a metade mais. Se acompanharmos o fato, de duplicação em duplicação, encontraremos a progressão da causa da impotência das riquezas da Espanha. Há cerca de duzentos anos que se trabalham as minas das Índias. Suponho que a quantidade de prata que atualmente existe no mundo que comercia esteja para aquela que existia antes da descoberta como 32 está para 1, ou seja, que tenha duplicado cinco vezes: em duzentos anos ainda a mesma quantidade será a que estava, antes da descoberta, como 64 está para 1, o que vale dizer que ela duplicou também. Ora, atualmente, cinquenta quintais de minério por ouro dão quatro, cinco e seis onças de ouro; e, quando há apenas dois, o mineiro pode cobrir seus gastos. Em duzentos anos, quando existirem apenas quatro, o mineiro também só cobrirá seus gastos. Haverá, portanto, pouco lucro a se obter do ouro. Aplica-se o mesmo raciocínio para a prata, excetuando-se que o trabalho das minas de prata é um pouco menos vantajoso que o das minas de ouro. Ainda que se descubram minas tão abundantes que deem mais lucro, quanto mais abundantes forem elas, mais rapidamente o lucro desaparecerá. Os portugueses encontraram tanto ouro no Brasil, que será forçoso que O lucro dos espanhóis diminua consideravelmente dentro em breve, e o dos portugueses também. Ouvi amiúde deplorarem a cegueira do Conselho de Francisco I que repeliu Cristóvão Colombo que lhe oferecia as Índias. Em verdade, fez ele, talvez por imprudência, uma coisa bem sábia. A Espanha procedeu como esse rei insensato? que pediu que tudo o que tocasse se convertesse em ouro, e que foi obrigado a retornar aos deuses para suplicar que pusessem fim a sua miséria. As companhias e os bancos que diversas nações estabeleceram, acabaram de envilecer o ouro e a prata em sua qualidade de símbolo, pois, por novas ficções, multiplicaram de tal modo os símbolos dos gêneros, que o ouro e a prata apenas parcialmente representaram esse ofício, tomando-se assim menos preciosos. Destarte, o crédito público substituiu as minas e diminuiu ainda mais o lucro que os espanhóis tiravam das suas. É verdade que os holandeses, pelo comércio que praticaram nas Índias Orientais, deram algum valor à mercadoria dos espanhóis, pois, como eles trouxeram a prata para trocar com mercadorias do Oriente, aliviaram, na Europa, os espanhóis de uma parte de seus gêneros que ali existiam em abundância. E este comércio, que apenas indiretamente parece dizer respeito à Espanha, é-lhe vantajoso como às próprias nações que o fazem. Por tudo o que acaba de ser dito, podemos julgar das ordenanças do Conselho da Espanha, que proíbe o emprego de ouro e de prata em douraduras e outras superfluidades: decreto semelhante aos que fariam os Estados da Holanda, se eles proibissem o consumo da canela. Meu raciocínio não se estende a todas as minas: as da Alemanha e da Hungria, das quais se retira apenas pouca coisa acima do lucro, são muito úteis. Elas situam-se no Estado principal e aí empregam vários milhares de homens que consomem gêneros superabundantes: são propriamente uma manufatura da região. As minas da Alemanha e da Hungria valorizam o cultivo das terras; e o trabalho das do México e do Peru o destrói. As Índias e a Espanha são duas potências dominadas por um mesmo senhor: mas as Índias são o principal, e a Espanha apenas o acessório. É inutilmente que a política quer sujeitar o principal ao acessório; as Índias atraem sempre a Espanha para si. De aproximadamente cinquenta milhões de mercadorias enviadas anualmente às Índias, a Espanha só fornece dois milhões e meio: as Índias fazem, portanto, um comércio de cinquenta milhões e a Espanha um comércio de dois milhões e meio. É uma má espécie de riqueza, um tributo acidental que não depende da indústria da nação, do número de seus habitantes, nem do cultivo de suas terras. O rei da Espanha, que recebe grandes somas de suas aduanas de Cá diz, não é, a esse respeito, senão um particular muito rico num Estado muito pobre. Tudo passa dos estrangeiros para ele sem que os súditos tenham alguma participação; este comércio é independente da boa ou má fortuna de seu reino. Se algumas províncias, na Castela, lhe proporcionassem uma soma semelhante à de Cádiz, seu poderio seria bem maior: suas riquezas somente poderiam ser o efeito das do país; estas províncias estimulariam todas as demais; e, todas reunidas, estariam mais aptas a suportar os respectivos encargos: em lugar de um grande tesouro, ter-se-ia um grande povo. CAPÍTULO XXIII PROBLEMA Não me cabe pronunciar sobre a questão se, a Espanha não podendo fazer o comércio das Índias por si mesma, ser-lhe-ia melhor que o tornasse permitido a estrangeiros. Direi somente que lhe é conveniente levantar o menor número possível de obstáculos a esse comércio quanto sua política possa lhe permitir. Quando as mercadorias que as diversas nações levam às Índias são aí caras, as Índias dão muito de sua mercadoria, que é ouro e prata, por pouca mercadoria estrangeira; ocorre o contrário quanto estas são de preço vil. Talvez fosse útil que essas nações se prejudicassem mutuamente a fim de que as mercadorias que transportam para as Índias fossem sempre baratas. Eis princípios que cumpre examinar, sem entretanto separa-los de outras considerações: a segurança das Índias, a utilidade de uma alfândega única, os perigos de uma grande mudança, os inconvenientes que se preveem e que, amiúde, são menos perigosos que os imprevistos. LIVRO VIGÉSIMO SEGUNDO DAS LEIS, EM SUA RELAÇÃO COM O USO DA MOEDA CAPÍTULO I RAZÃO DO USO DA MOEDA Os POVOS QUE possuem poucas mercadorias para o comércio, como, por exemplo, os selvagens e os povos policiados que apenas possuem duas ou três espécies delas, negociam por troca. Destarte, as caravanas dos mouros que vão a Tombuctu, no coração da África, trocar sal com ouro não têm necessidade de moeda. O mouro põe seu sal num monte; o negro, seu pó em outro; se não há bastante ouro, o mouro diminui seu sal, ou o negro acrescenta ouro até que as partes estejam de acordo. Porém, quando um povo trafica com grande número de mercadorias, é necessário existir moeda, porque um metal fácil de transportar poupa muitos gastos que deveriam obrigatoriamente ser feitos se se procedesse sempre por troca. Tendo todas as nações necessidades recíprocas, acontece frequentemente desejar uma nação um número muito grande de mercadorias de outra, e esta muito pouca das daquela, enquanto, no que diz respeito à outra nação, encontra-se em situação contrária. Porém, quando as nações possuem uma moeda e procedem por compra e venda, as que adquirem mais mercadorias ficam quites, ou pagam o excedente com dinheiro; e há esta diferença que, no caso da compra, o comércio se faz na proporção das necessidades da nação que mais exige; e que, na troca, o comércio faz-se somente na medida das necessidades da nação que menos exige, sem o que esta última ver-se-ia na impossibilidade de saldar sua conta. CAPÍTULO II DA NATUREZA DA MOEDA A moeda é um signo que representa o valor de todas as mercadorias. Usa-se qualquer metal para que o símbolo seja durável, se desgaste pouco com o uso e, sem se destruir, seja capaz de muitas divisões. Escolheu-se um metal precioso, para que o símbolo possa ser facilmente transportado. O metal é muito adequado para ser uma medida comum porque pode ser facilmente reduzido ao mesmo título. Cada Estado nele imprime seu cunho, a fim de que a forma corresponda ao título e ao peso e que se conheçam um e outro por simples inspeção. Não tendo o uso dos metais, os atenienses se serviram de bois e os romanos, de ovelhas; mas um boi não é a mesma coisa que outro boi, como uma peça de metal pode ser a mesma que outra. Como o dinheiro é símbolo do valor das mercadorias, o papel é o símbolo do valor do dinheiro; e, quando é bom, representa-o de tal modo que, quanto ao efeito, não há diferença. Assim como o dinheiro é um símbolo de uma coisa, e o representa, cada coisa é um símbolo do dinheiro e o representa; e o Estado é próspero se o dinheiro representar, de um lado, efetivamente todas as coisas e, de outro, se todas as coisas representarem de fato o dinheiro, e que sejam símbolos uns dos outros; isto é, que em seu valor relativo possamos ter um assim que tenhamos o outro. Isso só ocorre num governo moderado, mas nem sempre ocorre nele: por exemplo, se as leis favorecem um devedor injusto, as coisas que lhe pertencem não representam dinheiro e não são um símbolo. A respeito do governo despótico, seria um prodígio se as coisas representassem seu símbolo: a tirania e a desconfiança fazem com que todos enterrem seu dinheiro: as coisas, portanto, não representam dinheiro. Por vezes, os legisladores empregaram tal arte que não somente as coisas representavam dinheiro por sua natureza, mas tomavam-se moedas, como a própria prata. César, ditador, permitiu aos devedores dar em pagamento a seus credores fundos de terra de acordo com o preço que valiam antes da guerra civil. Tibério ordenou que os que quisessem dinheiro, recebê-lo-iam do tesouro público, obrigando- as propriedades em dobro. Na época de César, os fundos territoriais foram a moeda que pagou todas as dívidas; na época de Tibério, dez mil sestércios em fundos tomaram uma moeda comum, como cinco mil sestércios em dinheiro. A Carta Magna da Inglaterra proíbe penhorar as terras ou as rendas do devedor, quando seus bens mobiliários ou pessoais são suficientes para o pagamento e se ele propõe oferecê-los: desde então, todos os bens de um inglês representavam dinheiro. As leis dos germanos avaliavam em dinheiro as satisfações pelas injúrias cometidas e para as penas de crime. Porém, como havia muito pouco dinheiro neste país, elas reavaliavam o dinheiro em gêneros ou em gado. Isto foi fixado nas leis dos saxões, com algumas diferenças, de acordo com a conveniência e a comodidade de diversos povos. Em primeiro lugar, a lei declara o valor do soldo em gado: o soldo de duas tremisses equivalia a um boi de doze meses, ou a uma ovelha com seu cordeiro; o de três tremisses valia um boi de seis meses. Entre esses povos, a moeda tomava-se gado, mercadoria ou gênero; e essas coisas tomavam-se moeda. Não somente o dinheiro é um símbolo das coisas como é também um símbolo do dinheiro e representa o dinheiro, como veremos no capítulo seguinte. CAPÍTULO III DAS MOEDAS IDEAIS Há moedas reais e moedas ideais. Os povos policiados, que se servem quase todos de moedas ideais, não o fazem porque tenham convertido suas moedas reais em ideais. Inicialmente, suas moedas reais têm certo peso e certo título de algum metal. Logo, porém, a má-fé ou a necessidade faz com que se retire uma parte de metal de cada moeda, à qual se deixa o mesmo nome; por exemplo: de uma moeda do peso de uma libra de prata, retira-se a metade da prata e se continua a denominá-la libra: à moeda que era uma vigésima parte da libra de prata continua-se a chamar soldo, embora não mais seja a vigésima parte dessa libra. A partir de então, a libra é uma libra ideal, e o soldo, um soldo ideal; da mesma maneira, outras subdivisões; e isto pode chegar ao ponto em que o que se chamará libra não passará de uma porção muito pequena da libra, fato que a tomará ainda mais ideal. Pode mesmo ocorrer que não se faça mais moeda que valha precisamente uma libra, e que não mais se faça uma moeda que valha um soldo; daí, então, a libra e o soldo serão moedas puramente ideais. Dar-se-á a cada moeda a denominação de tantas libras e de tantos soldos que se deseje: a variação poderá ser contínua porque é tão fácil dar nome a uma coisa quanto é difícil mudar a própria coisa. Para suprimir a fonte de abusos, seria uma lei muitíssimo boa em todos os países em que se deseja que o comércio floresça, a que ordenasse o emprego de moedas reais e a proibição de operações que possam torná-las ideais. Nada deve ser tão isento de variação como o que é medida comum de tudo. O negócio, por si mesmo, é muito incerto, e é um grande mal acrescentar uma nova incerteza à que está baseada na natureza da coisa. CAPÍTULO IV DA QUANTIDADE DE OURO E DE PRATA Quando as nações policiadas são senhoras do mundo, o ouro e a prata aumentam todos os dias, seja porque os extraem de seu próprio solo, seja porque os vão procurar nos lugares onde eles se encontram. Pelo contrário, diminuem quando as nações bárbaras passam a dominar. Sabemos como esses metais foram raros quando os godos e os vândalos, de um lado, e os sarracenos e tártaros, de outro, tudo invadiram. CAPÍTULO V CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO A prata extraída das minas da América, transportada para a Europa, enviada ainda daí para o Oriente, favoreceu a navegação da Europa: é uma mercadoria a mais que a Europa recebe em troca da América e que envia em troca para as Índias. Uma maior quantidade de ouro e de prata é, pois, favorável quando se consideram esses metais como mercadorias: ela não o é quando são considerados símbolos, pois sua abundância afeta sua qualidade de símbolo, que está estreitamente relacionada com a sua raridade. Antes da Primeira Guerra Púnica, o cobre estava para a prata como 960 está para 1; ele está hoje aproximadamente como 73 1/2 está para 1. Quando a proporção estiver como estava outrora, a prata só desempenhará melhor sua função de símbolo. CAPÍTULO VI POR QUE RAZÃO A TAXA DE USURA DIMINUIU DA METADE QUANDO DA DESCOBERTA DAS ÍNDIAS O inca Garcilaso diz que na Espanha, após a conquista das Índias, os rendimentos que estavam a um décimo caíram a um vigésimo do valor do capital. Isso teria que acontecer. Grande quantidade de prata foi repentinamente transportada para a Europa; em breve, menos pessoas tiveram necessidade de prata; o preço de todas as coisas aumentou, e o da prata diminuiu; a proporção foi, portanto, rompida, todas as antigas dívidas extinguiram-se. Podemos lembrar a época do Sistema em que todas as coisas tinham grande valor, exceto a prata. Após a conquista das Índias, os que tinham prata foram obrigados a diminuir o preço ou o aluguel de sua mercadoria, isto é, o lucro. A partir dessa época o empréstimo não pôde retomar à antiga taxa, porque a quantidade de prata aumentou todos os anos na Europa. Aliás, oferecendo os fundos públicos de alguns Estados, baseados nas riquezas que o comércio lhes proporcionava, um lucro muito módico, foi preciso que os particulares se pusessem de acordo sobre isto. Enfim, tendo o câmbio oferecido aos homens uma singular facilidade de transportar a prata de um país a outro, a prata não pôde ser rara num lugar sem que acorresse de todos os lados em que ela era frequente. CAPÍTULO VII COMO OS PREÇOS DAS COISAS SE FIXAM NA VARIAÇÃO DAS RIQUEZAS DE SÍMBOLO O dinheiro é o preço das mercadorias ou gêneros. Mas como se fixará este preço? Isto é: por que porção de dinheiro cada coisa será representada? Se comparamos a massa de ouro e de prata que existe no mundo com a soma das mercadorias existentes, é certo que cada gênero ou mercadoria em particular poderá ser comparada com uma determinada porção de toda a massa de ouro e de prata. Como o total de uma está para o total de outra, a parte de uma estará para a parte da outra. Suponhamos que apenas exista um gênero ou mercadoria no mundo, ou que não haja mais do que um único que possa ser comprado e que se divida como o dinheiro; esta parte desta mercadoria corresponderá a uma parte da massa de dinheiro; a metade do total de uma, à metade do total de outra; a décima, a centésima, a milésima de uma, à décima, à centésima, à milésima de outra. Porém, como o que forma a propriedade entre os homens não se encontra no mesmo momento no comércio e como os metais ou as moedas, que são seus símbolos, também não se encontram no mesmo momento, os preços serão fixados na razão composta do total das coisas com o total dos símbolos, e a do total das coisas que estão no comércio com o total dos símbolos que também aí estão; e como as coisas que não estão hoje no comércio aí podem estar amanhã, e como símbolos que hoje aí não estão podem retornar da mesma maneira, o estabelecimento do preço das coisas sempre depende fundamentalmente da razão do total das coisas com o total dos símbolos. Destarte, o príncipe ou o magistrado não podem mais taxar o valor da mercadoria como não podem estabelecer, por uma ordenança, que a relação de um para dez seja igual à de um para vinte. Tendo Juliano baixado os gêneros na Antioquia, ocasionou uma horrível fome. CAPÍTULO VIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Os negros da costa da África têm um símbolo dos valores sem moeda: é um símbolo puramente ideal, baseado no grau de estima que eles atribuem, em seu espírito, a cada mercadoria, na proporção da necessidade que delas têm. Certo gênero ou mercadoria vale três macutas; outra, seis macutas; outra, dez macutas; é como se dissessem simplesmente três, seis, dez. Estabelece-se o preço pela comparação que se faz entre todas as mercadorias; assim sendo, não possuem moeda particular mas cada porção de mercadoria é moeda da outra. Introduzamos momentaneamente entre nós essa maneira de avaliar as coisas e acrescentemo-la à nossa: todas as mercadorias e gêneros do mundo, ou então todas as mercadorias ou gêneros de um Estado em particular, considerado separado de todos os demais, valerão certo número de macutas; e, dividindo o dinheiro de certo Estado em tantas partes quantas são as macutas, uma parte dividida desse dinheiro será o símbolo de uma macuta. Supondo que a quantidade de dinheiro de um Estado duplica, será necessário para uma macuta o dobro de dinheiro; mas se, dobrando o dinheiro, dobrais também as macutas, a proporção continuará tal como era antes de uma e outra duplicação. Se, desde a descoberta das Índias, o ouro e a prata aumentaram na Europa na proporção de um para vinte, o preço dos gêneros e mercadorias deveria ter subido na proporção de um para vinte. Mas se, de um lado, o número de mercadorias aumentou de um para dois, será necessário que o preço dessas mercadorias e gêneros tenha subido, de um lado, na proporção de um para vinte, e que tenha abaixado na proporção de um para dois, e que não esteja, consequentemente, senão na proporção de um para dez. A quantidade de mercadorias e gêneros cresce com o aumento do comércio; o aumento do comércio, com o aumento do dinheiro que acorre, sucessivamente, e graças a novas comunicações com novas terras e novos mares, que nos proporcionam novos gêneros e novas mercadorias. CAPÍTULO IX DA RARIDADE RELATIVA DO OURO E DA PRATA Além da abundância e da raridade positiva do ouro e da prata, há ainda uma abundância e uma raridade relativa de um desses metais para o outro. A avareza guarda o ouro e a prata porque, como ela não pretende consumir, aprecia símbolos que não se destroem. Prefere guardar o ouro à prata porque sempre receia perder e pode esconder melhor o que tem menor volume. O ouro desaparece, portanto, quando a prata se torna comum, porque cada um o tem para esconder; o ouro reaparece quando a prata se torna rara, porque se é obrigado a retira-lo de seus esconderijos. É, portanto, uma regra: o ouro é comum quando a prata é rara, e o ouro é raro quando a prata é comum. Isso mostra a diferença da abundância e da raridade relativa com a abundância e a raridade real: coisas de que muito falarei. CAPÍTULO X DO CAMBIO É a abundância e a raridade relativa das moedas dos diversos países que formam o que chamo câmbio. O câmbio é uma fixação do valor atual e momentâneo das moedas. O dinheiro, como metal, tem um valor como todas as demais mercadorias; e tem ainda um valor que decorre do fato de ser capaz de se tomar o símbolo de outras mercadorias; e se fosse apenas uma simples mercadoria, não se pode duvidar que perderia muito de seu preço. O dinheiro, como moeda, tem um valor que o príncipe pode fixar em algumas relações e que não poderia fixar em outras. O príncipe, 1°, estabelece uma proporção entre uma quantidade de dinheiro como metal e a mesma quantidade como moeda; 2°, fixa a que há entre diversos metais empregados como moeda; 3°, estabelece o peso e o título de cada peça de moeda; enfim, dá a cada peça este valor ideal de que já falei; chamarei o valor da moeda nessas quatro relações de valor positivo, porque pode ser fixado por uma lei. As moedas de cada Estado têm, além disso, um valor relativo, no sentido que são comparadas com as moedas de outros países: é este valor relativo que o câmbio estabelece. Ele muito depende do valor positivo. É estabelecido pela estimação mais geral dos negociantes e não pode sê-lo pela ordenança do príncipe porque varia incessantemente e depende de mil circunstâncias. Para fixar o valor relativo, as diversas nações se regulamentarão muito pela que tem mais dinheiro. Se ela tem tanto dinheiro quanto todas as outras juntas, será muito necessário que cada uma se compare com ela; o que fará com que elas se regulem aproximadamente entre si como se comparam com a nação principal. No estado atual do universo, é a Holanda esta nação de que falamos. Examinemos o câmbio em relação a ela. Há na Holanda uma moeda chamada florim; o florim vale vinte soldos, ou quarenta meios soldos, ou grossos. Para simplificar as ideias imaginemos que não existam florins na Holanda e que só existam grossos: um homem que possuir mil florins terá quarenta mil grossos, e assim por diante. Ora, o câmbio com a Holanda consiste em saber quantos grossos valerá cada moeda dos outros países; e como se conta, ordinariamente, na França, por escudos de três libras, o câmbio indagará quantos grossos valerá um escudo de três libras. Se o câmbio estiver a cinquenta e quatro, o escudo de três libras valerá cinquenta e quatro grossos; se estiver a sessenta valerá sessenta grossos; se o dinheiro estiver raro na França, o escudo de três libras valerá mais grossos; se estiver abundante valerá menos grossos. Esta raridade ou esta abundância, de que resulta a mutação do câmbio, não é a raridade ou a abundância real; é uma raridade ou abundância relativa; por exemplo: quando a França tem mais necessidade de ter fundos na Holanda do que os holandeses têm necessidade de tê-los na França, o dinheiro é chamado comum na França e raro na Holanda; e vice-versa. Suponhamos que o câmbio com a Holanda esteja a cinquenta e quatro. Se a França e a Holanda formassem apenas uma cidade, proceder-se-ia tal qual quando se dá a moeda de um escudo: o francês tiraria de seu bolso três libras e o holandês tiraria do seu cinquenta e quatro grossos. Porém, como Paris é distante de Amsterdam, cumpre que o que me dá por meu escudo de três libras cinquenta e quatro grossos que ele possui na Holanda, me dê uma letra de câmbio de cinquenta e quatro grossos sobre a Holanda. Não se trata mais, agora, de cinquenta e quatro grossos mas de uma letra de cinquenta e quatro grossos. Destarte, para julgar da raridade ou da abundância de dinheiro, é preciso saber se há, na França, mais letras de cinquenta e quatro grossos destinadas à França do que escudos destinados à Holanda. Se há muitas letras oferecidas pelos holandeses e poucos escudos oferecidos pelos franceses, o dinheiro é raro na França e comum na Holanda, e é necessário que o câmbio se eleve e que, para meu escudo, me seja oferecido mais de cinquenta e quatro grossos; do contrário não o daria; e vice-versa. Vemos que as diversas operações do câmbio formam uma conta de receita e de despesa que sempre cumpre saldar; e que um Estado que deve não se quita mais com os outros pelo câmbio do que um particular paga uma dívida cambiando dinheiro. Suponho que não existam mais do que três Estados no mundo: a França, a Espanha e a Holanda; que diversos particulares da Espanha devam na França o valor de cem mil marcos de prata e que diversos particulares da França devam na Espanha cento e dez mil marcos; e que alguma circunstância fez com que, cada um, na Espanha e na França, quisesse, repentinamente, retirar seu dinheiro: que fariam as operações do câmbio? Quitariam reciprocamente essas duas nações da soma de cem mil marcos; mas a França continuaria devendo dez mil marcos na Espanha, e os espanhóis teriam sempre letras de câmbio contra a França, no valor de dez mil marcos, e a França não teria absolutamente nada sobre a Espanha. Se a Holanda se encontrasse na situação contrária com a França e se, por saldo, lhe devesse dez mil marcos, a França poderia pagar a Espanha de duas maneiras: ou dando a seus credores na Espanha letras de câmbio sobre seus devedores da Holanda no valor de dez mil marcos, ou, então, enviando dez mil marcos de dinheiro em espécie para a Espanha. A consequência disso é que quando um Estado tem necessidade de remeter uma soma de dinheiro para outro país, pela natureza da coisa, é indiferente que envie dinheiro ou letras de câmbio. A vantagem dessas duas maneiras de pagar depende unicamente das circunstâncias atuais; será necessário verificar o que, neste momento, dará mais grossos na Holanda: o dinheiro levado em espécie ou uma letra de câmbio sobre a Holanda equivalente à mesma soma em dinheiro. Quando o mesmo título e o mesmo peso do dinheiro na França me rendem um mesmo peso e um mesmo título do dinheiro na Holanda, dizemos que o câmbio está ao par. No estado atual das moedas o par está aproximadamente a cinquenta e quatro grossos por escudo: quando o câmbio estiver acima de cinquenta e quatro grossos, diremos que está alto; quando estiver abaixo, diremos que está baixo. Para saber se, numa certa situação de câmbio, o Estado ganha ou perde, é preciso considera-lo devedor, credor e comprador. Quando o câmbio está mais baixo que o par, ele perde como devedor, ganha como credor; perde como comprador, ganha como vendedor. Percebemos claramente que perde como devedor: por exemplo, devendo a França à Holanda certo número de grossos, quanto menos o escudo valer, tanto maior será a quantidade de escudos necessária para pagar: ao contrário, se a França é credora de um certo número de grossos, quanto menos cada escudo valer grossos, mais escudos ela receberá. O Estado perde ainda como comprador, pois é sempre necessário o mesmo número de grossos para comprar a mesma quantidade de mercadorias: e, quando o câmbio baixa, cada escudo da França valerá menos grossos. Pelo mesmo motivo, o Estado ganha como vendedor: vendo minha mercadoria na Holanda pelo mesmo número de grossos que a vendia; terei, portanto, mais escudos na França quando me forem necessários cinquenta e quatro grossos para obter esse mesmo escudo: o contrário de tudo isso acontecerá ao outro Estado. Se a Holanda deve determinado número de escudos, ela ganhará; e se lhe devem, ela perderá; se ela vende, perderá; se compra, ganhará. É, portanto, necessário observar o seguinte: quando o câmbio está abaixo do par, por exemplo, se está a cinquenta, em vez de estar a cinquenta e quatro, acontecerá que a França, enviando pelo câmbio cinquenta e quatro mil escudos para a Holanda, apenas comprará mercadorias no valor de cinquenta mil; e que, de outro lado, a Holanda, enviando o valor de cinquenta mil escudos para a França, comprará no valor de cinquenta e quatro mil, o que determinaria uma diferença de 8/54, ou seja, mais de um sétimo de perda para a França; de sorte que seria necessário enviar para a Holanda um sétimo a mais em dinheiro ou em mercadoria, o que seria desnecessário se o câmbio estivesse ao par; e como o mal sempre aumenta, já que semelhante dívida faria o câmbio diminuir ainda mais, a França estaria, no final, arruinada. Parece, digo, que isso deveria ocorrer, mas não ocorre por causa do princípio que estabeleci alhures: o de que os Estados sempre tendem a se equilibrar e a procurar sua liberação. Assim, apenas emprestam na proporção em que podem pagar e só compram na medida em que vendem. E, tomando o exemplo acima, se o câmbio cai na França de cinquenta e quatro a cinquenta, o holandês que comprava mercadorias por mil escudos e que pagava cinquenta e quatro mil grossos, não pagará mais que cinquenta mil se o francês quiser consentir nisso. Porém, a mercadoria da França se elevará insensivelmente; o lucro será dividido entre franceses e holandeses, pois, quando um negociante pode ganhar, ele partilha facilmente seu lucro; far-se-á, portanto, uma comunicação do lucro entre o francês e o holandês. Da mesma maneira, o francês, que comprava mercadorias da Holanda por cinquenta e quatro mil grossos, e que pagava com mil escudos quando o câmbio estava a cinquenta e quatro, seria obrigado a acrescentar 4/54 a mais em escudos da França para comprar as mesmas mercadorias. Mas o comerciante francês, que perceberá a perda que teria, quererá dar menos pela mercadoria da Holanda. Ocorrerá, portanto, uma comunicação de perda, entre o comerciante francês e o holandês; o Estado colocar-se-á insensivelmente na balança e a baixa do câmbio não terá todos os inconvenientes que se deveriam temer. Quando o câmbio está mais baixo que o par, um negociante pode, sem diminuir sua fortuna, remeter seus fundos aos países estrangeiros; porque, trazendo-os de volta, torna a ganhar o que perdeu; mas um príncipe que só envia a países estrangeiros um dinheiro que nunca deve retornar perde sempre. Quando os negociantes fazem muitos negócios num país, o câmbio sofre infalivelmente. Isso decorre do fato de se assumirem muitos compromissos e de se comprarem muitas mercadorias; e sacar-se sobre o país estrangeiro para pagá-los. Se um príncipe acumula muito dinheiro em seu Estado, o dinheiro poderá tornar-se raro realmente, e comum relativamente; por exemplo, se, na mesma época, este Estado devesse comprar muitas mercadorias no país estrangeiro, o câmbio baixaria, apesar de o dinheiro ser raro. O câmbio de todas as praças tende sempre a se colocar numa certa proporção; e isto reside na natureza da própria coisa. Se o câmbio da Irlanda com a Inglaterra está mais baixo que o par, e se o da Inglaterra com a Holanda estiver ainda mais baixo que o par, o da Irlanda com a Holanda estará ainda mais baixo; isto é, na razão composta do da Irlanda com a Inglaterra e o da Inglaterra com a Holanda; pois um holandês, que pode fazer vir seus fundos indiretamente da Irlanda através da Inglaterra, não desejará pagar mais caro para trazê-los diretamente. Digo que isso deveria ser assim; entretanto, isso não acontece exatamente assim; há sempre circunstâncias que fazem variar as coisas; e a diferença do lucro que há em sacar numa praça, ou em sacar em outra, constitui a arte ou a habilidade particular dos banqueiros, questão que não cabe tratar aqui. Quando um Estado eleva sua moeda, por exemplo, quando chama de seis libras ou dois escudos o que chamava apenas de três libras ou um escudo, esta nova denominação, que nada acrescenta de real ao escudo, não deve proporcionar um só grosso a mais pelo câmbio. Não se deveria ter, para os dois novos escudos, senão a mesma quantidade de grossos que se recebia pelo antigo; e, se isso não acontece, não é absolutamente por efeito da fixação em si mesma, mas do efeito que ela produz como nova e do que produz como súbita. O câmbio diz respeito a negócios começados e só se regula depois de certo tempo. Quando um Estado, em lugar de elevar simplesmente sua moeda por uma lei, faz nova fundição a fim de fazer de uma moeda forte uma moeda mais fraca, acontece que, durante o tempo da operação, há dois tipos de moedas; a forte, que é a velha, e a fraca, que é a nova; e como a forte está depreciada e só é recebida na Casa da Moeda e como, consequentemente, as letras de câmbio devem ser pagas em espécies novas, parece que o câmbio deveria regular-se de acordo com a espécie nova. Se, por exemplo, o enfraquecimento na França era da metade e se o antigo escudo de três libras desse sessenta grossos na Holanda, o novo escudo deveria valer apenas trinta grossos. De outro lado, parece que o câmbio se deveria regular sobre o valor da espécie velha, porque o banqueiro que tem dinheiro e que adquire letras é obrigado a entregar à Casa da Moeda as espécies velhas, para adquirir as novas sobre as quais ele perde. O câmbio se colocará, pois, entre o valor da espécie nova e o da espécie velha. O valor da espécie velha cai, por assim dizer, porque já há no comércio espécie nova, e porque o banqueiro não pode manter rigor, tendo interesse em fazer sair prontamente o dinheiro velho de sua caixa para fazê-lo circular, sendo mesmo forçado a isso para fazer seus pagamentos. Por outro lado, o valor da espécie nova eleva-se, por assim dizer, porque o banqueiro, com a espécie nova, se encontra numa circunstância onde iremos ver que ele pode, com grande vantagem, obter a antiga. O câmbio colocar-se-á, portanto, como disse, entre a espécie nova e a espécie velha. Então, os banqueiros lucrarão fazendo sair a espécie antiga do Estado, porque obtêm com isso a mesma vantagem que proporcionaria uma troca regulada sobre a espécie antiga, ou seja, muitos grossos na Holanda; e têm um retomo em câmbio, regulado entre a espécie nova e a espécie antiga, isto é, mais baixo; o que proporciona muitos escudos na França. Suponho que três libras da espécie antiga rendam, pelo câmbio atual, quarenta e cinco grossos e que, transportando esse mesmo escudo para a Holanda, obtenha-se por ele sessenta; mas, com uma letra de quarenta e cinco grossos, obter-se-á um escudo de três libras na França, o qual, transportado em espécie para a Holanda, dará ainda sessenta grossos: toda espécie antiga sairá, portanto, do Estado que faz a refundição, e o lucro será dos banqueiros. Para remediar isso, ser-se-á forçado a empreender nova operação. O Estado que efetua a refundição enviará, ele próprio, grande quantidade de espécies antigas para a nação que regula o câmbio; e, ali obtendo um crédito, fará elevar o câmbio até o ponto em que se terão, com pequena diferença, tantos grossos pelo câmbio de um escudo de três libras quanto se teriam fazendo sair do país um escudo de três libras em espécies antigas. Digo com pequena diferença porque quando o lucro for módico não se será tentado a fazer sair a espécie, por causa dos gastos de transporte e dos riscos do confisco. Convém dar uma ideia bem clara disso. O Senhor Bemard, ou qualquer outro banqueiro que o Estado queira empregar, oferece suas letras sobre a Holanda, e as entrega a um, dois ou três grossos acima do câmbio atual; estabeleceu uma provisão nos países estrangeiros por meio das espécies antigas que ele mandou transportar continuamente; portanto, fez com que o câmbio se elevasse ao ponto que acabamos de dizer. Entretanto, à força de dar suas letras, apoderou-se de todas as espécies novas, e força os outros banqueiros, que têm pagamentos a fazer, a levar suas espécies antigas à Casa da Moeda; e, além disso, como obteve insensivelmente todo o dinheiro, forçou, por sua vez, os demais banqueiros a lhe darem letras a um câmbio muito alto; o lucro final o indeniza em grande parte da perda inicial. Percebemos que, durante toda esta operação, o Estado deve sofrer violenta crise. O dinheiro tornar-se-á muito raro: 1°, porque é necessário depreciar-lhe a maior parte; 2° porque será necessário transportar uma parte para os países estrangeiros; 3° porque todos o guardarão, e ninguém desejará deixar ao príncipe um lucro que se espera obter para si mesmo. É perigoso fazer esta operação com lentidão: é perigoso fazê-la muito rapidamente. Se o lucro pressuposto é imo dera do, os inconvenientes aumentam na mesma medida. Vimos acima que, quando o câmbio estava mais baixo que a espécie, era lucrativo fazer sair o dinheiro: pela mesma razão, quando ele está mais alto que a espécie, é lucrativo fazê-lo retomar. Porém, há um caso em que é lucrativo fazer sair a espécie quando o câmbio está ao par; é quando é enviada a países estrangeiros para ser remarcada ou refundida. Quando retoma, obtém-se lucro para a Casa da Moeda, seja empregando-a no país, seja adquirindo-se letras para o estrangeiro. Se, num Estado, se formasse uma companhia que tivesse um número muito considerável de ações, e se se fizesse, depois de alguns meses, elevar essas ações vinte ou vinte e cinco vezes acima do valor da primeira compra, e se este mesmo Estado tivesse estabelecido um banco cujas cédulas devessem realizar a função da moeda; e se o valor numerário dessas cédulas fosse prodigioso, para corresponder ao prodigioso valor numerário das ações (é o sistema do Sr. Law), seguir-se-ia da natureza da coisa que estas ações e cédulas anular-se-iam da mesma maneira como teriam sido estabelecidas. Não se poderia elevar repentinamente as ações vinte ou vinte e cinco vezes acima de seu primeiro valor, sem oferecer a muitos o meio de obter imensas riquezas em papel: cada um procuraria assegurar sua fortuna e, como o câmbio oferece a via mais fácil para desnatura-la, ou para transportá-la para onde se queira, remeter-se-ia incessantemente uma parte de seus efeitos para a nação que regulamenta o câmbio. Um projeto contínuo de remeter para os países estrangeiros faria baixar o câmbio. Suponhamos que, no tempo do Sistema, na relação do título e do peso da moeda de prata, a taxa de câmbio fosse de quarenta grossos por escudo; se uma inumerável quantidade de papel fosse transformada em moeda, não mais se desejaria dar senão trinta e nove grossos por escudo, e, seguida, trinta e oito, trinta e sete etc. Isto iria tão longe, que não se dariam mais que oito grossos e, finalmente, não mais haveria câmbio. Era o câmbio que devia, neste caso, regular na França a proporção da prata com o papel. Supondo que, pelo peso e título da prata, o escudo de três libras valesse quarenta grossos e que se realizando o câmbio em papel, o escudo de três libras em papel valesse apenas oito grossos, a diferença seria de quatro quintos. O escudo de três libras em papel valeria portanto quatro quintos a menos que o escudo de três libras em prata. CAPÍTULO XI DAS OPERAÇÕES QUE OS ROMANOS EFETUARAM SOBRE AS MOEDAS Certas medidas de autoridade tomadas na França atual, com relação às moedas, em dois ministérios consecutivos, os romanos as tomaram em escala ainda maior, não na época dessa república corrompida, nem na época dessa república que não passava de uma anarquia, mas quando, na força de sua instituição, pela prudência e pela coragem, depois de ter vencido as cidades da Itália, ela disputava o império aos cartagineses. Sinto-me bastante inclinado a aprofundar um pouco esta matéria, a fim de que não se tome por um exemplo o que não o é. Na Primeira Guerra Púnica, o asse, que devia ser de doze onças de cobre, não pesava mais do que duas; e, na Segunda Guerra Púnica, não pesava mais do que uma. Esta redução corresponde ao que chamamos atualmente aumento das moedas. Retirar de um escudo de seis libras a metade da prata para convertê-lo em dois, ou fazê-lo valer doze libras, é precisamente a mesma coisa. Não nos resta monumento da maneira como os romanos fizeram sua operação na Primeira Guerra Púnica; mas a que fizeram na segunda assinala uma prudência admirável. A república não se encontrava em situação de saldar suas dívidas; o asse pesava duas onças de cobre e o denário, valendo dez asses, valia vinte onças de cobre. A república cunhou asses de uma onça de cobre; ganhou metade sobre seus credores; pagou um denário com essas dez onças de cobre. Essa operação produziu grande abalo no Estado; era necessário que ele fosse o menor possível; continha uma injustiça; era preciso que fosse a menor possível. Tinha como objetivo a libertação da república em face de seus cidadãos, não era necessário que tivesse o da libertação dos cidadãos entre si. Isto levou a efetuar uma segunda operação; e ordenou-se que o denário, que até então só continha dez asses, contivesse dezesseis. O resultado dessa dupla operação foi que, enquanto os credores da república perdiam a metade, os dos particulares só perdiam um quinto; as mercadorias aumentavam apenas de um quinto, a mudança real na moeda era somente de um quinto; é fácil perceber as outras consequências. Os romanos se conduziram, portanto, melhor do que nós, que envolvemos, em nossas operações, quer as fortunas públicas, quer as fortunas particulares. Isto não é tudo; veremos como procederam em circunstâncias mais favoráveis que as nossas. CAPÍTULO XII CIRCUNSTÂNCIAS NAS QUAIS OS ROMANOS FIZERAM SUAS OPERAÇÕES SOBRE A MOEDA Antigamente havia muito pouco ouro e prata na Itália. Este país possui poucas ou nenhumas minas de ouro e de prata. Quando Roma foi tomada pelos gauleses, não se encontraram nela mais que mil libras de ouro. Entretanto, os romanos haviam saqueado muitas cidades poderosas e transportado suas riquezas para Roma. Durante muito tempo só se serviram de moedas de cobre; só depois da paz de Pirro contaram com prata suficiente para dela fazerem moedas. Cunharam denários desse metal que valiam dez asses ou dez libras de cobre. Desde então, a proporção da prata para o cobre era como de 1 para 960, pois o denário romano, valendo dez asses ou dez libras de cobre, valia cento e vinte onças de cobre; e o mesmo denário, valendo um oitavo de onça de prata, estabelecia a proporção que acabamos de indicar. Roma, tornando-se senhora dessa parte da Itália, a mais próxima da Grécia e da Sicília, encontrou-se pouco a pouco entre dois povos ricos: os gregos e os cartagineses; seu dinheiro aumentou; e a proporção de 1 para 960 entre a prata e o cobre não mais se podendo manter, efetuou diversas operações que não conhecemos sobre as moedas. Sabemos apenas que, no começo da Segunda Guerra Púnica, o denário romano não valia mais que vinte onças de cobre; e que assim a proporção entre a prata e o cobre não mais era de 1 para 160. A redução era considerável, pois a república ganhou cinco sextos sobre toda moeda de cobre. Mas se fez apenas o que a natureza da coisa exigia e restabeleceu-se a proporção entre os metais que serviam de moeda. A paz que pôs fim à Primeira Guerra Púnica deixou os romanos senhores da Sicília. Logo eles entraram na Sardenha, começaram a conhecer a Espanha: a massa de prata aumentou ainda em Roma. Fez-se a operação que reduziu o denário de prata de vinte onças para dezesseis, que teve como consequência restabelecer a proporção entre a prata e o cobre; esta proporção era de 1 para 160; passou a ser de 1 para 128. Examinai os romanos; nunca os encontrareis tão superiores como na escolha das circunstâncias nas quais praticaram os bens e os males. CAPÍTULO XIII OPERAÇÕES SOBRE AS MOEDAS NO TEMPO DOS IMPERADORES Nas operações que se efetuaram sobre as moedas no tempo das repúblicas, procedeu-se por meio da diminuição: o Estado confiava ao povo suas necessidades e não pretendia seduzi-lo. Na época dos imperadores, procedeu-se por meio da liga. Esses príncipes, reduzidos ao desespero por suas próprias liberalidades, se viram obrigados a alterar as moedas; via indireta, que diminuía o mal e que parecia não toca-lo: retirava-se uma parte da dádiva e ocultava-se a mão; e, sem que se falasse da diminuição do soldo ou das generosidades, essas se encontravam diminuídas. Vemos ainda, nas exposições, medalhas chamadas forradas que têm apenas uma lâmina de prata cobrindo o cobre. Num fragmento do livro LXXVII de Dion há referência a esta moeda. Dídio Juliano começou o enfraquecimento. Sabe-se que a moedas de Caracala tivera mais da metade de liga; a de Alexandre Severo, dois terços; o enfraquecimento continuou; e no período de Galíano não se via mais do que cobre prateado. Percebe-se que essas operações violentas não poderiam efetuar-se atualmente: um príncipe enganaria a si mesmo e não enganaria ninguém. O câmbio ensinou o banqueiro a comparar todas as moedas do mundo e a dar-lhes o justo valor; o título das moedas não pode mais ser secreto. Se um príncipe lança o bilhão, todos continuam e o fazem em seu lugar; as espécies fortes saem em primeiro lugar, e lhe são devolvidas fracas. Se, como os imperadores romanos, ele enfraquece a prata sem enfraquecer o ouro, verá subitamente o ouro desaparecer, e será reduzido à sua má prata. O câmbio, como disse no livro precedente suprimiu as grandes medidas de autoridade, ou pelo menos seu êxito. CAPÍTULO XIV COMO O CÂMBIO INCOMODA OS ESTADOS DESPÓTICOS A Moscóvia deseja sair de seu despotismo e não o consegue. O estabelecimento do comércio exige o do câmbio; e as operações do câmbio contradizem todas as suas leis. Em 1745, a czarina estabeleceu uma ordenança para expulsar os judeus porque eles tinham enviado para países estrangeiros o dinheiro dos que tinham sido exilados na Sibéria e o dos estrangeiros que estavam a serviço. Todos os súditos do império, como escravos, não podiam sair, nem fazer sair seus bens, sem permissão. O câmbio, que possibilita o transporte de dinheiro de um país para outro, é portanto contraditório com as leis da Moscóvia. O próprio comércio contradiz suas leis. O povo é composto apenas de escravos ligados às terras, e de escravos chamados eclesiásticos ou gentis-homens, porque são os senhores desses escravos. Sobram, pois, poucas pessoas para o terceiro estado, que deve formar os operários e os comerciantes. CAPÍTULO XV USOS DE ALGUMAS REGIÕES DA ITÁLIA Em algumas regiões da Itália estabeleceram-se leis para impedir que os súditos vendessem suas propriedades rurais para transportar seu dinheiro para países estrangeiros. Essas leis poderiam ser boas quando as riquezas de cada Estado lhes pertencessem de tal modo, que fosse muito difícil fazê-las passar a outro. Mas desde que, pelo uso do câmbio, as riquezas não pertencem, de alguma maneira, a nenhum Estado em particular, e havendo muita facilidade em transportá-las de uma região a outra, é uma má lei a que não permite dispor, para seus negócios, dos fundos territoriais, uma vez que se pode dispor de seu dinheiro. Esta lei é má porque dá vantagens aos efeitos mobiliários sobre os fundos territoriais, porque ela dissuade os estrangeiros de virem estabelecer-se no país, e, finalmente, porque pode ser burlada. CAPÍTULO XVI DO AUXÍLIO QUE O ESTADO PODE AUFERIR DOS BANQUEIROS Os banqueiros são feitos para trocar o dinheiro e não para emprestá-lo. Se o príncipe só os utiliza para trocar seu dinheiro, como só efetua grandes negócios, o menor lucro que ele lhes dá por suas remessas torna-se um objeto considerável; e, se lhe pedem grandes lucros, ele pode ter certeza de que se trata de uma falha de administração. Quando, pelo contrário, eles são usados para fazer adiantamentos, a arte deles consiste em alcançar grandes lucros com esse dinheiro, sem que se possa acusá-las de usura. CAPÍTULO XVII DAS DÍVIDAS PÚBLICAS Algumas pessoas acreditaram que seria conveniente que um Estado devesse a si próprio: pensaram que isso multiplicaria as riquezas, aumentando a circulação. Creio que se confundiu um papel circulante, que representa a moeda, ou um papel circulante que é o signo dos lucros que uma companhia auferiu ou auferirá do comércio, com um papel que representa uma dívida, os dois primeiros são muito vantajosos para o estado; o último não pode sê-lo: e tudo que se pode esperar dele é que seja um bom penhor para os particulares da dívida da nação, isto é, que lhes proporcione o pagamento. Mas eis os inconvenientes que disso resultam: 1°) Se os estrangeiros possuem muitos papéis que representam uma dívida, tiram cada ano, da nação, uma soma considerável para os juros. 2°) Numa nação assim perpetuamente devedora, o câmbio deve ser muito baixo. 3°) O imposto arrecadado para o pagamento dos juros da dívida prejudica as manufaturas, tornando a mão de obra mais cara. 4°) Retiram-se as verdadeiras rendas do Estado dos que possuem atividade e indústria para transferi-las às pessoas ociosas; isto significa que se facilita o trabalho aos que não trabalham, e se dificulta o trabalho aos que trabalham. Eis os inconvenientes; não conheço as vantagens. Dez pessoas têm, cada uma, mil escudos de renda em fundos territoriais ou em indústrias; isto representa para a nação, a cinco por cento, um capital de duzentos mil escudos. Se essas dez pessoas empregassem a metade de suas rendas, isto é, cinco mil escudos, para pagar os juros de cem mil escudos que tomaram emprestados a outros, isto ainda só representa para o Estado duzentos mil escudos: é, na linguagem dos algebristas: 200 000 escudos - 100 000 escudos + 100 000 escudos = 200 000 escudos. O que pode causar erro é que um papel que representa a dívida de uma nação é um signo de riqueza; pois só um Estado rico pode sustentar tal papel sem cair em decadência. Mas, para que não caia, é preciso que o Estado tenha de fato grandes riquezas. Diz-se que não há mal algum porque há recursos contra este mal; e diz-se que o mal é um bem porque os recursos superam o mal. CAPÍTULO XVIII DO PAGAMENTO DAS DÍVIDAS PÚBLICAS Faz-se mister que exista uma proporção entre o Estado credor e o Estado devedor. O Estado pode ser credor ao infinito; mas só pode ser devedor até certo ponto; e quando se chega a ultrapassar este ponto, o título de credor desaparece. Se esse Estado ainda possui um crédito que não tenha recebido nenhum dano, poderá fazer o que se praticou com tanto êxito num Estado da Europa: obter grande quantidade de espécies e oferecer a todos os particulares seu reembolso, a menos que esses não queiram reduzir o juro. Com efeito, assim como, quando o Estado pede emprestado, são os particulares que fixam a taxa do juro, quando o Estado quer pagar, a ele cabe fixar tal juro. Não basta reduzir o juro; é necessário que a redução constitua um fundo de amortização que reembolse cada ano parte dos capitais: operação tanto mais feliz quanto seu êxito aumenta todos os dias. Quando o crédito do Estado não é completo, isto é mais uma razão para tentar formar um fundo de amortização; porque este fundo, uma vez constituído, logo restitui a confiança. 1°) Se o Estado é uma república, cujo governo comporta, por sua natureza, que se elaborem projetos duradouros, o capital do fundo de amortização pode ser pouco considerável: numa monarquia é necessário que este capital seja maior. 2°) Os regulamentos devem ser tais, que todos os cidadãos do Estado suportem o peso da instituição desses fundos porque todos arcam com o peso do estabelecimento da dívida: o credor do Estado, pelas somas com que contribui, paga-se a si próprio. 3°) Há quatro classes de pessoas que pagam as dívidas do Estado: os proprietários de fundos territoriais, os que exercem sua indústria pelo negócio, os lavradores e os artesãos, e, finalmente, os rendeiros do Estado ou dos particulares. Destas quatro classes, a última, em caso de necessidade, deveria ser, ao que parece, a menos poupada, porque é uma classe inteiramente passiva no Estado, enquanto este mesmo Estado é sustentado pela força ativa das três outras. Mas, como não se pode sobrecarregá-la mais sem destruir a confiança pública, da qual o Estado, em geral, e essas três classes, em particular, têm suprema necessidade; como a fé pública não pode faltar a certo número de cidadãos sem que pareça faltar a todos; e como a classe dos credores é sempre mais exposta aos projetos dos ministros, e como está sempre mais à vista e à mão, cumpre que o Estado lhe dispense especial proteção, e a parte devedora não tenha nunca a menor vantagem sobre a credora. CAPÍTULO XIX DOS EMPRÉSTIMOS A JUROS O dinheiro é o símbolo dos valores. É óbvio que aquele que tem necessidade deste símbolo deve aluga-lo, como procede com todas as coisas das quais pode ter necessidade. Toda a diferença consiste em que as outras coisas podem ser alugadas ou compradas, ao passo que o dinheiro, que é o preço das coisas, se aluga e não se compra. É efetivamente uma ação muito louvável emprestar a outro dinheiro sem juros, mas percebemos que isto só pode ser um conselho religioso e não uma lei civil. Para que o comércio possa ser bem exercido cumpre que o dinheiro tenha um preço mas que esse preço seja pouco considerável. Se for muito alto, o negociante, vendo que esse lhe custaria mais em juros do que poderia ganhar em seu comércio, nada empreenderá. Se o dinheiro não tem preço, ninguém o emprestará, e o negociante tampouco nada empreenderá. Engano-me quando digo que ninguém o emprestará. Sempre é necessário que os negócios da sociedade continuem; a usura se estabelece, mas com as desordens experimentadas em todas as épocas. A lei de Maomé confunde a usura com o empréstimo a juro. A usura aumenta nos países maometanos na proporção da severidade da proibição: o prestamista indeniza-se do perigo da contravenção. Nesses países do Oriente, a maioria dos homens nada tem de garantido: quase não há relação entre a posse atual de uma soma e a esperança de reavê-la uma vez emprestada: portanto, a usura aumenta aí na proporção do perigo da insolubilidade. CAPÍTULO XX DAS USURAS MARÍTIMAS A grandeza da usura marítima baseia-se sobre duas coisas: o perigo do mar, que faz com que ninguém se exponha a emprestar seu dinheiro senão para obter muito mais, e a facilidade que o comércio confere ao que pede emprestado de fazer rapidamente grandes negócios, e em grande número, ao passo que as usuras de terra, não estando baseadas em nenhuma dessas duas razões, são ou proscritas pelos legisladores ou, o que é mais sensato, reduzidas a justos limites. CAPÍTULO XXI DO EMPRÉSTIMO POR CONTRATO E DA USURA ENTRE OS ROMANOS Além do empréstimo feito para o comércio, há também outra espécie de empréstimo feito por um contrato civil, do qual resulta um juro ou usura. Como o povo, entre os romanos, aumentasse cada dia seu poder, os magistrados procuraram adula-lo e fazê-lo adotar leis que lhe fossem das mais agradáveis. O povo restringiu os capitais: diminuiu os juros; proibiu recebê-los: suprimiu as coerções corporais; finalmente, a abolição das dívidas foi posta em discussão cada vez que um tribuno queria tornar-se popular. Estas contínuas modificações, quer por leis, quer por plebiscitos, naturalizaram a usura em Roma, pois os credores, vendo o povo como devedor, legislador e juiz, não mais tiveram confiança nos contratos. O povo, como um devedor desacreditado, não convidava ninguém a lhe emprestar senão a altos juros; tanto mais que, se as leis só apareciam de tempos em tempos, as queixas do povo eram contínuas e intimidavam sempre os credores. Isto fez com que fossem abolidos, em Roma, todos os meios honestos de emprestar e de pedir emprestado e que uma usura horrível, sempre fulminada? e sempre renascente, nela se instalasse. O mal advinha de essas coisas não terem sido bem arranjadas. As leis extremas no bem engendram o mal extremo. Cumpria pagar pelo empréstimo de dinheiro e pelo risco das penas da lei. CAPÍTULO XXII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Os primeiros romanos não dispunham de leis para regulamentar a taxa de usura. Nas disputas que surgiram a esse respeito entre plebeus e patrícios, na própria sedição do Monte Sagrado, alegou-se, de um lado, apenas a fé e, de outro, apenas a severidade dos contratos. Seguiam-se, portanto, as convenções particulares; e creio que as mais comuns eram de doze por cento ao ano. Digo isso porque, na antiga linguagem dos romanos, o juro a seis por cento era chamado metade da usura; o juro a três por cento, o quarto da usura; a usura total era, pois, o juro a doze por cento. Se se perguntar como tão grandes usuras puderam estabelecer-se entre um povo que quase não tinha comércio, diria que este povo, amiudadamente obrigado a partir sem soldo para a guerra, tinha muito frequentemente necessidade de pedir emprestado e, efetuando incessantemente expedições bem-sucedidas, tinha constantemente facilidade de pagar. Percebemos isso perfeitamente no relato das demandas surgidas a esse respeito; aí não se nega a avareza dos que emprestavam mas se diz que os queixosos poderiam pagar se tivessem tido uma conduta mais regular. Faziam-se, portanto, leis que apenas influíam sobre a situação atual: ordenava-se, por exemplo, que os que se alistassem para a guerra que se tinha que sustentar não seriam perseguidos por seus credores; que os que estivessem nas cadeias seriam soltos; que os mais indigentes seriam levados para as colônias: algumas vezes abria-se o tesouro público. O povo apaziguava-se pelo alívio dos males presentes; e, como nada exigia para o futuro, o senado não cuidava de preveni-lo. Na época em que o senado defendia com tanta constância a causa das usuras, o amor pela pobreza, pela frugalidade, pela mediocridade, era extremo entre os romanos: mas tal era a constituição, que os principais cidadãos suportavam todos os encargos do Estado e o baixo povo nada pagava. Qual o meio de privar aqueles do direito de demandar seus devedores e de exigir-lhes que quitem suas obrigações e concorram para as necessidades urgentes da república? Diz Tácito que a Lei das Doze Tábuas fixou o juro a um por cento ao ano. É claro que se enganou, e tomou pela Lei das Doze Tábuas outra lei de que vou falar. Se a Lei das Doze Tábuas regulamentou isso, como, nas disputas que se travaram depois entre credores e devedores, não se teria utilizado a sua autoridade? Não se encontra nenhum vestígio dessa lei sobre o empréstimo a juro; e, por menos versado que se seja na história de Roma, ver-se-á que semelhante lei não deveria ser obra dos decênviros. A lei Liciniana, promulgada oitenta e cinco anos depois da Lei das Doze Tábuas, foi uma dessas leis efêmeras às quais nos referimos. Ordenou ela que se subtraísse do capital o que fora pago pelos juros, e que o restante fosse quitado em três pagamentos iguais. No ano 398 de Roma, os tributos Duélio e Menênio fizeram passar uma lei que reduzia os juros a um por cento ao ano. É esta lei que Tãcito confunde com a Lei das Doze Tábuas; e foi a primeira lei feita entre os romanos para fixar a taxa de juro. Dez anos depois, esta usura foi reduzida à metade: posteriormente, foi completamente suprimida, e, a darmos crédito a alguns autores que Tito Lívio conheceu, isto se passou na época do consulado- de C. Márcio Rutílio e de Q. Servílio, no ano 413 de Roma. Aconteceu com esta lei o mesmo que com todas aquelas em que o legislador levou as coisas ao excesso: encontrou-se um meio de eludi-la. Foi preciso fazer muitas outras para confirmá-la, corrigi-la, moderá-la. Ora foram abandonadas as leis para se seguirem os costumes, ora foram abandonados os costumes para se seguirem as leis; porém, neste caso, o costume devia prevalecer facilmente. Quando um homem pede emprestado, encontra um obstáculo na própria lei feita em seu favor: esta lei tem contra si quem ela socorre e quem ela condena. O pretor Semprônio Aselo, tendo permitido aos devedores agir em consequência dessas leis, foi morto pelos credores- por ter querido reavivar a lembrança de uma rigidez que não mais se podia sustentar. Deixo a cidade para lançar um olhar sobre as províncias. Disse alhures que as províncias romanas eram devastadas por um governo despótico e inflexível. Mas isso não é tudo: elas o eram também por usuras horríveis. Cícero afirma? que a gente de Salamina queria pedir emprestado a Roma e que não podia fazê-lo por causa da lei Gabiniana. É necessário que eu pesquise o que era esta lei. Quando os empréstimos a juro foram proibidos em Roma, foram imaginadas todas as espécies de meios para eludir a lei, e, como os aliados e os da nação latina não estavam submetidos às leis civis dos romanos, recorreu-se a um latino ou a um aliado que emprestava seu nome e era, aparentemente, o credor. A lei nada mais fizera, portanto, do que submeter os credores a uma formalidade, e o povo não fora aliviado. O povo queixou-se desta fraude; e Marcos Semprônio, tribuno do povo, através da autoridade do senado, mandou realizar um plebiscito que estipulava que, em matéria de empréstimos, as leis que proibiam os empréstimos a juro entre um cidadão romano e outro seriam válidas igualmente entre um cidadão e um aliado, ou um latino. Nesse tempo, chamavam-se aliados os povos da Itália propriamente dita, que se estendia até o Amo e o Rubicão e que não era governada como as províncias romanas. Afirma Tácito que sempre se cometiam novas fraudes contra as leis feitas para pôr cobro às usuras. Quando não mais se podia emprestar nem pedir emprestado sob o nome de um aliado, foi fácil fazer aparecer um homem das províncias, que emprestava seu nome. Era necessária uma nova lei contra estes abusos; e Cabínío, estabelecendo a famosa lei que tinha como objetivo extirpar a corrupção nos sufrágios, naturalmente deve ter pensado que o melhor meio para consegui-lo era desencorajar os empréstimos: estas duas coisas estavam naturalmente ligadas, pois as usuras sempre aumentavam nas épocas de eleição, porque se necessitava de dinheiro para obter votos. Vemos perfeitamente que a lei Gabiniana estendera o senatus-consulto Semproniano aos provincianos, uma vez que os salaminianos não podiam pedir dinheiro emprestado a Roma por causa desta lei. Bruto, sob nomes emprestados, emprestou-lhes a quatro por cento ao mês e obteve para isso dois senatus-consultos, no primeiro dos quais era dito que este empréstimo não seria considerado uma fraude à lei, e que o governador da Cilícia julgaria de conformidade com as convenções assinaladas pelas disposições dos salaminianos. Sendo o empréstimo a juro proibido pela lei Gabiniana entre as pessoas das províncias e os cidadãos romanos, e tendo estes, então, todo o dinheiro do universo entre suas mãos, foi necessário tenta-los com grandes usuras que fizessem desaparecer, aos olhos da avareza, o perigo de perder a dívida. E como havia em Roma gente poderosa que intimidava os magistrados e fazia calar as leis, foram eles mais audaciosos em emprestar e mais audaciosos na exigência de grandes usuras. Isto fez com que as províncias fossem sucessivamente devastadas por todos os que tinham crédito em Roma; e como cada governador baixava seu edito ao entrar em sua província, na qual estabelecia como lhe agradava a taxa da usura, a avareza ajudava a legislação e a legislação a avareza. Cumpre que os negócios caminhem; e um Estado está perdido se tudo aí permanece na inação. Havia ocasiões em que era necessário que as cidades, os corpos, as sociedades das cidades, os particulares, emprestassem; e a necessidade de pedir emprestado era muito premente, ainda que fosse para prover às devastações dos exércitos, às rapinagens dos magistrados, às concussões dos homens de negócios e aos maus costumes que se estabeleciam todos os dias; pois nunca se foi nem tão rico nem tão pobre. O senado, que tinha o poder executivo, concedia por necessidade, amiúde por favor, a permissão de pedir emprestado dos cidadãos romanos, e estabelecia, então, senatus-consultos, Mas esses próprios senatus-consultos estavam desacreditados pela lei: estes senatus-consultos podiam permitir que o povo exigisse novas tabelas, o que, aumentando o perigo da perda do capital, aumentava ainda mais a usura. Repetirei sempre que é a moderação que governa os homens e não os excessos. Paga menos, diz Ulpiano, quem paga mais tarde. Foi este princípio que orientou os legisladores, depois da destruição da república romana. LIVRO VIGÉSIMO TERCEIRO DAS LEIS NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O NÚMERO DE HABITANTES CAPÍTULO I DOS HOMENS E DOS ANIMAIS EM RELAÇÃO À MULTIPLICAÇÃO DE SUA ESPÉCIE Ó VÊNUS, ó mãe do Amor! ------------------------------------ Desde o primeiro belo dia que teu astro ressuscita, Os zéfiros fazem sentir seu alento amoroso, A terra orna seu seio de brilhantes cores, E o ar é perfumado pelo doce espírito das flores. Ouvem-se os pássaros, ofuscados com teu poder, Por mil tons lascivos celebrarem tua presença: Pela bela novilha veem-se os soberbos touros Saltarem na planície ou atravessarem as águas. Enfim, os habitantes das florestas e das montanhas, Dos rios e dos mares, e dos verdes campos, Ardendo a teu aspecto de amor e de desejo E pondo-se a povoar pela atração do prazer: Tanto se ama seguir-te, e a este atraente domínio Que a beleza dá a tudo o que respira. As fêmeas dos animais têm uma fecundidade quase que constante. Mas, na espécie humana, a maneira de pensar, o caráter, as paixões, as fantasias, os caprichos, a ideia de conservar a beleza, o incômodo da gravidez, o de uma família numerosa, perturbam de mil maneiras a propagação. CAPÍTULO II DOS CASAMENTOS A obrigação natural que tem o pai de nutrir seus filhos fez com que se estabelecesse o casamento, que declara quem deve cumprir esta obrigação. Os povos de que fala Pompônio Mela o fixavam apenas pela semelhança. Entre os povos bem policiados, o pai é aquele que as leis, pela cerimônia do casamento, declararam dever ser tal, porque encontram nele a pessoa que procuram. Esta obrigação, entre os animais, é tal que a mãe pode comumente ser suficiente. Entre os homens, ela é muito maior: os filhos são dotados de razão, mas esta só lhes chega gradualmente. Não é suficiente nutri-los: cumpre também orienta-los: já poderiam viver mas não se podem governar. As conjunções ilícitas pouco contribuem para a propagação da espécie. O pai, que tem a obrigação natural de alimentar e educar os filhos, não é nesse caso fixado, e a mãe, em quem recai a obrigação, encontra mil obstáculos; pela vergonha, pelos remorsos, pelos incômodos de seu sexo, pelo rigor das leis: quase sempre faltam-lhe meios. As mulheres que se submeteram à prostituição pública não podem ter a comodidade de educar seus filhos. Os cuidados dessa educação são mesmo incompatíveis com sua condição; e elas são tão corrompidas, que não poderiam gozar da confiança da lei. Decorre de tudo isso que a continência pública está naturalmente unida à propagação da espécie. CAPÍTULO III DA CONDIÇÃO DOS FILHOS É a razão que dita que, quando há um casamento, os filhos sigam a condição do pai; e que, quando não há, só dependam da mãe. CAPÍTULO IV DAS FAMÍLIAS Em quase toda parte é admitido que a mulher passe à família do marido. O contrário está, sem nenhum inconveniente, estabelecido em Formosa, onde o marido vai formar a família da mulher. Esta lei, que fixa a família numa série de pessoas do mesmo sexo, muito contribui, independentemente dos motivos iniciais, para a propagação da espécie humana. A família é uma espécie de propriedade: um homem que tem filhos do sexo que não a perpetua, nunca está satisfeito de não ter os do sexo que a perpetua. Os nomes, que dão aos homens a ideia de uma coisa que parece não dever parecer, são muito adequados para inspirar em cada família o desejo de prolongar sua duração. Há povos nos quais os nomes distinguem as famílias: outros há em que eles só distinguem pessoas: o que não é tão bom. CAPÍTULO V DAS DIVERSAS ORDENS DE MULHERES LEGÍTIMAS Algumas vezes as leis e a religião estabeleceram várias formas de uniões civis; e isto ocorre entre os maometanos, onde há diversas ordens de esposas, cujos filhos são reconhecidos pelo nascimento na casa, ou por contratos civis, ou mesmo pela escravidão da mãe e subsequente reconhecimento do pai. Seria contra a razão que a lei condenasse nos filhos o que aprovou nos pais: todos estes filhos devem, portanto, herdar, a menos que alguma razão particular a isso se oponha, como no Japão, onde apenas podem herdar os filhos da esposa dada pelo imperador. A política, neste país, exige que os bens que o imperador dá não sejam muito divididos, porque estão submetidos a uma obrigação, como eram, outrora, nossos feudos. Há países em que uma mulher legítima goza, no lar, aproximadamente das honras que tem, em nossos climas, uma mulher única: nesses países, os filhos das concubinas são considerados pertencentes à primeira esposa. Isso está assim estabelecido na China. O respeito filial, a cerimônia de um luto rigoroso, não são devidos à mãe natural mas à mãe determinada pela lei. Com auxílio de tal ficção, não há mais filhos bastardos; e, nos países em que esta ficção não existe, vê-se bem que a lei que legitima os filhos das concubinas é uma lei forçada; pois a maioria da nação é que seria aviltada com ela. Igualmente, não se coloca nesses países o problema dos filhos adulterinos. As separações das mulheres, a clausura, os eunucos, os aldrabas tornam a coisa tão difícil, que a lei a julga impossível. Aliás, o mesmo gládio exterminaria a mãe e o filho. CAPÍTULO VI DOS BASTARDOS NOS DIVERSOS GOVERNOS Quase não conhecemos, portanto, bastardos nos países em que a poligamia é permitida. Conhecemo-los nos lugares em que existe a lei de uma única mulher. Foi necessário, nesses países, desonrar a concubinagem; foi necessário, portanto, desonrar os filhos que dela nasceram. Nas repúblicas, onde é mister que os costumes sejam puros, os bastardos devem ser ainda mais odiosos do que nas monarquias. Estabeleceram-se, em Roma, disposições talvez muito severas contra eles. Incitando, porém, as instituições antigas todos os cidadãos a se casarem, e sendo, aliás, os matrimônios abrandados pela permissão de repudiar ou de divorciar, só uma grande corrupção dos costumes poderia levar à concubinagem. Devemos observar que, sendo a qualidade de cidadão considerável nas democracias, onde ela trazia consigo o soberano poder, faziam-se, amiúde, leis sobre a situação dos bastardos, as quais tinham menos relação com a própria coisa e com a honestidade do casamento do que com a constituição particular da república. Assim, o povo aceitou, algumas vezes, os bastardos como cidadãos, a fim de aumentar sua força contra os poderosos. Destarte, em Atenas, o povo separou os bastardos do número de cidadãos para ter uma maior porção do trigo que lhe enviara o rei do Egito. Enfim, Aristóteles nos ensina que, em muitas cidades, quando não havia um número suficiente de cidadãos, os bastardos herdavam, e que, quando este número era excessivo, eles não herdavam. CAPÍTULO VII DO CONSENTIMENTO DOS PAIS PARA O CASAMENTO O consentimento dos pais está baseado em seu poder, isto é, em seu direito de propriedade; está ainda baseado em seu amor, em sua razão e na incerteza da de seus filhos, que a idade mantém no estado de ignorância, e as paixões, no estado de embriaguez. Nas pequenas repúblicas ou instituições singulares às quais nos referimos pode haver leis que conferem aos magistrados uma inspeção sobre os casamentos dos filhos dos cidadãos, que a natureza havia já dado aos pais. O amor ao bem público, aí, pode ser tal que iguale ou ultrapasse qualquer outro amor. Assim, Platão queria que os magistrados regulamentassem os casamentos; assim, os magistrados lacedemônios os dirigiam. Porém, nas instituições comuns, cabe aos pais casar seus filhos; sua prudência a esse respeito estará sempre acima de qualquer outra prudência. A natureza confere aos pais um desejo de proporcionar a seus filhos sucessores como se fora para si mesmos. Nos diversos graus de progenitura, eles se veem avançar insensivelmente para o futuro. Mas que aconteceria se a vexação e a avareza fossem a ponto de usurpar a autoridade dos pais? Escutemos Thomas Cage sobre a conduta dos espanhóis nas Índias: "Para aumentar o número das pessoas que pagam tributo, cumpre que todos os indianos que tenham quinze anos se casem; regulamentou-se mesmo o tempo do casamento dos indianos a catorze anos para os varões e a treze anos para as jovens. Baseia-se num cânone que diz que a malícia pode suprir a idade". Presenciou ele um desses censos: "Era", escreve, "uma coisa vergonhosa". Assim, na nação do mundo que deve ser a mais livre, os indianos ainda são escravos. CAPÍTULO VIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Na Inglaterra, as jovens abusam frequentemente da lei para se casar de acordo com seu capricho, sem consultar os pais. Não sei se esse uso não seria, aí, mais tolerado do que alhures, uma vez que as leis, não tendo estabelecido um celibato monástico, as moças, não tendo outra situação a escolher além da do casamento, não podem a ele recusar-se. Na França, ao contrário, onde o monarquismo está estabelecido, as jovens sempre têm o recurso do celibato; e a lei que lhes ordena esperar o consentimento dos pais poderia ser mais conveniente. Desse ponto de vista, o costume da Itália e da Espanha seria o menos razoável: o monarquismo existe nesses países e pode-se casar sem o consentimento dos pais. CAPÍTULO IX DAS MOÇAS As jovens, que só pelo casamento são levadas ao prazer e à liberdade, que têm um espírito que não ousa pensar, um coração que não ousa sentir, olhos que não ousam ver, ouvidos que não ousam ouvir, que só se apresentam para se mostrar estúpidas, condenadas incessantemente a futilidades e a preceitos, são muito dadas ao casamento; são os rapazes que se torna necessário encorajar. CAPÍTULO X O QUE DETERMINA O CASAMENTO Em toda parte onde se encontra um lugar em que duas pessoas podem viver comodamente, há um casamento. A Natureza a isso estimula bastante quando não é detida pela dificuldade de subsistência. Os povos, em seus inícios, se multiplicam e crescem bastante. Seria um grande incômodo para eles viver no celibato; não o é ter muitos filhos. O contrário ocorre quando a nação está formada. CAPÍTULO XI DA SEVERIDADE DO GOVERNO As pessoas que nada possuem, como os mendigos, têm muitos filhos. É que eles se encontram na situação dos povos nascentes: nada custa ao pai transmitir sua arte aos filhos que são mesmo, ao nascer, instrumentos dessa arte.ê Essas pessoas, num país rico ou supersticioso, multiplicam-se porque não têm os encargos da sociedade, sendo eles próprios os encargos da sociedade. Mas as pessoas que são pobres apenas porque vivem sob um governo severo, que consideram seu campo menos como o fundamento de sua subsistência do que como um pretexto para a vexação; essas pessoas, dizia eu, fazem poucos filhos. Elas não têm nem mesmo seu alimento; como poderiam pensar em partilhá-lo? Não podem tratar-se das doenças; como poderiam educar criaturas que estão numa doença contínua, que é a infância? E a facilidade de falar, e a impotência de examinar, que leva a dizer que, quanto mais os súditos são pobres, mais as famílias são numerosas; que quanto mais se está sobrecarregado de impostos, mais se fica em condição de pagá-los; dois sofismas que sempre perderam e que perderão sempre as monarquias. A severidade do governo pode chegar inclusive a destruir os sentimentos naturais pelos próprios sentimentos naturais. Pois as mulheres da América não abortavam para que os filhos não tivessem senhores tão cruéis? CAPÍTULO XII DO NÚMERO DE MOÇAS E RAPAZES NOS DIFERENTES PAÍSES Já disse que na Europa nasce um pouco mais de homens do que de mulheres. Observou-se que no Japão nascia um pouco mais de mulheres do que de homens. Guardando as devidas proporções, haverá mais mulheres fecundas no Japão do que na Europa, e consequentemente mais gente. Relatórios mostram que, em Bantam, há dez moças para um rapaz: semelhante desproporção faria com que o número de famílias estivesse para o número das de outros climas como um está para cinco e meio, o que seria excessivo. Na verdade, as famílias aí poderiam ser mais numerosas; mas há poucas pessoas suficientemente abastadas para poder manter uma família tão grande. CAPÍTULO XIII DOS PORTOS DE MAR Nos portos de mar, onde os homens se expõem a mil perigos, e vão morrer ou viver em climas longínquos, há menos homens do que mulheres; entretanto, veem-se mais crianças do que alhures. Isso é devido à facilidade de subsistência. E talvez mesmo ao fato de serem as partes oleosas do peixe mais aptas a fornecer esta matéria que serve à geração. Esta seria uma das causas deste número infinito de gente que existe no Japão e na China, onde quase só se vive de peixe. Se assim fosse, certas regras monásticas, que obrigam a viver de peixe, seriam contrárias ao espírito do próprio legislador. CAPÍTULO XIV DOS PRODUTOS DA TERRA QUE DEMANDAM MAIOR OU MENOR NÚMERO DE HOMENS As regiões de pastagens são pouco povoadas porque poucas pessoas nelas encontram ocupação; as terras de trigo ocupam mais homens e os vinhedos infinitamente mais. Na Inglaterra, lamentava-se amiúde que o aumento das pastagens diminuía os habitantes; e observa-se na França que a grande quantidade dos vinhedos é uma das grandes causas da multidão de homens. Os países em que as minas de carvão fornecem matérias próprias para a combustão têm esta vantagem sobre os demais: as florestas não são necessárias e todas as terras podem ser cultivadas. Nos lugares onde cresce o arroz, são necessários grandes trabalhos para a irrigação; muitas pessoas, portanto, podem ser empregadas. E mais: é preciso menos terra para fornecer a subsistência de uma família do que nos lugares que produzem outros cereais: enfim, a terra que é utilizada alhures na alimentação dos animais serve imediatamente para a subsistência dos homens; o trabalho, que em outros lugares é feito pelos animais, é feito pelos homens: e a cultura das terras torna-se, para os homens, uma imensa manufatura. CAPÍTULO XV DO NÚMERO DE HABITANTES EM RELAÇÃO ÀS ARTES Quando há uma lei agrária e as terras são divididas igualmente, o país pode ser muito povoado, apesar de ter poucas artes, pois cada cidadão encontra no trabalho de sua terra precisamente com que alimentar-se e todos os cidadãos juntos consomem todos os frutos do país. Isso era assim em algumas antigas repúblicas. Mas, em nossos Estados atuais, os fundos territoriais são distribuídos de modo desigual; produzem mais frutos do que os que cultivam são capazes de consumir; e se as artes são negligenciadas e ninguém se ocupa da agricultura, o país não pode ser povoado. Tendo os que cultivam, ou mandam cultivar, frutos de sobra, nada os impele a trabalhar no ano seguinte: os frutos não seriam consumidos pelos ociosos, pois esses não teriam com que comprá-los. Cumpre, portanto, que as artes se estabeleçam para que os frutos sejam consumidos pelos lavradores e artesãos. Numa palavra, estes Estados necessitam que muitas pessoas cultivem além do que lhes é necessário. Para isso, é preciso incutir-lhes o desejo de possuir o supérfluo; mas apenas os artesãos são capazes disso. Essas máquinas, cujo objetivo é reduzir a arte, nem sempre são úteis. Se uma obra é de preço medíocre, e convém igualmente a quem a compra e ao operário que a faz, as máquinas, que simplificariam a manufatura, isto é, que diminuiriam o número de operários, seriam perniciosas; e, se os moinhos de água não tivessem sido estabelecidos em toda parte, eu não os acreditaria tão úteis como se afirma, porque fizeram descansar uma infinidade de braços, privaram muitas pessoas do uso das águas e fizeram com que muitas terras perdessem a fecundidade. CAPÍTULO XVI DOS DESÍGNIOS DO LEGISLADOR ACERCA DA PROPAGAÇÃO DA ESPÉCIE Os regulamentos sobre o número dos cidadãos dependem muito das circunstâncias. Há países em que a Natureza fez tudo; o legislador, portanto, nada tem a fazer. Por que razão estimular, com leis, a propagação, quando a fecundidade do clima favorece suficientemente o aumento do povo? Algumas vezes o clima é mais favorável do que o terreno; o povo se multiplica e as fomes o destroem; é o caso da China. Destarte, um pai, nesse país, vende suas filhas e expõe seus filhos. As mesmas causas produzem em Tonquim os mesmos efeitos; e não se deve, como os viajantes árabes, dos quais Renaudot nos deu uma relação, ir procurar a opinião da metem psicose sobre isso. Os mesmos motivos com que, na ilha Formosa, a religião não permite às mulheres dar à luz antes dos trinta e cinco anos: antes desta idade a sacerdotisa comprime-lhes o ventre e as faz abortar. CAPÍTULO XVII DA GRÉCIA E DO NÚMERO DE SEUS HABITANTES Este efeito, que se prende a causas físicas em certos países do Oriente, foi, na Grécia, produzido pela natureza do governo. Os gregos eram uma grande nação, composta de cidades que tinham, cada uma, seu governo e suas leis. Não eram elas mais conquistadoras do que as da Suíça, da Holanda e da Alemanha o são atualmente. Em cada república, o legislador tivera como objetivo a felicidade dos cidadãos interiormente e, exteriormente, uma força que não fosse inferior à das cidades vizinhas. Com pequeno território e grande felicidade, era fácil que o número dos cidadãos aumentasse e se tornasse uma carga: desta maneira, estabeleceram incessantemente colônias; eles se venderam para a guerra, como os suíços fazem hoje em dia; nada que pudesse impedir a excessiva multiplicação dos filhos foi negligenciado. Havia entre eles repúblicas cuja constituição era singular. Povos submetidos eram obrigados a fornecer a subsistência aos cidadãos: os lacedemônios eram alimentados pelos hilotas; os cretenses, pelos periecos; os tessálios, pelos penes tas. Devia haver apenas certo número de homens livres para que os escravos estivessem em condições de lhes garantir a subsistência. Dizemos hoje que é necessário limitar o número das tropas regulares; ora, a Lacedemônia era um exército mantido por camponeses; cumpria, portanto, limitar este exército; sem isso, os homens livres, que gozavam de todas as vantagens da sociedade, se teriam multiplicado ilimitadamente, e os lavradores teriam sido sobrecarregados. Os políticos gregos consagraram-se, pois, particularmente a regulamentar o número dos cidadãos. Platão fixa-o em cinco mil e quarenta; e deseja que se detenha ou que se encoraje a propagação, segundo a necessidade, pelas honrarias, pela desonra ou pelas advertências dos anciãos; quer mesmo que se regulamente o número de casamentos de modo que o povo se refaça sem que a república seja sobrecarregada. Se a lei do país, diz Aristóteles proíbe expor os filhos, far-se-á necessário limitar o número dos que cada um deve engendrar. Se se têm filhos além do número estipulado pela lei, aconselha ele fazer com que a mulher aborte antes que o feto adquira vida. O meio infame que empregavam os cretenses para evitar o número excessivo de filhos é relatado por Aristóteles; e senti o pudor horrorizado quando quis cita-lo, Há lugares, narra ainda Aristóteles, em que a lei transforma os estrangeiros, ou os bastardos, ou os que nasceram somente de mãe cidadã em cidadãos, mas, desde que têm bastante povo, não mais o fazem. Os selvagens do Canadá queimam seus prisioneiros; mas, quando têm choças vazias a lhes oferecer, reconhecem-nos como de sua nação. O Cavaleiro Petty supôs, em seus cálculos, que um homem na Inglaterra vale o preço pelo qual seria vendido em Argel. Isto só pode ser bom para a Inglaterra: há países em que um homem nada vale; outros há em que vale menos do que nada. CAPÍTULO XVIII Do ESTADO DOS POVOS ANTES DOS ROMANOS A Itália, a Sicília, a Ásia Menor, a Espanha, a Gália, a Germânia eram aproximadamente como a Grécia, repletas de pequenos povos, e regurgitavam de habitantes: não se necessitava de leis para aumentar seu número. CAPÍTULO XIX DESPOVOAMENTO DO UNIVERSO Todas essas pequenas repúblicas foram englobadas numa grande, e viu-se insensivelmente o universo se despovoar: basta ver o que eram a Itália e a Grécia antes e depois das vitórias dos romanos. "Perguntar-me-ão", diz Tito Lívío, "onde os volscos puderam encontrar tantos soldados para fazer a guerra, depois de terem sido tantas vezes vencidos. Teria sido preciso que existisse um povo infinito nessas regiões, que hoje, sem alguns soldados e alguns escravos romanos, não passariam de um deserto." "Os oráculos desapareceram", diz Plutarco, "porque os lugares onde falavam estão destruí dos; dificilmente encontrar-se-ão hoje, na Grécia, três mil guerreiros." "Não descreverei", escreve Estrabão, "o Epiro e os lugares circunvizinhos porque essas regiões estão inteiramente desertas. Este despovoamento, que começou há muito tempo, continua todos os dias; de sorte que os soldados romanos têm seus acampamentos em casas abandonadas." Ele encontra a causa disso em Políbio, que diz que Paulo Emílio, depois de sua vitória, destruiu setenta cidades do Epiro, levando cento e cinquenta mil escravos. CAPÍTULO XX DE COMO TORNOU-SE NECESSÁRIO AOS ROMANOS FAZER LEIS PARA A PROPAGAÇÃO DA ESPÉCIE Os romanos, destruindo todos os povos, destruíam a si mesmos. Incessantemente na ação, no esforço e na violência, gastavam-se, como uma arma da qual se faz uso sempre. Não falarei aqui do cuidado que tiveram em conseguir cidadãos, à medida que os perdiam, das associações que fizeram, dos direitos de cidadania que outorgaram, e dessa imensa multidão de cidadãos que encontraram em seus escravos. Direi o que fizeram, não para reparar a perda de cidadãos, mas a de homens; e, como foram o povo do mundo que melhor soube conciliar suas leis com seus projetos, não é indiferente examinar o que fizeram a esse respeito. CAPÍTULO XXI DAS LEIS DOS ROMANOS SOBRE A PROPAGAÇÃO DA ESPÉCIE As antigas leis de Roma muito se esforçavam em induzir os cidadãos para o casamento. O senado e o povo fizeram amiúde regulamentos sobre isso, como disse Augusto na arenga citada por Dion. Dionísio de Halícarnasso não pôde crer que, após a morte de trezentos e cinco Fábios, exterminados pelos Veios, só restasse dessa raça uma única criança, porque a lei antiga, que ordenava a cada cidadão que se casasse e educasse todos os filhos, ainda estava em vigor. Independentemente das leis, os censores visavam aos casamentos; e, segundo as necessidades da república, a isso incitaram pela vergonha e pelas penas. Os costumes, que começavam a se corromper, muito contribuíram para dissuadir os cidadãos do casamento, que só traz preocupações para os que não mais têm atenções para os prazeres da inocência. Tal é o sentido da arenga que Metelo Numídico fez ao povo, em sua censura. "Se fosse possível não mais ter mulher, nós nos livraríamos desse mal; porém, como a Natureza estabeleceu que quase não se pode viver feliz com elas, nem subsistir sem elas, faz-se necessário ter mais consideração por nossa conservação do que por satisfações passageiras." A corrupção dos costumes destruiu a censura, ela própria estabelecida para destruir a corrupção dos costumes; mas, quando esta corrupção se tornou geral, a censura não teve mais força. As discórdias civis, os triunviratos, as proscrições enfraqueceram Roma mais do que qualquer guerra por ela travada: sobravam poucos cidadãos, e a maior parte não era casada. Para remediar este último mal, César e Augusto restabeleceram a censura e quiseram mesmo ser censores. Fizeram diversos regulamentos: César ofereceu recompensas aos que tivessem muitos filhos; proibiu as mulheres que tivessem menos de quarenta e cinco anos, e que não possuíssem nem maridos nem filhos, de usarem pedras preciosas e se servirem de liteiras: método excelente de atacar, pela vaidade, o celibato. As leis de Augusto foram mais incisivas; impôs penas novas aos que não eram casados e aumentou as recompensas dos que o eram e dos que possuíam filhos. Tácito chamou estas leis de Julias. Parece que nelas se tinham fundido os antigos regulamentos feitos pelo senado, pelo povo e pelos censores. A lei de Augusto encontrou mil obstáculos; e, trinta e quatro anos depois que foi feita, os cavaleiros romanos exigiram sua revogação. Ele fez com que se colocassem, de um lado, os que eram casados e, de outro, os que não o eram: estes últimos apareceram em maior número, o que surpreendeu os cidadãos e os confundiu. Augusto, com a gravidade dos antigos censores, assim lhes falou. "Enquanto as moléstias e as guerras nos tiram tantos cidadãos, que acontecerá à cidade, se não se contraem mais casamentos? A cidade não consiste nas casas, nos pórticos, nas praças públicas: são os homens que fazem a cidade. Não vereis, como nas fábulas, homens saírem de debaixo da terra para cuidar de vossos negócios. Não é para viver sós que vos conservais no celibato: cada um de vós tem companheira para a mesa e para o leito, e apenas procurais a paz em vossos desregramentos. Citareis, aqui, o exemplo das virgens Vestais? Por conseguinte, se vós não obedeceis às leis da pudicícia, far-se-á necessário punir-vos como elas. Sois igualmente maus cidadãos, quer todos imitem vosso exemplo, quer ninguém o siga. Meu único objetivo é a perpetuidade da república. Aumentei os castigos dos que não obedeceram; e, com relação às recompensas, elas são tais que não me consta que a virtude tenha tido maiores alguma vez: há menores que estimulam mil pessoas a arriscar a vida; e estas não vos incitariam a casar e a nutrir os filhos?” Instituiu ele a lei Júlia, derivada do seu nome, e a lei Pápia Popéia, do nome dos cônsules de uma parte daquele ano. A extensão do mal transparecia na própria eleição desses: Dion diz-nos que eles não eram casados e não tinham filhos. Esta lei de Augusto foi propriamente um código de leis e um corpo sistemático de todos os regulamentos que podiam ser feitos sobre este assunto. Nela refundiram-se as leis Júlias e deu-se-lhes mais força; têm tantos desígnios, influem sobre tantas coisas, que formam a mais bela parte das leis civis dos romanos. Encontram-se trechos dispersos delas nos preciosos fragmentos de Ulpiano, nas leis do Digesto extraídas dos autores que escreveram sobre as leis Papianas; nos historiadores e outros autores que as citaram; no código Teodosiano que as ab-rogou; nos padres que as censuraram, sem dúvida com louvável zelo pelas coisas da outra vida, mas com pouquíssimo conhecimento dos negócios desta vida. Estas leis tinham muitos itens e trinta e cinco deles são conhecidos. Mas, indo ao meu assunto da maneira mais direta possível, começarei pelo item que Aulo Célio nos informa ser o sétimo e que diz respeito às honrarias e às recompensas concedidas por esta lei. Os romanos, originários na maioria das cidades latinas que eram colônias lacedemônias que tinham inclusive extraído destas cidades uma parte de suas leis, tiveram pela velhice, como todos os lacedemônios, o respeito que concede todas as honrarias e todas as deferências. Quando faltaram cidadãos à república, concederam-se ao casamento e ao número de filhos as prerrogativas que se haviam outorgado à idade, atribuindo-se algumas só ao casamento, independentemente dos filhos que dele poderiam nascer: isto chamava-se o direito dos maridos. Atribuíram-se outras aos que tinham filhos, e maiores aos que tinham três filhos. Não devemos confundir estas três coisas. Existiam privilégios dos quais as pessoas casadas sempre gozaram, como, por exemplo, um lugar particular no teatro; existiam outros de que só gozavam quando os que tinham filhos, ou aqueles que os tinham em maior quantidade, não lhos tiravam. Esses privilégios eram muito amplos. As pessoas casadas que tinham maior número de filhos eram sempre preferidas, seja na solicitação de honrarias, seja no exercício dessas próprias honrarias. O cônsul que tivesse mais filhos recebia, em primeiro lugar, os fasces; tinha a escolha das províncias, o senador que tinha mais filhos era o primeiro no catálogo dos senadores; no senado, era o primeiro a opinar. Podia-se alcançar, antes da idade, a magistratura, pois cada filho dispensava um ano. Em Roma, quem tivesse três filhos estava isento de todos os tributos pessoais. As mulheres ingênuas que tivessem três filhos e as libertas que tivessem quatro saíam desta tutela perpétua em que as retinham as antigas leis de Roma. Se havia recompensas, havia também castigos. Os que não eram casados nada podiam receber pelo testamento dos estrangeiros; e os que, sendo casados, não tinham filhos apenas recebiam a metade. Os romanos, diz Plutarco, casavam-se para ser herdeiros e não para ter herdeiros. As vantagens que marido e mulher se podiam conceder pelo testamento eram limitadas pela lei. Se tinham filhos, podiam deixar tudo para o outro; se não os tinham, podiam receber a décima parte da sucessão, por causa do casamento; e, se tinham filhos de outro casamento, podiam doar-se tantos décimos quantos filhos tivessem. Se um marido se afastava de sua esposa por outro motivo que não por negócios da república, não podia ser herdeiro. A lei concedia ao marido ou à esposa que sobrevivesse o prazo de dois anos para tornar a casar, e um ano e meio em caso de divórcio. Os pais que não quisessem casar os filhos, ou outorgar um dote às filhas, a isso eram coagidos pelos magistrados. Não se podia contratar casamento se esse devesse ser adiado por mais de dois anos; e, como não se podia desposar uma jovem senão aos doze anos, não se podia contratar seu casamento senão aos dez. A lei não queria que se pudesse fruir inutilmente, sob pretexto de desposório, dos privilégios das pessoas casadas. A um homem de sessenta anos era proibido desposar uma mulher de cinquenta. Como se outorgaram grandes privilégios às pessoas casadas, a lei não queria que houvesse casamentos inúteis. Pela mesma razão, o senatus-consulto Calvisiano declarava desigual o casamento de uma mulher que tivesse mais de cinquenta anos com um homem de menos de sessenta; de sorte que uma mulher que tivesse cinquenta anos não podia casar sem incorrer nas penalidades dessas leis. Tibério acentuou o rigor da lei Papiana e proibiu a um homem de sessenta anos esposar uma mulher de menos de cinquenta; de modo que um homem de sessenta anos não podia casar-se, em nenhum caso, sem incorrer na pena; mas Claudio ab-rogou o que havia sido feito, na época de Tibério, a este respeito. Todas estas disposições eram mais conformes ao clima da Itália do que ao do Norte, onde um homem de sessenta anos tem ainda força, e onde as mulheres de cinquenta anos geralmente não são estéreis. Para que não se ficasse inutilmente limitado na escolha que se pudesse fazer, Augusto permitiu a todos os ingênuos que não fossem senadores- desposar libertas. A lei Papiana interditava aos senadores o casamento com mulheres que tivessem sido libertas, ou que se tivessem exibido em teatro; e, no tempo de Ulpiano, era proibido aos ingênuos o casamento com mulheres que tivessem tido má vida, que se tivessem exibido em teatro, ou que tivessem sido condenadas por um julgamento público. Era necessário que isso tivesse sido estabelecido por algum senatus-consulto. Na época da república quase não se fizeram essas espécies de leis, porque os censores corrigiam, a este respeito, as desordens que apareciam, ou as impediam de surgir. Tendo Constantino feito uma lei pela qual ele incluía na proibição da lei Papiana não somente os senadores mas também os que tivessem um posto importante no Estado, sem falar dos que eram de condição inferior, isto constituiu o direito daquela época; apenas aos ingênuos, abrangidos pela lei de Constantino, tais casamentos foram proibidos. Justiniano ab-rogou também a lei de Constantino, e permitiu a todos os tipos de pessoas contrair esses casamentos; é em consequência disso que adquirimos uma liberdade tão triste. E claro que as penas infligidas contra os que se casavam contra a proibição da lei eram as mesmas que as infligidas aos que não se casavam. Esses casamentos não lhes davam nenhuma vantagem civil: o dote ficava caduco depois da morte da mulher. Tendo Augusto adjudicado ao tesouro público as sucessões e os legados dos que estas leis declaravam incapazes, tais leis foram antes fiscais do que políticas e civis. A aversão que já se sentia por um encargo que parecia acabrunhar foi aumentada pelo de se ver continuamente exposto à avidez do fisco. Isto fez com que, na época de Tibério, se fosse obrigado a modificar- essas leis, que Nero diminuísse a recompensa dos delatores ao fisco, que Trajano detivesse as extorsões desses, que Severos modificasse essas leis e que os jurisconsultos as considerassem odiosas e, em suas decisões, abandonassem seu rigor. Aliás, os imperadores abrandaram essas leis pelos privilégios que deram dos direitos de maridos, filhos, e de três filhos. Fizeram mais: dispensaram os particulares das penas dessas leis. Entretanto, regras estabelecidas para a utilidade pública pareciam não dever admitir dispensa. Fora razoável conceder o direito de filhos às Vestais, que a religião mantinha numa virgindade necessária: outorgou-se igualmente o privilégio dos maridos aos soldados, uma vez que eles não podiam casar. Era costume isentar os imperadores do incômodo de certas leis civis. Assim, Augusto foi isento do embaraço da lei que limitava a faculdade de libertar, e da que limitava a faculdade de legar. Tudo isso não passava de casos particulares; porém, posteriormente, as dispensas foram outorgadas sem circunspecção, e a regra não foi mais do que uma exceção. Seitas filosóficas haviam introduzido no império um espírito de negligência para com os negócios, que não teria podido atingir este ponto no tempo da república, onde todos se ocupavam das artes da guerra e da paz. Daí uma ideia de perfeição relacionada a tudo o que conduz a uma vida especulativa; daí a aversão pelos cuidados e peias de uma família. A religião cristã, vindo depois da filosofia, fixou, por assim dizer, as ideias que esta não fizera mais do que preparar. O cristianismo deu seu caráter à jurisprudência, pois o império sempre teve relação com o sacerdócio. Podemos ver o código Teodosiano, que não passa de uma compilação das ordenanças dos imperadores cristãos. Um panegirista de Constantino diz a este imperador: "Vossas leis só foram feitas para corrigir os vícios e regulamentar os costumes; abolistes o artifício das antigas leis que pareciam não ter outros objetivos senão o de preparar armadilhas para a simplicidade". É indiscutível que as modificações de Constantino foram feitas, ou sobre ideias que se relacionavam com o estabelecimento do cristianismo, ou sobre ideias tomadas de sua perfeição. Deste primeiro objetivo vieram essas leis que concederam tal autoridade aos bispos, que elas foram o fundamento da jurisdição eclesiástica: daí essas leis que enfraqueceram a autoridade paterna, retirando do pai a propriedade dos bens dos filhos. Para propagar uma nova religião é necessário suprimir a extrema dependência dos filhos, que sempre se prendem menos ao que está estabelecido. As leis feitas com a finalidade da perfeição cristã foram sobretudo aquelas pelas quais ele suprimiu as penas das leis Papianas, isentando tanto os que não eram casados como os que, sendo casados, não possuíam filhos. "Estas leis foram estabelecidas", diz um historiador eclesiástico, "como se a multiplicação da espécie humana pudesse ser resultado de nossos cuidados, em vez de verificar se este número cresce e decresce segundo a ordem da Providência." Os príncipes da religião muito influíram sobre a propagação da espécie humana: ora a estimularam, como entre os judeus, os maometanos, os guebros, os chineses; ora a prejudicaram, como fizeram entre os romanos tornados cristãos. Não se cessou de pregar em toda parte a continência, isto é, a virtude mais perfeita, pois, por sua natureza, ela deverá ser praticada por pouquíssimas pessoas. Constantino não abolira as leis decimárias que davam maior extensão às doações que marido e mulher podiam se fazer na proporção do número de filhos; Teodósio, o Jovem, ab-rogou também essas leis. Justiniano declarou validos todos os casamentos que as leis Papianas proibiram. Essas leis exigiam que se recasasse; Justiníano concedeu vantagens aos que não tomavam a casar-se. Pelas antigas leis, a faculdade natural que cada pessoa possui de se casar e ter filhos não podia ser abolida. Assim, quando se recebia um legado com a condição de não casar, quando um senhor fazia seu liberto jurar que não se casaria, e que não teria filhos, a lei Papiana anulavas tanto esta condição como este juramento. As cláusulas, conservando viuvez, estabelecidas entre nós contradizem, portanto, o direito antigo, e se originam das constituições dos imperadores, estabelecidas sobre as ideias da perfeição. Não há lei que contenha uma ab-rogação expressa dos privilégios e das honrarias que os romanos pagãos tinham concedido aos casamentos e ao número de filhos; mas, onde o celibato tivesse preeminência, não mais podia haver honrarias para o casamento; e, apesar de que se pudesse obrigar os contratadores a renunciar a tantos lucros pela abolição das penas, percebe-se que foi ainda mais fácil suprimir as recompensas. A mesma razão de espiritualidade, que permitira o celibato, impôs, em breve, a necessidade do próprio celibato. Que Deus não me permita falar aqui contra o celibato que a religião adotou; mas quem poderá silenciar contra aquele que a libertinagem formou? Aquele em que dois sexos, corrompendo-se pelos próprios sentimentos naturais, evitam uma união que deve torná-los melhores, para viverem na que os torna sempre piores? É uma regra extraída da Natureza que, quanto mais se diminui o número dos casamentos que poderiam ser contraídos, mais se corrompem os que são feitos; quanto menos pessoas casadas houver, menos haverá fidelidade nos casamentos; como, quando há mais ladrões, há mais roubos. CAPÍTULO XXII DA EXPOSIÇÃO DOS FILHOS Os primeiros romanos tiveram uma política muito boa acerca da exposição dos filhos. Rômulo, diz Dionísio de Halícarnasso, impôs a todos os cidadãos a necessidade de educar todos os filhos masculinos e as filhas primogênitas. Se os filhos eram disformes, ou monstruosos, ele permitia que fossem expostos, depois de os ter mostrado a cinco dos vizinhos mais próximos. Rômulo não permitiu- que se matasse nenhuma criança que tivesse menos de três anos: com isso conciliava a lei que outorgava aos pais o direito de vida e morte sobre os filhos e a que proibia que esses fossem expostos. Vemos também em Dionísio de Halicarnasso que a lei que ordenava aos cidadãos que se casassem, e educassem todos os filhos estava em vigor no ano 277 de Roma; vemos que o uso restringira a lei de Rômulo, que permitia expor as filhas mais novas. Não temos conhecimento do que a Lei das Doze Tábuas, estabelecida no ano 301 de Roma, estatuiu sobre a exposição dos filhos, senão por um trecho de Cícero que, falando a respeito do tribuna todo povo, diz que, logo depois do nascimento, esse foi sufocado tal como a criança monstruosa da Lei das Doze Tábuas: os filhos que não eram monstruosos eram, portanto, conservados, e a Lei das Doze Tábuas em nada modificou as instituições precedentes. "Os germanos", narra Tácito, "não expõem seus filhos; e, entre eles, os bons costumes têm mais força do que as boas leis têm alhures." Havia, pois, entre os romanos, leis contra este uso, mas não eram observadas. Não encontramos nenhuma lei romana que permitia a exposição dos filhos; foi sem dúvida um abuso introduzido nos últimos tempos, quando o luxo aboliu o bem-estar, quando as riquezas partilhadas foram denominadas pobreza, quando o pai acreditou ter perdido o que dava à sua família, e desligou esta família de sua propriedade. CAPÍTULO XXIII DO ESTADO DO UNIVERSO DEPOIS DA DESTRUIÇÃO DOS ROMANOS Os regulamentos que os romanos fizeram para aumentar o número de seus cidadãos tiveram resultado enquanto sua república, no auge de seu poderio, só teve que reparar as perdas que sofria por sua coragem, por sua audácia, por sua firmeza, por seu amor à glória e por sua própria virtude. Mas logo as leis mais sábias não puderam restabelecer o que uma república moribunda, o que uma anarquia geral, o que um governo militar, o que um império duro, o que um despotismo soberbo, o que uma monarquia fraca, o que uma corte estúpida, idiota e supersticiosa sucessivamente tinham aniquilado: dir-se-ia que eles só tinham conquistado o mundo para enfraquecê-lo e para entregá-lo indefeso aos bárbaros. As nações godas, géticas, sarracenas e tártaras oprimiram-nos sucessivamente; em breve, os povos bárbaros não tiveram para destruir senão povos bárbaros. Destarte, no tempo das fábulas, depois das inundações e dos dilúvios, saíram da terra homens armados que se exterminaram. CAPÍTULO XXIV TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NA EUROPA No estado em que se encontrava a Europa não se teria acreditado que ela pudesse restabelecer-se; sobretudo quando, na época de Carlos Magno, não formou mais do que um vasto império. Mas, pela natureza do governo de então, ela se dividiu numa infinidade de pequenas soberanias. E, como um senhor residia em sua vila ou em sua cidade, que não era grande, rica, poderosa - que digo? -, como só ficava em segurança graças ao número de seus habitantes, cada um dedicou-se com singular atenção a fazer florescer sua pequena terra: o que se conseguiu de tal modo que, malgrado as irregularidades do governo, a falha dos conhecimentos que foram depois adquiridos sobre o comércio, o grande número de guerras e querelas que surgiram incessantemente, houve na maior parte das regiões da Europa uma população maior do que nelas existe atualmente. Não tenho tempo de tratar a fundo desta matéria; mas citarei os prodigiosos exércitos das cruzadas, compostos de pessoas de toda espécie. Pufendorff escreve que, na época de Carlos IX, havia vinte milhões de homens na França. Foram as perpétuas junções de vários pequenos Estados que produziram essa diminuição. Outrora, cada povoado da França era uma capital; atualmente, apenas há uma grande; cada parte do Estado era um centro de poder; hoje, tudo se relaciona a um centro e este centro é, por assim dizer, o próprio Estado. CAPÍTULO XXV CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO É verdade que a Europa tem, há dois séculos, aumentado muito sua navegação; isto lhe proporcionou habitantes e fez com que os perdesse. A Holanda envia todos os anos, às Índias, grande número de marinheiros, dos quais apenas dois terços retomam; o resto perece ou se estabelece nas Índias: a mesma coisa deve acontecer às outras nações que praticam este comércio. Não se deve julgar a Europa como um Estado particular que praticasse sozinho uma grande navegação. Esse Estado aumentaria sua população, porque todas as nações vizinhas viriam participar desta navegação; acorreriam marinheiros de todos os lados. A Europa, separada do resto do mundo pela religião, por vastos mares e por desertos, não se repara assim. CAPÍTULO XXVI CONSEQUÊNCIAS Devemos concluir de tudo isso que a Europa está, ainda hoje, na situação de ter necessidade de leis que favoreçam a propagação da espécie humana: assim, como os políticos gregos nos falam sempre deste grande número cidadãos que pesavam à república, os políticos de hoje não nos falam senão de meios adequados a aumentá-las. CAPÍTULO XXVII DA LEI FEITA NA EUROPA PARA ESTIMULAR A PROPAGAÇÃO DA ESPÉCIE Luís XIV ordenou- certas pensões para os que tivessem dez filhos, e maiores para os que tivessem doze. Mas não se tratava de recompensar prodígios. Para favorecer certo espírito geral que induzisse à propagação da espécie, teria sido necessário estabelecer, como os romanos, recompensas gerais ou penas gerais. CAPÍTULO XXVIII COMO SE PODE REMEDIAR O DESPOVOAMENTO Quando um estado se encontra despovoado por acidentes particulares, guerras, pestes, fomes, há recursos. Os homens que sobram podem conservar o espírito de trabalho e de indústria; podem procurar reparar suas desgraças e tornar-se mais industriosos em consequência da própria calamidade. O mal é quase incurável quando o despovoamento vem de longa data, por um vício interno e um mau governo. Os homens, neste caso, perecem por uma enfermidade insensível e habitual: nascidos no langor e na miséria, na violência ou nos preconceitos do governo, viram-se destruir, amiúde sem perceber as causas de sua destruição. Os países devastados pelo despotismo ou pelas prerrogativas excessivas do clero sobre os laicos são dois grandes exemplos disso. Para restabelecer um estado despovoado desta maneira, esperar-se-ia inutilmente o auxílio dos filhos que poderiam nascer. É tarde; os homens, em seus desertos, encontram-se sem coragem e sem indústria. Com terras para nutrir um povo, mal se tem com que alimentar uma família. O baixo povo, nesses países, não tem mesmo quinhão em sua miséria, isto é, nos terrenos baldios de que estão cheios. O clero, o príncipe, as cidades, os poderosos, alguns cidadãos principais tornaram-se insensivelmente proprietários de toda a região: ela é inculta, mas as famílias destruídas deixaram-lhes suas pastagens, e o homem de trabalho nada tem. Nesta situação seria necessário fazer, em toda a extensão do império, o que os romanos faziam numa parte do seu: observar na escassez o que observam na abundância; distribuir terras a todas as famílias que nada têm; proporcionar-lhes os meios de desbravá-las e cultivá-las. Essa distribuição deveria fazer-se na medida em que houvesse um homem para recebê-la; de modo que não houvesse um só momento perdido para o trabalho. CAPÍTULO XXIX DOS HOSPITAIS Um homem não é pobre porque nada tem mas porque não trabalha. O que não tem nenhum bem e trabalha, vive tão comodamente quanto o que tem cem escudos de renda sem trabalhar. Aquele que não tem nada e que tem um ofício, não é mais pobre do que aquele que possui dez arpentes de terra como propriedade particular e deve trabalhá-los para subsistir. O operário que deu a seus filhos por herança sua arte deixou-lhes um bem que se multiplicou na proporção de seu número. O mesmo não acontece com aquele que tem dez arpentes de fundos para viver, e os divide entre seus filhos. Nos países de comércio, onde muitas pessoas nada têm além de sua arte, o Estado é frequentem ente obrigado a prover às necessidades dos velhos, dos doentes e dos órfãos. Um Estado bem policiado extrai essa subsistência do fundo das próprias artes; dá a uns os trabalhos de que são capazes; ensina outros a trabalhar, o que já constitui um trabalho. Algumas esmolas que se dão a um homem nu pelas ruas não preenchem de modo algum as obrigações do Estado, que deve a todos os cidadãos uma subsistência assegurada, alimentação, uma vestimenta conveniente, e um gênero de vida que não seja contrário à saúde. Auremg-Zeb, a quem se perguntava por que não construía hospitais, diz: "Tornarei meu império tão rico, que não terá necessidade de hospitais". Deveria ter dito: Começarei por tornar meu império rico e construirei hospitais. As riquezas de um Estado pressupõem muita indústria. Não é possível que, em tão grande número de ramos de comércio, não haja sempre algum que esteja em crise e que os operários, consequentemente, não estejam numa necessidade momentânea. É então que o Estado necessita oferecer um pronto auxílio, seja para impedir o povo de sofrer, seja para evitar que ele se revolte: é neste caso que são necessários hospitais, ou qualquer regulamento equivalente, que possa prevenir esta miséria. Mas, quando a nação é pobre, a pobreza particular deriva da miséria geral; e ela é, por assim dizer, a miséria geral. Todos os hospitais do mundo não poderiam sanar esta pobreza particular; ao contrário, o espírito de indolência que eles inspiram aumenta a pobreza geral e, consequentemente, a particular. Henrique VIII, querendo reformar a Igreja da Inglaterra, destruiu os monges, classe indolente por si mesma e que mantinha a indolência dos demais, porque, praticando a hospitalidade, uma infinidade de pessoas ociosas, gentis-homens e burgueses, passava sua vida a correr de convento em convento. Suprimiu ainda os hospitais onde o baixo povo encontrava sua subsistência, como os gentis-homens encontravam a sua nos monastérios. Desde essas modificações, o espírito de comércio e indústria estabeleceu-se na Inglaterra. Em Roma, os hospitais fazem com que toda gente viva comodamente, exceto os que trabalham, exceto os que têm indústria, exceto os que cultivam as artes, exceto os que têm terra, exceto os que praticam o comércio. Disse que as nações ricas tinham necessidade de hospitais, porque a fortuna aí estava sujeita a mil acidentes; mas percebe-se que auxílios momentâneos seriam melhores do que estabelecimentos perpétuos. O mal é momentâneo; é mister, pois, auxílios da mesma natureza, e que sejam aplicáveis ao acidente particular. QUINTA PARTE LIVRO VIGÉSIMO QUARTO DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM A RELIGIÃO ESTABELECIDA EM CADA PAÍS, CONSIDERADA EM SUAS PRÁTICAS E EM SI MESMA. CAPÍTULO I DAS RELIGIÕES EM GERAL COMO SE PODE JULGAR entre as trevas as que são menos espessas, e entre os abismos os que são menos profundos, assim se pode procurar entre as religiões falsas as que são mais conformes ao bem da sociedade; as que, embora não tenham o efeito de conduzir os homens para as venturas da outra vida, podem contribuir mais para a sua felicidade nesta. Só examinarei, portanto, as diversas religiões do mundo em relação ao bem que delas se tira no estado civil, quer fale das que têm sua raiz no Céu, quer das que a têm na Terra. Como nesta obra não sou teólogo mas escritor político, poderia haver coisas que não seriam integralmente verdadeiras senão no modo de pensar humano, não tendo sido consideradas na relação com verdades mais sublimes. Quanto à verdadeira religião, bastará pouquíssima equidade para ver que jamais pretendi fazer seus interesses cederem aos interesses políticos, mas uni-los: ora, para uni-los, cumpre conhecê-los. A religião cristã, que ordena que os homens se amem, quer sem dúvida que cada povo tenha as melhores leis políticas e as melhores leis civis, porque elas são, depois dela, o maior bem que os homens podem dar e receber. CAPÍTULO II PARADOXO DE BAYLE Bayle pretendeu provar que mais valia ser ateu que idólatra; isto é, em outros termos, que é menos perigoso não ter religião alguma do que ter uma má. "Preferiria", diz ele, "que dissessem de mim que não existo, a que dissessem que sou um homem perverso." Isto não é mais do que sofisma, baseado na ideia de que não é de nenhuma utilidade para o gênero humano crer-se que certo homem existe, ao passo que é muito útil que se acredite que Deus existe. Da ideia de que ele não existe, decorre a ideia de nossa independência; ou, se não podemos ter esta ideia, a de nossa revolta. Dizer que a religião não é um motivo repressor porque nem sempre ela reprime, é dizer que as leis civis também não são um motivo repressor. É mau raciocinar contra a religião, reunir numa grande obra uma longa enumeração dos males que ela produziu, se não faz o mesmo com os bens que ela produziu. Se eu quisesse relatar todos os males que as leis civis, a monarquia, o governo republicano produziram no mundo, diria coisas espantosas. Ainda que fosse inútil que os súditos tivessem uma religião, não o seria que os príncipes a tivessem e embranquecessem de espuma o único freio que podem ter os que não temem as leis humanas. Um príncipe que ama a religião e a teme é um leão que cede à mão que o afaga ou à voz que o apazigua: o que teme a religião e a odeia é como os animais selvagens que mordem a corrente que os impede de atirar-se sobre os que passam; aquele que não tem nenhuma religião é este animal terrível que só sente sua liberdade quando estraçalha e devora. O problema não é saber se seria preferível que certo homem ou que certo povo não tivesse religião a que abusasse da que tem, mas saber qual é o menor mal: que se abuse algumas vezes da religião ou que ela não exista absolutamente entre os homens. Para diminuir o horror do ateísmo acusa-se muito a idolatria. Não é verdade que, quando os antigos erigiam altares a algum vício, isto significasse que amassem este vício; ao contrário, significava que o odiavam. Quando os lacedemônios levantaram uma capela ao Medo, isso não significava que esta nação belicosa lhe pedisse que se apoderasse, durante os combates, dos corações dos lacedemônios. Havia divindades a quem se pedia não inspirar o crime, e outras a quem se pedia desvia-lo. CAPÍTULO III DE COMO O GOVERNO MODERADO CONVÉM MELHOR À RELIGIÃO CRISTà E O GOVERNO DESPÓTICO À MAOMETANA A religião cristã está afastada do puro despotismo: é que, sendo a brandura tão recomendada no Evangelho, ela se opõe à cólera despótica com a qual o príncipe faria justiça e exerceria suas crueldades. Proibindo esta religião a pluralidade de esposas, os príncipes são menos enclausurados, menos separados de seus súditos e, consequentemente, mais homens; estão mais dispostos a fazer leis e mais capazes de sentir que não podem tudo. Enquanto os príncipes maometanos condenam incessantemente à morte, ou são mortos, a religião, entre os cristãos, torna os príncipes menos tímidos, e, consequentemente, menos cruéis. O príncipe confia em seus súditos, e os súditos no príncipe. Coisa admirável! A religião cristã, que parece não ter outro objetivo senão a felicidade na outra vida, proporciona também a nossa nesta vida. É a religião cristã que, apesar da grandeza do império e do vício do clima, impediu o despotismo de se estabelecer na Etiópia, e levou para o centro da África os costumes da Europa e suas leis. O príncipe herdeiro da Etiópia goza de um principado, e dá aos outros súditos o exemplo de amor e de obediência. Bem próximo desse país, vemos o maometismo mandar encerrar os filhos do rei de Senaar; com sua morte, o Conselho os manda degolar em benefício do que sobe ao trono. Que se ponham, de um lado, diante dos olhos as chacinas contínuas dos reis e dos chefes gregos e romanos; e, de outro, a destruição dos povos e das cidades pelos mesmos chefes; Timur e Gengis-Cã, que devastaram a Ásia; e veremos que devemos ao cristianismo, no governo, certo direito político, e na guerra certo direito das gentes, que a natureza humana não poderia reconhecer de modo suficiente. É o direito das gentes que faz com que, entre nós, a vitória deixe aos povos vencidos estas grandes coisas: a vida, a liberdade, as leis, os bens, e sempre a religião, desde que não nos deixemos cegar. Podemos dizer que os povos da Europa não são hoje mais desunidos do que o eram os povos e os exércitos ou os exércitos entre si no império romano, tornado despótico e militar: de um lado, os exércitos guerreavam entre si, e, de outro, a pilhagem das cidades e a partilha ou confisco das terras lhes eram entregues. CAPÍTULO IV CONSEQUÊNCIAS DO CARÁTER DA RELIGIÃO CRISTà E DO DA RELIGIÃO MAOMETANA Com relação ao caráter da religião cristã e ao da maometana devemos, sem outro exame, acolher uma e rejeitar outra, pois é bem mais evidente que uma religião deve abrandar os costumes dos homens do que ser verdadeira. É uma infelicidade para a natureza humana quando a religião é imposta por um conquistador. A religião maometana, que só fala do gládio, age ainda sobre os homens com este espírito destruidor que a fundou. A história de Sabaco, um dos reis pastores, é admirável. O deus de Tebas lhe apareceu em sonhos e lhe ordenou que mandasse matar todos os sacerdotes do Egito. Julgou ele que seu reinado não mais agradava aos deuses pois lhe ordenavam coisas tão contrárias à sua vontade normal, e retirou-se para a Etiópia. CAPÍTULO V DE COMO A RELIGIÃO CATÓLICA CONVÉM MELHOR A UMA MONARQUIA E A PROTESTANTE SE ADAPTA MELHOR A UMA REPÚBLICA QUANDO UMA REVOLUÇÃO nasce e se forma num Estado, segue geralmente o plano do governo no qual está estabeleci da, pois os homens que a recebem e os que a fazem receber quase não têm outras ideias de organização do que aquelas do Estado em que nasceram. Quando a religião cristã sofreu, há dois séculos, esta infeliz divisão que a separou em católica e protestante, os povos do Norte abraçaram a protestante, e os do Sul conservaram a católica. É que os povos do Norte têm e terão sempre um espírito de independência e de liberdade que os povos do Sul não têm, e uma religião que não tem chefe visível convém mais à independência do clima que aquela que tem um. Nos próprios países em que a religião protestante se estabeleceu, as revoluções se fizeram no plano do Estado político. Lutero, tendo a seu favor grandes príncipes, quase não teria podido lhes fazer apreciar uma autoridade eclesiástica que não tivesse tido preeminência externa; e tendo Calvino a seu favor povos que viviam em repúblicas, ou burgueses obscurecidos em monarquias, podia muito bem não estabelecer preeminências e dignidades. Cada uma dessas duas religiões podia acreditar-se a mais perfeita; a calvinista julgando-se mais conforme ao que Jesus Cristo dissera, e a luterana ao que os apóstolos tinham feito. CAPÍTULO VI OUTRO PARADOXO DE BAYLE O senhor Bayle, depois de ter insultado todas as religiões, aviltou a religião cristã: ousa afirmar que verdadeiros cristãos não formariam um Estado que pudesse subsistir. Por que não? Seriam cidadãos infinitamente esclarecidos com relação a seus deveres, e que demonstrariam um zelo muito grande em cumpri-los: sentiriam muito bem os direitos da defesa natural; quanto mais acreditassem dever à religião, tanto mais pensariam dever à pátria. Os princípios do cristianismo bem gravados no coração seriam infinitamente mais fortes que essa falsa honra das monarquias, essas virtudes humanas das repúblicas e esse medo servil dos Estados despóticos. É espantoso que se possa imputar a este grande homem ter desconhecido o espírito de sua própria religião, não ter sabido distinguir as ordens para o estabelecimento do cristianismo com o próprio cristianismo, nem os preceitos do Evangelho com seus conselhos. Quando o legislador, em lugar de dar leis, deu conselhos, é que viu que seus conselhos, se fossem ordenados como lei, seriam contrários ao espírito de suas leis. CAPÍTULO VII DAS LEIS DE PERFEIÇÃO NA RELIGIÃO As leis humanas feitas para falar ao espírito devem dar preceitos e nunca conselhos: a religião, feita para falar ao coração, deve dar muito de conselhos e pouco de preceitos. Quando, por exemplo, ela dá regras não para o bem mas o melhor, não para o que é bom mas para o que é perfeito, é conveniente que sejam conselhos e não leis, pois a perfeição não diz respeito à universalidade dos homens nem das coisas. Demais, se são leis, seria necessária uma infinidade de outras para fazer com que as primeiras fossem observadas. O celibato foi um conselho do cristianismo: quando se fez uma lei para certa ordem de pessoas, foram necessárias diariamente novas leis para fazer com que os homens observassem a primeira. O legislador se fatigou e fatigou a sociedade para fazer os homens executarem, por preceito, o que os que amam a perfeição teriam executado por conselho. CAPÍTULO VIII DO ACORDO DAS LEIS DA MORAL COM AS DA RELIGIÃO Num país em que se tem a infelicidade de ter uma religião que Deus não deu, é sempre necessário que ela esteja de acordo com a moral, porque a religião, mesmo falsa, é a melhor garantia que os homens podem ter da probidade dos homens. Os principais pontos da religião dos de Pegu são: não matar, não roubar, evitar a impudicícia, não causar dano ao próximo e lhe fazer, ao contrário, todo bem possível. Com isso acreditam que as pessoas se salvarão em qualquer religião, qualquer que seja ela, o que faz com que estes povos, apesar de orgulhosos e pobres, usem de brandura e compaixão para com os infelizes. CAPÍTULO IX DOS ESSÊNIOS Os essênios faziam voto de observar a justiça para com os homens; não fazer mal a ninguém, mesmo para obedecer; de odiar os injustos, cumprir a palavra dada, comandar com modéstia, tomar sempre o partido da verdade, fugir a todo ganho ilícito. CAPÍTULO X DA SEITA ESTOICA As diversas seitas de filosofia entre os antigos podiam ser consideradas espécies de religião. Nunca houve uma cujos princípios fossem mais dignos do homem e mais adequados à formação de pessoas de bem que a dos estoicos; e, se eu pudesse por um momento deixar de pensar que sou cristão, não poderia me impedir de colocar a destruição da seita de Zenon no número das desgraças do gênero humano. Ela exagerava apenas as coisas nas quais há grandeza, o desprezo pelos prazeres e pela dor. Só ela sabia fazer cidadãos; só ela formava grandes homens; só ela fazia grandes imperadores. Fazei por um momento abstração das verdades reveladas; procurai em toda natureza e não encontrareis nada maior que os Antoninos; o próprio Juliano, Juliano (um sufrágio arrancado desta maneira não me tornará cúmplice de sua apostasia), não, não houve depois dele príncipe mais digno de governar os homens. Enquanto os estoicos consideravam uma coisa inútil as riquezas, as grandezas humanas, a dor, as mágoas, os prazeres, apenas se empenhavam em trabalhar pela felicidade dos homens, em cumprir os deveres da sociedade; parecia que eles consideravam este espírito que acreditavam estar neles próprios como uma espécie de providência favorável que velava sobre o gênero humano. Nascidos para a Sociedade, acreditavam todos que seu destino era trabalhar para ela, coisa tanto menos penosa quanto suas recompensas estavam todas neles próprios, e, felizes apenas com sua filosofia, parecia que a simples felicidade dos outros pudesse aumentar a sua. CAPÍTULO XI DA CONTEMPLAÇÃO Sendo os homens feitos para se conservar, para se nutrir, para se vestir, e fazer todas as ações da sociedade, a religião não deve lhes dar uma vida muito contemplativa. Os maometanos tornam-se especulativos por hábito; oram cinco vezes por dia, e de cada vez é necessário que façam um ato pelo qual lançam para trás tudo o que pertence a este mundo; isto os prepara para a especulação. Acrescentai a isto esta indiferença por todas as coisas, que dá o dogma de um destino rígido. Se, além disso, outras causas concorrem para lhes inspirar o desprendimento, como se a dureza do governo, se as leis concernentes à propriedade das terras incutem um espírito precário, tudo está perdido. A religião dos guebros tornou, outrora, o reino da Pérsia florescente; ela corrigiu os maus efeitos do despotismo. Hoje, a religião maometana destruiu esse mesmo império. CAPÍTULO XII DAS PENITÊNCIAS É útil que as penitências estejam ligadas à ideia de trabalho e não à ideia de ócio; à ideia do bem e não à ideia do extraordinário; à ideia da frugalidade e não à ideia da avareza. CAPÍTULO XIII DOS CRIMES INEXPIÁVEIS Parece, por um trecho dos livros dos pontífices, relatado por Cícero, que havia entre os romanos crimes- inexpiáveis; e é sobre isso que Zósimo baseia o relato tão próprio a envenenar os motivos da conversão de Constantino e, Juliano, essa zombaria amarga que faz dessa mesma conversão em seus Césares. A religião pagã, que só proibia alguns crimes grosseiros, que detinha a mão e abandonava o coração, podia ter crimes inexpiáveis; mas uma religião que envolve todas as paixões; que é tão ciosa das ações quanto dos desejos e dos pensamentos; que não nos mantém atados por algumas cadeias mas por um número incontável de fios; que deixa atrás de si a justiça humana e começa outra justiça; que é feita para levar, incessantemente, do arrependimento ao amor, e do amor ao arrependimento; que coloca entre o juiz e o criminoso um grande mediador, entre o justo e o mediador um grande juiz: uma tal religião não deve ter crimes inexpiáveis. Mas, embora inspire temores e esperanças a todos, deixa sentir perfeitamente que, se não há crime que pela sua natureza seja inexpiável, toda uma vida pode sê-lo: que seria muito perigoso atormentar incessantemente a misericórdia com novos crimes e novas expiações; que, inquietos com as antigas dívidas, nunca saldadas com o Senhor, devemos temer contrair novas, encher as medidas, e chegar até o ponto em que a bondade paternal termina. CAPÍTULO XIV COMO A FORÇA DA RELIGIÃO SE APLICA À DAS LEIS CIVIS Como a religião e as leis civis devem tender principalmente a tornar os homens bons cidadãos, vê-se que, quando uma das duas se afastar desse objetivo, a outra deve tender ainda mais para ele: quanto menos a religião for repressora, mais as leis civis devem reprimir. Assim, no Japão, como a religião dominante quase não tem dogmas e não oferece nem paraíso nem inferno, as leis, para suprir isso, foram feitas com uma severidade e executadas com uma pontualidade extraordinária. Quando a religião estabelece o dogma da necessidade das ações humanas, as penas das leis devem ser mais severas e a polícia mais vigilante, para que os homens que, sem isso, se entregariam a si mesmos, sejam conduzidos por estes motivos; mas, se a religião estabelece o dogma da liberdade, a coisa é outra. Da preguiça da alma nasce o dogma da predestinação maometana; e do dogma desta predestinação nasce a preguiça da alma. Foi dito: isto está nos decretos de Deus; é preciso, pois, permanecer em repouso. Em tal caso, deve-se despertar com leis os homens adormecidos pela religião. Quando a religião condena as coisas que as leis civis devem permitir, é perigoso que as leis civis não permitam de seu lado o que a religião deve condenar, assinalando sempre uma dessas coisas uma falta de harmonia e de exatidão nas ideias que se difundem sobre a outra. Assim, os tártaros de Gengis-Cã, entre os quais era um pecado e mesmo um crime capital colocar a faca no fogo, apoiar-se contra um chicote, bater num cavalo com as rédeas, partir um osso com outro, não acreditavam que houvesse pecado em violar a fé, arrebatar o bem de outrem, injuriar um homem, mata-lo. Numa palavra: as leis que fazem considerar necessário o que é indiferente têm o inconveniente de levar a considerar indiferente o que é necessário. Os de Formosa acreditam numa espécie de inferno, mas para punir os que deixaram de andar nus em certas estações, os que vestiram roupas de algodão e não de seda, os que procuraram ostras, os que agiram sem consultar o canto dos pássaros. Destarte, não consideram pecado a embriaguez e os desregramentos com mulheres; acreditavam mesmo que a devassidão dos filhos agradava os deuses. Quando a religião justifica por uma coisa acidental, perde inutilmente a maior mola que pode existir entre os homens. Entre os indianos, acredita-se que as águas do Ganges têm virtude santificante, sendo os que morrem em suas margens considerados isentos de castigos na outra vida, devendo habitar uma região plena de delícias; enviam-se, dos lugares mais distantes, urnas cheias de cinzas dos mortos para lançá-las no Ganges. Que importa viver virtuosamente, ou não? Far-se-ão lançar no Ganges. A ideia de um lugar de recompensa implica necessariamente a ideia de uma estada de castigos; e, quando se espera uma sem temer a outra, as leis civis não mais têm forças. Homens que acreditam em recompensas certas na outra vida escaparão ao legislador; terão demasiado desprezo pela morte. Que meio poderia conter pelas leis um homem que crê estar certo que a maior pena que os magistrados lhe poderão infligir terminará num momento para logo começar sua felicidade? CAPÍTULO XV COMO AS LEIS CIVIS CORRIGEM, ÀS VEZES, AS FALSAS RELIGIÕES. O respeito às coisas antigas, a simplicidade ou a superstição, têm, algumas vezes, estabelecido mistérios ou cerimônias que podiam atentar ao pudor; e os exemplos disso não foram raros no mundo. Aristóteles diz que, neste caso, a lei permite aos pais de família irem ao templo celebrar estes mistérios para suas mulheres e filhos. Lei civil admirável que conserva os costumes contra a religião! Augusto proibiu os jovens de ambos os sexos de assistirem a qualquer cerimônia noturna se não estivessem acompanhados de um parente mais velho; e, quando restabeleceu as festas lupercais, não quis que os jovens corressem nus. CAPÍTULO XVI COMO AS LEIS DA RELIGIÃO CORRIGEM OS INCONVENIENTES DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA De outro lado, a religião pode sustentar o Estado político quando as leis se acham na impotência. Assim, quando o Estado é amiúde agitado por guerras civis, a religião muito fará se estabelecer que alguma parte deste Estado permaneça sempre em paz. Entre os gregos, os eleatas, como sacerdotes de Apolo, gozavam de uma paz eterna. No Japão, deixa-se sempre em paz a cidade de Meaco, que é uma cidade santa; a religião mantém este regulamento; e este império, que parece estar sozinho na terra, que não tem e que não quer ter nenhum recurso da parte de estrangeiros, mantém sempre em seu seio um comércio que a guerra não arruína. Nos Estados em que as guerras não se fazem por deliberação comum, e onde as leis não deixaram nenhum meio de terminá-las ou preveni-las, a religião estabelece tempos de paz e de tréguas, para que o povo possa fazer as coisas sem as quais o Estado não poderia subsistir, como as sementeiras e trabalhos semelhantes. Cada ano, durante quatro meses, toda hostilidade cessava entre as tribos árabes: a menor perturbação teria sido uma impiedade. Na França, quando cada senhor fazia a guerra ou a paz, a religião estabelecia tréguas que deveriam ocorrer em certas estações. CAPÍTULO XVII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Quando há muitos motivos de ódio num Estado, cumpre que a religião apresente muitos meios de reconciliação. Os árabes, povo salteador, frequentem ente se dirigiam injúrias e injustiças. Maomé estabeleceu esta lei: "Se alguém perdoa o sangue de seu irmão, poderá perseguir o malfeitor por danos e perdas; mas quem prejudicar o comerciante, depois de este lhe ter dado reparação, sofrerá no dia do juízo tormentos dolorosos". Entre os germanos, herdavam-se os ódios e inimizades dos parentes; mas eles não eram eternos. Expiava-se o homicídio oferecendo certa quantidade de gado, e toda a família recebia a reparação. "Coisa muito útil", escreve Tácito, "porque as inimizades são mais perigosas num povo livre." Creio que os ministros da religião, que gozavam de tanto crédito entre eles, entravam nessas reconciliações. Entre os malaios, em que a reconciliação não estava estabelecida, quem tivesse matado outra pessoa, certo de ser assassinado pelos parentes ou amigos do morto, entrega-se à sua fúria, fere e mata tudo o que encontra. CAPÍTULO XVIII COMO AS LEIS DA RELIGIÃO TÊM O EFEITO DAS LEIS CIVIS Os primeiros gregos eram pequenos povos sempre dispersos, piratas no mar, injustos na terra, sem polícia e sem leis. As belas ações de Hércules e de Teseu deixam ver o estado em que se encontrava este povo nascente. Que podia fazer a religião, que fez ela para infundir o horror ao homicídio? Estabeleceu que um homem morto violentamente ficava logo encolerizado contra o assassino, inspirava-lhe perturbação e terror, e queria que este lhe cedesse os lugares que frequentara; não se podia tocar o criminoso, nem conversar com ele, sem ficar maculado ou intestável; a presença do homicida devia ser poupada à cidade, e cumpria expia-lo. CAPÍTULO XIX DE COMO É MENOS A VERDADE OU A FALSIDADE DE UM DOGMA QUE O TORNA ÚTIL OU PERNICIOSO AOS HOMENS, NO ESTADO CIVIL, DO QUE O USO OU O ABUSO QUE DELE SE FAZ Os dogmas mais verdadeiros ou mais santos podem ter consequências muito más, quando não estão relacionados aos princípios da sociedade; e, ao contrário, os dogmas mais falsos podem ter admiráveis consequências quando se faz de modo com que se relacionem com os mesmos princípios. A religião de Confúcio nega a imortalidade da alma; e a seita de Zenon não acreditava nela. Quem o diria? Estas duas seitas extraíram de seus maus princípios consequências, senão justas, ao menos admiráveis para a sociedade. A religião dos Tau e dos Foë acreditava na imortalidade da alma; porém, desses dogmas tão santos, extraíram consequências horríveis. Quase em todo o mundo e em todos os tempos, a opinião da imortalidade da alma, mal interpretada, levou as mulheres, os escravos, os súditos, os amigos, a se matarem, para ir servir num outro mundo o objeto de seu respeito ou de seu amor. Assim era nas Índias Ocidentais; assim era entre os dinamarqueses e assim é ainda hoje no Japão em Macáçar e em vários outros lugares da terra. Esses costumes emanam menos diretamente do dogma da imortalidade da alma que do da ressurreição dos corpos; de onde se tirou esta consequência: que, após a morte, um mesmo indivíduo teria as mesmas necessidades, os mesmos sentimentos, as mesmas paixões. Desse ponto de vista, o dogma da imortalidade da alma afeta prodigiosamente os homens, pois a ideia de uma simples mudança de moradia está mais ao alcance de nosso espírito e lisonjeia mais nosso coração do que a ideia de uma nova modificação. Não basta para uma religião estabelecer um dogma; cumpre também que ela o oriente. E o que faz admiravelmente bem a religião cristã com respeito aos dogmas de que falamos; faz-nos esperar um estado em que nós acreditamos e não um estado que sentimos ou que conhecemos; tudo, até a ressurreição dos corpos, leva-nos a ideias espirituais. CAPÍTULO XX CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Os livros sagrados dos antigos persas diziam: "Se quereis ser santos, instruí vossos filhos, porque todas as boas ações que farão vos serão imputadas". Aconselhavam a casar-se cedo, porque os filhos seriam como uma ponte no dia do julgamento, e os que não tivessem filhos poderiam passar. Esses dogmas eram falsos mas muito úteis. CAPÍTULO XXI DA METEMPSICOSE O dogma da imortalidade da alma divide-se em três ramos: o da imortalidade pura, o da simples mudança de morada, o da metempsicose, isto é, o sistema dos cristãos, o sistema dos citas, o sistema dos hindus. Acabo de falar dos dois primeiros: e direi do terceiro que, como foi bem e mal dirigido, teve nas Índias bons e maus efeitos. Como dá aos homens certo horror ao derramamento de sangue, há nas Índias poucos homicídios; e, apesar de nesse país quase não se punir com a morte, toda gente está tranquila. De outro lado, as mulheres são queimadas quando da morte dos maridos; lá, só os inocentes sofrem morte violenta. CAPÍTULO XXII DE COMO É PERIGOSO QUE A RELIGIÃO INSPIRE HORROR POR COISAS INDIFERENTES Certa honra, que preconceitos de religião estabelecem nas Índias, faz com que as diversas castas tenham horror umas pelas outras. Essa honra está baseada unicamente na religião; tais distinções de família não formam distinções civis: há determinado indiano que se acreditaria desonrado se comesse com seu rei. Tais formas de distinção estão relacionadas a certa aversão por outros homens, bem diferente dos sentimentos que devem originar as diferenças de categoria, que entre nós encerram o amor pelos inferiores. As leis da religião evitarão inspirar outro desprezo além do vício, e sobretudo afastar os homens do amor e da piedade pelos homens. A religião maometana e a hindu têm em seu seio infinito número de povos; os hindus odeiam os maometanos porque esses comem carne de vaca; os maometanos detestam os hindus porque esses comem carne de porco. CAPÍTULO XXIII DAS FESTAS Quando uma religião ordena a suspensão do trabalho, deve ter consideração pelas necessidades dos homens mais do que à grandeza do ente que honra. Em Atenas, era um grande inconveniente o número excessivo de festas. Entre esse povo dominador, diante do qual todas as cidades da Grécia deviam levar seus litígios, não se podia dar conta dos negócios. Quando Constantino estabeleceu que não se trabalharia no domingo fez essa ordenança para as cidades e não para os povos do campo: ele sentia que nas cidades os trabalhos eram úteis e nos campos eram necessários. Pela mesma razão, nos países que subsistem pelo comércio, o número das festas deve ser relativo a esse próprio comércio. Os países protestantes e os católicos estão situados de modo que se tenha mais necessidade de trabalho nos primeiros do que nos segundos: a supressão das festas convinha, pois, mais aos países protestantes do que aos católicos. Dampierre observa que os divertimentos dos povos variam muito de acordo com os climas. Como os climas quentes produzem quantidades de frutos delicados, os bárbaros, que encontram logo o necessário, utilizam mais tempo em se divertir: os indianos, das regiões frias, não têm tanto lazer; precisam caçar e pescar continuamente. Portanto, há entre eles danças, músicas e festins; e uma religião que se estabelecesse entre esses povos deveria levar isso em consideração na instituição das festas. CAPÍTULO XXIV DAS LEIS LOCAIS DE RELIGIÃO Há muitas leis locais nas diversas religiões. E quando Montezuma se obstinava tanto em dizer que a religião dos espanhóis era boa para o país deles, e a do México para o seu, não dizia um absurdo porque, efetivamente, os legisladores não puderam deixar de levar em conta o que a Natureza estabelecera antes deles. A opinião da metempsicose é feita para o clima das Índias. O calor excessivo queima todos os campos; só se pode alimentar pouquíssimo gado; há sempre o perigo de esse faltar para a lavoura. Os bois só se multiplicam mediocremente; estão sujeitos a muitas doenças: uma lei de religião que os conserve é, portanto, muito conveniente à polícia do país. Enquanto as pradarias são queimadas, o arroz e os legumes ali crescem facilmente graças às águas que se podem utilizar: uma lei de religião que só permita esse alimento é portanto muito útil aos homens desses climas. A carne do gado não tem gosto e o leite e a manteiga que dele se obtêm constituem uma parcela de sua subsistência. A lei que proíbe matar e comer vacas não é portanto absurda nas Índias. Atenas tinha em seu seio uma multidão inumerável de povos; seu território era estéril; foi uma máxima religiosa que os que faziam oferendas aos deuses de certos pequenos presentes os honravam mais do que os que imolavam bois. CAPÍTULO XXV INCONVENIENTE DO TRANSPORTE DE UMA RELIGIÃO DE UM PAÍS A OUTRO Conclui-se daí que há assaz frequentem ente muitos inconvenientes em transportar uma religião de um país a outro. "O porco", diz o Sr. de Boulainvilliers, "deve ser muito raro na Arábia, onde quase não há bosques e quase nada adequado à alimentação desses animais; aliás, a salinidade das águas e dos alimentos toma o povo muito suscetível às moléstias da pele." A lei local que o proíbe não poderia ser boa para outros países, onde o porco é um alimento quase universal e de algum modo necessário. Farei aqui uma reflexão. Sanctório observou que a carne de porco que se come transpira pouco e mesmo que esse alimento impede muito a transpiração dos outros alimentos: descobriu que a diminuição chegava a um terço; sabe-se também que a falta de transpiração origina ou agrava as moléstias da pele: portanto, a carne de porco deve ser proibida nos climas em que se está sujeito a tais doenças, como o da Palestina, da Arábia, do Egito e da Líbia. CAPÍTULO XXVI CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Chardin afirma que não há rio navegável na Pérsia, com exceção do rio Kur, situado nas extremidades do império. A antiga lei dos guebros, que interditava a navegação nos rios, não tinha, pois, nenhum inconveniente em seu país; mas em outro teria arruinado o comércio. As contínuas abluções são muito usadas nos climas quentes. Isso fez com que a lei maometana e a religião hindu as ordenassem. É um ato muito meritório nas Índias orar a Deus em água corrente: mas como executar essas coisas em outros climas? Quando a religião, baseada no clima, foi muito contrária ao clima de outro país, não pôde estabelecer-se nesse; e quando foi introduzida, expulsaram-na. Parece, humanamente falando, que foi o clima que prescreveu limites à religião cristã e à maometana. Decorre daí que é quase sempre conveniente que uma religião tenha dogmas particulares e um culto geral. Nas leis que concernem às práticas do culto, faz-se mister poucos pormenores; por exemplo, mortificações e não uma certa mortificação. O cristianismo está repleto de bom senso: a abstinência é de direito divino; mas uma abstinência particular é de direito de polícia e pode-se mudá-la. LIVRO VIGÉSIMO QUINTO DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O ESTABELECIMENTO DA RELIGIÃO DE CADA PAÍS, E SUA POLÍTICA EXTERIOR. CAPÍTULO I DO SENTIMENTO PELA RELIGIÃO O HOMEM PIEDOSO E o ateu falam sempre de religião: um fala do que ama e outro do que teme. CAPÍTULO II DOS MOTIVOS DE AFEIÇÃO PELAS DIVERSAS RELIGIÕES As diversas religiões do mundo não dão aos que as professam motivos iguais de afeição por elas: isso depende muito da maneira como elas se conciliam com o modo de pensar e sentir dos homens. Estamos muito inclinados à idolatria e entretanto não estamos muito ligados às religiões idólatras; quase não tendemos às ideias espirituais e, todavia, somos muito afeiçoados às religiões que nos fazem adorar um Ser espiritual. É um sentimento feliz que decorre em parte da satisfação que encontramos em nós próprios, de possuir inteligência suficiente para ter escolhido uma religião que tira a divindade da humilhação em que as demais a haviam colocado. Consideramos a idolatria como a religião dos povos rudes, e a religião que tem por objeto um Ser espiritual, como a dos povos esclarecidos. Quanto à ideia de um Ser espiritual supremo, que forma o dogma, podemos acrescentar também ideias sensíveis que fazem parte do culto; isso nos dá um grande apego à religião, porque os motivos que acabamos de citar se acham ligados à nossa tendência natural pelas coisas sensíveis. Desse modo, os católicos, que têm mais do que os protestantes essa espécie de culto, são mais invencivelmente apegados à sua religião do que os protestantes à sua, e mais zelosos por sua propagação. Quando o povo de Éfeso soube que os padres do concílio tinham decidido que se podia chamar a Virgem Mãe de Deus, foi tomado de alegria: beijava as mãos dos bispos, abraçava seus joelhos, explodindo em aclamações. Quando uma religião intelectual nos dá ainda a ideia de uma escolha feita pela Divindade, e de uma distinção entre os que os que a professam e os que não o fazem, isso muito nos afeiçoa a essa religião. Os maometanos não seriam tão bons muçulmanos, se de um lado não houvesse povos idólatras que lhes fizessem pensar que eram os vingadores da unidade de Deus e se não houvesse, de outro lado, cristãos para lhes fazer crer que eles eram o objeto de suas preferências. Uma religião carregada de muitas práticas prende mais do que outra que as tenha menos: prendemo-nos às coisas com que estamos continuamente ocupados, como testemunha a tenaz obstinação dos maometanos e dos judeus, e a facilidade com que os povos bárbaros e selvagens mudam de religião, pois, ocupados unicamente com a caça ou a guerra, quase não se ocupam de práticas religiosas. Os homens estão muito inclinados a esperar e a temer; e uma religião que não possua nem inferno nem paraíso dificilmente poderia agradar-lhes. Prova-se isso pela facilidade que tiveram as religiões estrangeiras em se estabelecer no Japão, e o zelo e o amor com que foram recebidas. Para que uma religião seja capaz de prender, é necessário que tenha uma moral pura. Os homens, velhacos isoladamente, são, tomados em conjunto, pessoas muito honestas; amam a moral e, se eu não tratasse de um assunto tão grave, diria que isso pode ser observado admiravelmente bem nos teatros: tem-se certeza de agradar o público pelos sentimentos que a moral reconhece e tem-se certeza de choca-lo pelos que ela reprova. Quando o culto exterior possui grande magnificência, isto nos lisonjeia e nos dá muito apego à religião. As riquezas dos templos e as do clero muito nos afetam. Destarte, a própria miséria dos povos é um motivo de apego a esta religião, que serviu de pretexto aos que causaram sua miséria. CAPÍTULO III DOS TEMPLOS Quase todos os povos policiados moram em casas. Disso decorreu naturalmente a ideia de construir para Deus uma casa onde os homens pudessem adora-lo e procurá-lo em seus temores ou esperanças. De fato, nada é mais consolador para eles do que um lugar onde encontram a divindade mais presente, e onde todos em conjunto deixam falar sua miséria e fraqueza. Mas essas ideias tão naturais só ocorrem aos povos que cultivam a terra e não veremos templos construídos entre os que não têm casas para si mesmos. Foi isso que fez com que Gengis-Cã revelasse tão grande desprezo pelas mesquitas. Este príncipe interrogou os maometanos; aprovou todos os seus dogmas, exceto o que diz respeito à necessidade de ir a Meca; não podia compreender que não se pudesse adorar Deus em qualquer parte. Os tártaros, não morando em casas, não conhecem templos. Os povos que não têm templos possuem pouco apego à sua religião: eis por que os tártaros sempre foram tão tolerantes, eis porque os povos bárbaros que conquistaram o império romano não hesitaram um momento em abraçar o cristianismo; eis por que os selvagens da América são tão pouco afeiçoados à sua própria religião e eis por que, desde que nossos missionários fizeram com que construíssem igrejas, no Paraguai, eles são tão zelosos pela nossa. Como a divindade é o refúgio dos infelizes e como não há gente mais desgraçada do que os criminosos, foi-se, naturalmente, levado a pensar que os templos eram um asilo para eles; e esta ideia parece ainda mais natural entre os gregos, onde os assassinos, expulsos das cidades e da presença dos homens, pareciam não possuir outras casas senão os templos e outros protetores senão os deuses. Inicialmente isto só dizia respeito aos homicidas involuntários; mas, quando abrangeu os grandes criminosos, caiu-se uma grosseira contradição: se haviam ofendido os homens, com mais forte razão tinham ofendido os deuses. Multiplicaram-se esses asilos na Grécia: os templos, diz Tácito, estavam repletos de devedores insolventes e de escravos perversos; os magistrados tinham dificuldade em exercer sua polícia; o povo protegia os crimes dos homens como as cerimônias dos deuses; o senado foi obrigado a excluir grande número deles. As leis de Moisés foram muito sábias. Os homicidas involuntários eram inocentes, mas deviam ser afastados da presença dos parentes do morto; estabeleceu portanto um asilo para eles. Os grandes criminosos não mereciam asilo e não os tiveram. Os judeus tinham apenas um tabernáculo, que mudava continuamente de lugar, o que excluía a ideia de asilo. É verdade que deviam ter um templo; mas os criminosos que para aí convergiriam de todas as partes teriam podido perturbar o serviço divino. Se os homicidas tivessem sido expulsos do país, tal como o foram entre os gregos, dever-se-ia temer que eles adorassem deuses estrangeiros. Todas essas considerações levaram ao estabelecimento de cidades de asilo em que se devia permanecer até a morte do sumo pontífice. CAPÍTULO IV DOS MINISTROS DA RELIGIÃO Os primeiros homens, diz Porfírio, não sacrificavam senão ervas. Para um culto tão simples, cada um podia ser pontífice em sua família. O desejo natural de agradar à divindade multiplicou as cerimônias, o que fez com que os homens, ocupados com a agricultura, se tornassem incapazes de executar todas elas, e de fazê-lo com todos os pormenores. Consagraram-se aos deuses lugares particulares: foram necessários ministros para toma-los a seus cuidados, como cada cidadão cuida de sua casa e de seus negócios domésticos. Destarte, os povos que não têm sacerdotes são extraordinariamente bárbaros. Assim eram outrora os pedalíanos, assim são ainda os wolgusky. As pessoas consagradas à divindade deviam ser honradas, sobretudo entre os povos que tinham formado certa ideia de pureza corporal, necessária para se aproximar dos lugares mais agradáveis aos deuses, e dependente de certas práticas. Exigindo o culto aos deuses atenção contínua, a maioria dos povos foi levada a fazer do clero um corpo separado. Assim, entre os egípcios, os judeus e os persas, consagraram-se à divindade certas famílias, que se perpetuavam e faziam serviço. Houve mesmo religiões em que não se pensou somente em afastar os eclesiásticos dos negócios, mas também em lhes suprimir o estorvo de uma família; e esta é a prática do principal ramo da lei cristã. Não falarei aqui das consequências da lei do celibato; sentimos que ela poderia tornar-se prejudicial na proporção em que o corpo do clero fosse muito amplo e o dos laicos, por conseguinte, não o fosse bastante. Pela natureza do entendimento humano, amamos em matéria de religião tudo o que supõe um esforço, tal como, em matéria de moral, amamos especulativamente tudo o que leva o caráter à severidade. O celibato foi mais agradável aos povos aos quais parecia convir menos, e para os quais ele poderia acarretar deploráveis consequências. Nos países do Sul da Europa, em que, pela natureza do clima, a lei do celibato é mais difícil de ser observada, ela foi mantida; nos do Norte, em que as paixões são menos vivas, foi proscrita. Há mais: nos países em que há poucos habitantes, foi admitida; nos em que há muitos, foi rejeitada. Sentimos que todas estas reflexões apenas dizem respeito à enorme extensão do celibato e não ao celibato em si. CAPÍTULO V DOS LIMITES QUE AS LEIS DEVEM ESTABELECER ÀS RIQUEZAS DO CLERO As famílias particulares podem perecer: assim, seus bens não têm uma destinação perpétua. O clero é uma família que não pode perecer: seus bens são, pois, vinculados para sempre e dele não podem sair. As famílias particulares podem aumentar; faz-se mister, assim que seus bens possam crescer também. O clero é uma família que não deve aumentar: seus bens devem, portanto, ser limitados. Mantivemos as disposições do Levítico sobre os bens do clero, exceto as que diziam respeito aos limites desses bens: efetivamente, ignorar-se-á sempre entre nós qual é o termo depois do qual não é mais permitido a uma comunidade religiosa adquirir. Essas aquisições sem fim parecem aos povos tão desarrazoadas que quem pretendesse defendê-las seria considerado imbecil. Às vezes, encontram as leis civis dificuldades em modificar abusos estabelecidos, porque são relacionados a coisas que devem respeitar. Neste caso, uma disposição indireta observa melhor o bom espírito do legislador do que outra que se chocaria contra a própria coisa. Em vez de proibir as aquisições do clero, cumpre procurar fazer com que ele próprio se desgoste disso; deixar o direito, e suprimir o fato. Em alguns países da Europa, a consideração pelos direitos senhoriais fez com que se estabelecesse em seu favor um direito de indenização sobre os imóveis adquiridos pelas pessoas de mão-morta. O interesse do príncipe lhe fez exigir um direito de amortização no mesmo caso. Em Castela, onde não há direito semelhante, o clero de tudo se apossou; em Aragão, onde há algum direito de amortização, ele adquiriu menos; na França, onde este direito e o da indenização estão implantados, ele adquiriu ainda menos; e podemos dizer que a prosperidade desse Estado deveu-se, em parte, ao exercício desses dois direitos. Aumentai esses direitos e paralisai a mão-morta, se for possível. Tornai sagrado e inviolável o antigo e necessário domínio do clero; que seja ele fixo e eterno como o próprio clero, mas deixai sair de suas mãos os novos domínios. Permiti violar a regra, quando a regra torna-se um abuso; suportai o abuso quando ele retoma à regra. Lembra-se sempre, em Roma, de um memorial que para lá foi enviado por ocasião de alguns litígios com o clero. Nele havia esta máxima: "O clero deve contribuir para os encargos do Estado, apesar do que diz o Antigo Testamento". Concluímos daí que o autor do memorial compreendia melhor a linguagem dos impostos que a da religião. CAPÍTULO VI DOS MOSTEIROS Um mínimo de bom senso faz ver que estes corpos que se perpetuam eternamente não devem vender seus bens vitalícios, nem fazer empréstimos vitalícios, a menos que se queira que eles se tomem herdeiros de todos os que não têm parentes e de todos os que não queiram tê-los, Essa gente joga contra o povo mas conserva a banca contra ele. CAPÍTULO VII DO LUXO DA SUPERSTIÇÃO "São ímpios para com os deuses", escreve Platão, "os que negam sua existência; ou os que a aceitam, mas afirmam que eles não se imiscuem nas coisas terrenas; ou, enfim, os que pensam que os apaziguamos facilmente com sacrifícios: três opiniões igualmente perniciosas." Platão diz aqui tudo o que o saber natural jamais disse de mais sensato em matéria de religião. A magnificência do culto exterior guarda muita relação com a constituição do Estado. Nas boas repúblicas, não apenas se suprimiu o luxo da vaidade, mas também o da superstição. Fizeram-se, na religião, leis de poupança. Entre elas, encontram-se leis de Sólon, várias leis de Platão sobre os funerais, que Cícero adotou; enfim, algumas leis de Numa- sobre os sacrifícios. "Pássaros e pinturas feitas num dia", diz Cícero, "são dádivas muito divinas." "Oferecemos coisas comuns", diz um espartano, "a fim de que tenhamos todos os dias com que honrar os deuses." O cuidado que os homens devem ter em render culto à divindade é bem diferente da magnificência desse culto. Não lhe ofereçamos nossos tesouros se queremos mostrar-lhe a estima que fazemos das coisas que ela quer que desprezemos. "Que devem pensar os deuses dos dons dos ímpios", diz Platão admiravelmente, "se um homem de bem se envergonharia ao receber presentes de um homem desonesto?" Não é necessário que a religião, sob pretexto de dádivas, exija dos povos o que as necessidades do Estado lhes deixaram; e, como diz Platão, homens castos e piedosos devem oferecer dádivas que se lhes assemelhem. Não seria também necessário que a religião encorajasse as despesas dos funerais. Que haveria de mais natural do que suprimir a diferença das fortunas numa coisa e nos momentos em que todas as fortunas se tomam iguais? CAPÍTULO VIII DO PONTIFICADO Quando a religião tem muitos ministros, é natural que eles possuam um chefe, e que o pontificado se estabeleça. Na monarquia, em que não seria demais separar as ordens do Estado e onde não se deve reunir sob uma mesma cabeça todos os poderes, é conveniente que o pontificado esteja separado do império. A mesma necessidade não existe no governo despótico, cuja natureza é reunir numa mesma cabeça todos os poderes. Mas, neste caso, poderia ocorrer que o príncipe considerasse a religião com suas próprias leis e como resultado de sua vontade. Para evitar este inconveniente, é preciso que haja monumentos da religião; por exemplo, livros sagrados que a fixam e a estabelecem. O rei da Pérsia é o chefe da religião; mas o Alcorão regulamenta a religião; o imperador da China é o soberano pontífice, mas existem livros que estão nas mãos de toda gente e aos quais ele próprio deve curvar-se. Inutilmente um imperador quis aboli-los: eles triunfaram sobre a tirania. CAPÍTULO IX DA TOLERÂNCIA EM MATÉRIA DE RELIGIÃO Aqui somos políticos e não teólogos; e, para os próprios teólogos, há muita diferença entre tolerar uma religião e aprová-la. Quando as leis de um Estado acreditaram dever suportar várias religiões, cumpre que elas as obriguem também a se tolerar entre si. E um princípio que toda religião reprimida se torna repressora, pois, logo que, por algum acaso, pode sair da opressão, ataca a religião que a reprimiu, não como religião, mas como tirania. É, portanto, útil que as leis exijam dessas diversas religiões não somente que não perturbem o Estado, mas também que não se perturbem mutuamente. Um cidadão não satisfaz às leis contentando-se com não agitar o corpo do Estado; é preciso também que não perturbe nenhum outro cidadão. CAPÍTULO X CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Como quase somente as religiões intolerantes têm grande zelo em se propagar em outras partes, pois uma religião que pode tolerar as demais quase não se ocupa de sua propagação, seria uma lei civil muito boa, quando o Estado está satisfeito com a religião já estabelecida, não permitir o estabelecimento de outra. Eis, portanto, o princípio fundamental das leis políticas em matéria de religião. Quando se está em condição de receber num Estado uma nova religião, ou de não recebê-la, não é necessário estabelecê-la; quando está estabelecida, faz-se mister tolerá-la. CAPÍTULO XI DA MUDANÇA DE RELIGIÃO Um príncipe que empreende, em seu Estado, destruir ou mudar a religião dominante expõe-se muito. Se seu governo é despótico, corre mais risco em ver uma revolução que, qualquer que seja a tirania, nunca é uma coisa nova nesses tipos de Estados. A revolução resulta do fato de um Estado não mudar de religião, de costumes, e de maneiras num instante e tão rapidamente quanto o príncipe publica a ordenança que estabelece uma nova religião. Demais, a religião antiga está ligada à constituição do Estado e a nova não o está; a primeira está mais de acordo com o clima, e, amiúde, a nova se lhe contradiz. Há mais: os cidadãos se desgostam de suas leis; passam a menosprezar o governo já estabelecido; substituem as desconfianças contra as duas religiões por uma firme crença em uma delas; numa palavra, dão ao estado, ao menos por algum tempo, maus cidadãos e maus fiéis. CAPÍTULO XII DAS LEIS PENAIS É preciso evitar as leis penais em matéria de religião. Elas imprimem O temor, é verdade; mas, como a religião também tem suas leis penais que inspiram temor, um é destruído pelo outro. Entre esses dois temores diferentes, as almas tomam-se atrozes. A religião possui ameaças tão grandes, tão grandes promessas, que, quando elas estão presentes em nosso espírito, qualquer coisa que o magistrado possa fazer para nos constranger a abandoná-la parece que não nos deixa nada quando no-la retira e que não nos retira nada quando no-la deixa. Não é, pois, enchendo a alma deste grande objeto, aproximando-a do momento em que ele deve ser de maior importância, que se consegue separá-la dele: ele está mais certo de atacar uma religião pelo favor, pelas comodidades da vida, pela esperança da fortuna; não pelo que adverte, mas pelo que faz com que se esqueça; não pelo que indigna, mas pelo que lança na tibieza, quando outras paixões agem sobre nossas almas e as que a religião inspira estão silenciadas. Regra geral: em matéria de mudança de religião, os convites são mais poderosos do que os castigos. O caráter do espírito humano revelou-se na mesma ordem das penas que foram empregadas. Quando nos lembramos das perseguições no Japão, revoltamo-nos mais contra os suplícios cruéis do que contra as longas penas que cansam mais do que amedrontam, que são mais difíceis de superar, porque parecem menos difíceis. Numa palavra, a história nos ensina que as leis penais nunca tiveram resultado senão como destruição. CAPÍTULO XIII MUITO HUMILDE EXORTAÇÃO AOS INQUISIDORES DA ESPANHA E DE PORTUGAL Uma judia de dezoito anos, queimada em Lisboa no último auto-de-fé, motivou esta pequena obra; e penso que é a mais inútil das que já foram escritas. Quando se trata de provar coisas tão evidentes, está-se certo de não convencer. O autor declara que, apesar de judeu, respeita a religião cristã e que a ama bastante para retirar aos príncipes que não são cristãos um pretexto plausível para persegui-la. Lamentai-vos, diz ele aos inquisidores, de que o imperador do Japão mandou queimar lentamente todos os cristãos de seus Estados; mas ele vos responderá: Tratamos-vos, vós que não credes como nós, como vós próprios tratais os que não acreditam como vós; só podeis lamentar vossa fraqueza que vos impede de nos exterminar e que faz com que vos exterminemos. "Mas é necessário confessar que sois bem mais cruéis do que este imperador. Mandai-nos matar, nós que só acreditamos no que credes, porque não acreditamos em tudo o que credes. Seguimos uma religião que vós próprios o sabeis ter sido outrora a religião predileta de Deus; pensamos que Deus a ama ainda; e vós pensais que Ele não a ama mais; e porque julgais assim, fazeis passar pelo ferro e pelo fogo os que se encontram neste erro tão perdoável de crer que Deus ama também o que amou. Se sois cruéis conosco, sois muito mais em relação a nossos filhos; mandais queima-los porque seguem muitas vezes as inspirações que lhes deram aqueles que a lei natural e as leis de todos os povos lhes ensinam a respeitar como deuses. Privai-vos da vantagem que vos deu sobre os maometanos a maneira pela qual sua religião se estabeleceu. Quando eles se gabam do número de seus fiéis, vós lhes dizeis que o adquiriram à força e que propagaram sua religião pelo ferro; por que, então, estabeleceis a vossa pelo fogo? Quando quereis fazer com que cheguemos a vós, nós vos objetamos uma origem de que vos gabais de descender. Respondeis que vossa religião é nova mas divina e o provais porque se difundiu sob a perseguição dos pagãos e pelo sangue de vossos mártires; mas hoje assumis o papel dos Dioclecianos e nos obrigais a assumir o vosso. Conjuramos-vos, não pelo Deus poderoso a que servimos, vós e nós, mas pelo Cristo que nos dizeis ter assumido a condição humana para vos propor exemplo que pudésseis seguir; conjuramos-vos a agir como ele próprio agiria se estivesse ainda sobre a terra. Quereis que sejamos cristãos e não o quereis sê-lo. Mas, se não quereis ser cristãos, sede homens ao menos: tratai-nos como faríeis se, possuindo apenas esses fugazes Iam pejos de justiça que a Natureza nos dá, não tivésseis uma religião para vos conduzir, e uma revelação para vos esclarecer. Se o céu vos amou bastante para fazer-vos ver a verdade, ofereceu-vos uma grande graça; mas caberá aos filhos que tiveram a herança dos pais odiarem os que não a tiveram? Se possuís esta verdade, não a oculteis de nós pela maneira com que no-la propondes. O caráter da verdade é seu triunfo sobre os corações e os espíritos, e não esta impotência que revelais quando quereis fazer que a recebam com suplícios. Se sois razoáveis, não nos deveis matar, pois não vos desejamos ludibriar. Se vosso Cristo é o filho de Deus, esperemos que ele nos recompensará por não termos querido profanar seus mistérios; e acreditamos que o Deus a que servimos, vós e nós, não nos punirá pelo fato de termos sofrido a morte por uma religião que outrora nos deu, porque acreditamos ainda que por ele nos foi dada. Viveis num século em que o saber natural é mais vivo do que jamais o foi, em que a filosofia iluminou os espíritos, em que a moral de vosso Evangelho é mais conhecida, em que os direitos respectivos dos homens uns sobre os outros, o império que uma consciência tem sobre outra consciência, estão melhor estabelecidos. Se, pois, não abandonais vossos antigos preconceitos que, se não vos acautelardes, serão vossas paixões, devemos confessar que sois incorrigíveis, incapazes de toda luz e de toda instrução; e uma nação que outorga a autoridade a homens como vós é bem infeliz. Quereis que vos digamos simplesmente nosso pensamento? Considerais-nos antes vossos inimigos do que inimigos de vossa religião; pois, se amásseis vossa religião, não a deixaríeis corromper por grosseira ignorância. Cumpre advertir-vos de uma coisa: se alguém na posteridade ousar alguma vez dizer que no século em que vivemos os povos da Europa eram policiados, outra pessoa citar-vos-á para provar que eram bárbaros e a ideia que se terá de vós será tal, que aviltará vosso século e trará o ódio para todos os vossos contemporâneos. CAPÍTULO XIV POR QUE A RELIGIÃO CRISTÃ É TÃO ODIOSA AO JAPÃO Falei do caráter atroz das almas japonesas. Os magistrados consideraram a firmeza que inspira o cristianismo quando se trata de renunciar à fé como muito perigosa: acreditaram ver aumentar a audácia. A lei do Japão pune severamente a menor desobediência. Ordena-se renunciar à religião cristã: não renunciar significa desobedecer; castigava-se este crime e a continuação da desobediência parecia merecer outro castigo. As punições, entre os japoneses, são consideradas a vingança de um insulto feito ao príncipe. Os cantos de regozijo de nossos mártires pareceram um atentado contra ele: o título de mártir indignou os magistrados; em seus espíritos, significava rebelde; tudo fizeram para impedir que fosse obtido. Foi então que as almas se aterrorizaram e que se viu horrível combate entre os tribunais que condenaram e os acusados que sofreram, entre as leis civis e as da religião. CAPÍTULO XV DA PROPAGAÇÃO DA RELIGIÃO Todos os povos do Oriente, exceto os maometanos, julgam todas as religiões indiferentes em si mesmas. Temem o estabelecimento de outra religião apenas como mudança no governo. Entre os japoneses, em que há várias seitas, e onde o Estado teve durante longo tempo um chefe eclesiástico, nunca se discute a respeito de religião. Acontece o mesmo entre os siameses. Os calmucos fazem mais: consideram uma questão de consciência tolerar todas as formas de religião. Em Calecute é uma máxima do Estado considerar boa toda religião. Mas disso não resulta que uma religião, trazida de uma região muito afastada e totalmente diferente em clima, em leis, costumes e maneiras, obtenha todo o êxito que sua santidade deveria prometer-lhe. Isso é verdadeiro principalmente nos grandes impérios despóticos; toleram-se inicialmente os estrangeiros, porque não se dá atenção ao que não parece atingir o poderio do príncipe: vive-se numa ignorância extrema de tudo. Um europeu pode tornar-se agradável por certos conhecimentos que proporciona: isto é bom no início. Mas, logo que se obtém algum êxito, que surge algum litígio, que as pessoas que podem ter algum interesse são advertidas, proscreve-se logo a nova religião e os que a anunciam, pois este Estado, pela sua natureza, exige sobretudo tranquilidade e a menor perturbação pode destruí-lo; irrompendo as disputas entre os que a pregam, começa-se a se desgostar de uma religião em que até mesmo os que a propagam não se põem de acordo. LIVRO VIGÉSIMO SEXTO DAS LEIS, NA RELAÇÃO QUE DEVEM TER COM A ORDEM DAS COISAS SOBRE AS QUAIS ESTATUEM. CAPÍTULO I IDEIA DESTE LIVRO OS HOMENS SÃO governados por diversas espécies de leis: pelo direito natural; pelo direito divino, que é o da religião; pelo direito eclesiástico, igualmente chamado canônico, que é o da polícia da religião; pelo direito das gentes, que se pode reputar como o direito civil do universo, no sentido de que cada povo é um cidadão seu; pelo direito político geral, que versa sobre esta sabedoria humana em que se estribam todas as sociedades; pelo direito político particular, que diz respeito a cada sociedade; pelo direito de conquista, fundamentado em que um povo quis, pôde e teve de fazer violências a outro; pelo direito civil de cada sociedade, segundo o qual todo cidadão pode defender seus bens e sua vida contra qualquer outro cidadão; e, finalmente, pelo direito doméstico, que deriva do fato de uma sociedade achar-se dividida em diversas famílias que têm necessidade de um governo particular. Há, portanto, diferentes ordens de leis; e a sublimidade da razão humana consiste em saber justamente com qual destas ordens se relacionam, principalmente, as coisas sobre as quais se deve estatuir, e em não introduzir confusão nos princípios que devem governar os homens. CAPÍTULO II DAS LEIS DIVINAS E DAS LEIS HUMANAS Não se deve de modo algum estatuir pelas leis divinas o que deve sê-lo pelas leis humanas, nem regulamentar pelas leis humanas o que deve ser feito pelas leis divinas. Essas duas sortes de leis divergem em sua origem, em seu objeto e em sua natureza. Todos estão de acordo em que as leis humanas são de natureza diferente da das leis da religião, e isso constitui um grande princípio: mas este mesmo princípio está sujeito a outros que é necessário procurar. 1°) É da natureza das leis humanas estarem submetidas a todos os acidentes que sobrevêm, e variarem à medida que as vontades dos homens mudam; ao passo que é da natureza das leis da religião nunca variarem. As leis humanas preceituam sobre o bem; a religião, sobre melhor. O bem pode ter outro objeto, porque há vários bens, mas melhor é somente um; não pode mudar, portanto. A nós é dado mudar as leis, porque julgamo-las apenas boas; mas as instituições da religião sempre são consideradas as melhores. 2°) Existem Estados em que as leis nada representam, ou não passam de uma vontade caprichosa e passageira de um soberano. Se, nestes Estados, as leis da religião fossem da mesma natureza das leis humanas, tampouco nada representariam; é necessário, portanto, à sociedade, que haja alguma coisa de fixo, e alguma coisa de fixo é a religião. 3°) A principal força da religião promana do fato de acreditarmos nela; já as leis humanas têm sua força em temermo-las. À religião convém a antiguidade, porque muitas vezes cremos mais nas coisas à medida que mais remotas se encontram de nós; e isso porque não temos na mente, ideias acessórias tiradas destes tempos, as quais possam contradizê-las. Ao contrário, as leis humanas tiram proveito de sua novidade, que denota uma atenção particular e atual do legislador, a fim de tomá-las obedecidas. CAPÍTULO III DAS LEIS CIVIS QUE SÃO CONTRÁRIAS À LEI NATURAL "Se um escravo", diz Platão, "se defende e mata um homem livre, deve ser tratado como parricida.” Aí está uma lei civil que pune a defesa natural. A lei que, no tempo de Henrique VIII, condenava um homem sem que tivessem sido acareadas as testemunhas era contrária à defesa natural: com efeito, para que se possa condenar, é mister que as testemunhas saibam que o homem contra quem depõem é mesmo o acusado, e que esse possa dizer: Não é de mim que estais falando. A lei admitida no mesmo reinado, condenando toda jovem que, tendo mantido relações ilícitas com alguém antes de desposa-lo, não o declarasse ao rei, contrariava a defesa do pudor natural; é tão disparatado exigir de uma jovem que faça esta declaração, quanto pedir a um homem que não procure defender a vida. A lei de Henrique II, que condena à morte a jovem cujo filho tenha perecido, no caso em que não tenha declarado sua gravidez ao magistrado, não é menos contrária à defesa natural. Bastava obrigá-la a informar a respeito uma das suas parentas mais próximas, que cuidaria da conservação da criança. Que outra confissão poderia ela fazer neste suplício do pudor natural? A educação aumentou-lhe a ideia da conservação deste pudor; e mal lhe restou, nestes momentos, uma ideia da perda da vida. Muito se falou de uma lei da Inglaterra que permitia a uma menina escolher um marido. Esta lei era revoltante por dois aspectos: não tinha nenhuma deferência para com o tempo da maturidade que a Natureza deu ao espírito, nem para com o tempo da maturidade que ela deu ao corpo. Entre os romanos, um pai podia obrigar a filha a repudiar o marido, embora tivesse antes consentido no casamento. Mas é contra a Natureza o divórcio ser posto nas mãos de uma terceira pessoa. Se o divórcio é conforme à Natureza, somente o é quando as duas partes, ou ao menos uma delas, nele consentem; quando nem uma nem outra concordam com ele, o divórcio é uma monstruosidade. Enfim, a faculdade de decretar o divórcio só deve ser dada aos que sofrem dos incômodos do casamento e que conhecem o momento em que há interesse em cessa-los, CAPÍTULO IV CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Gondovaldo, rei da Borgonha, ordenava que fossem reduzidos à escravidão a mulher ou filho que roubou, se não revelassem o crime. Esta lei ia contra a Natureza. Como podia uma mulher ser acusadora do marido? Como um filho podia ser acusador do próprio pai? Para compensar uma ação criminosa, ordenava outra ainda mais criminosa. A lei de Recessuindo permitia que os filhos da mulher adúltera, ou os de seu marido, acusassem-na e submetessem a maus-tratos os escravos da casa. Lei iníqua, já que, para preservar os costumes, subvertia a Natureza, onde os costumes têm sua origem. Com prazer assistimos, em nossos teatros, a um jovem herói demonstrar tanto horror por descobrir o crime de sua madrasta quanto teria pelo próprio crime; em sua surpresa, acusado, julgado, proscrito e coberto de infâmia, mal ousa fazer algumas reflexões sobre o sangue abominável de que proveio Fedra; ele abandona o que tem de mais caro, tudo o que pode indigná-lo, a fim de entregar-se à vingança dos deuses que ele não mereceu. São os acentos da Natureza que causam este prazer; é a mais doce de todas as vozes. CAPÍTULO V CASO EM QUE SE PODE JULGAR PELOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL MODIFICANDO OS PRINCÍPIOS DO DIREITO NATURAL Uma lei de Atenas obrigava os filhos a alimentar os pais que houvessem caído na miséria; fazia exceção aos nascidos de uma cortesã, àqueles cujo pai havia exposto a pudicícia por um tráfico infame e àquele a quem não se tinha dado ofício para ganhar a vida. A lei considerava que, no primeiro caso, sendo incerto o pai, tornara precária sua obrigação natural; que, no segundo, aviltara a vida que havia dado, e que o maior mal que poderia fazer a seus filhos, ele o fizera, ao priva-los de seu caráter, que, no terceiro, havia-lhes tornado insuportável uma vida que sentiam tanta dificuldade em manter. A lei encarava o pai e o filho tão somente como dois cidadãos, estatuía apenas sobre concepções políticas e civis; considerava que, numa boa república, são necessários principalmente os costumes. Creio, na verdade, que a lei de Sólon era boa nos dois primeiros casos, ou seja, naquele em que a Natureza deixa que o filho ignore qual é seu pai e naquele em que, segundo parece, ela mesma ordena que o desconheça; mas não poderíamos aprová-la no terceiro, em que o pai violara apenas um preceito civil. CAPÍTULO VI DE COMO A ORDEM DAS SUCESSÕES DEPENDE DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO OU CIVIL, E NÃO DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO NATURAL. A lei voconiana não permitia, de forma alguma, que se instituísse herdeira uma mulher, nem mesmo filha única. Nunca houve, diz Santo Agostinho, lei mais injusta. Uma fórmula de Marculfo chama ímpio o costume que priva as filhas de suceder aos pais. Justiniano considera bárbaro o direito de suceder dos homens, em detrimento das mulheres. Essas ideias procedem do fato de se ter visto o direito que os filhos têm de suceder aos pais como uma consequência da lei natural; o que não é. A lei natural ordena aos pais que alimentem seus filhos, mas não os obriga a instituí-los herdeiros. A partilha dos bens, as leis sobre esta partilha, as sucessões após a morte daquele que fez essa partilha, tudo isso só pode ter sido regulamentado pela sociedade e, por conseguinte, por leis políticas ou civis. É verdade que a ordem política ou civil quer, muitas vezes, que os filhos sucedam aos pais, mas não o exige sempre. As leis de nossos feudos podem ter tido razões para que o mais velho dos filhos varões, ou os parentes mais próximos na linha dos homens, tivessem tudo, e que as filhas não tivessem nada; e as leis dos lombardos podem tê-las tido para que as irmãs, os filhos naturais, os outros parentes e, na sua falta, o fisco tivessem os mesmos direitos que as filhas. Em algumas dinastias da China, foi regulamentado que os irmãos do imperador lhe sucederiam, e que seus filhos não lhe sucederiam. Se se queria que o príncipe tivesse alguma experiência, se se temiam as minoridades, se era preciso prevenir que os eunucos colocassem sucessivamente crianças no trono, agiu-se muito bem se fixando semelhante ordem de sucessão; e, quando alguns- escritores chamaram estes irmãos de usurpadores, estavam julgando baseados em ideias tiradas das leis de seus países. Segundo o costume da Numídia, Delsácio, irmão de Gela, sucedeu-lhe ao trono, e não Massinissa, seu filho. E ainda hoje, entre os árabes da Barbaria, em que cada aldeia tem um chefe, segundo este antigo costume escolhe-se o tio, ou qualquer outro parente, para suceder. Há monarquias puramente eletivas; e, desde que está claro que a ordem das sucessões deve derivar das leis políticas ou civis, cabe a elas decidir em que caso a razão ordena que esta sucessão seja outorgada aos filhos, e em que casos deve-se concedê-la a outros. Nos países em que a poligamia é assentada, o príncipe tem muitos filhos; o seu número é maior nuns países do que em outros. Há certos? Estados em que a manutenção dos filhos do rei seria impossível ao povo; aí se pôde estabelecer que os filhos do rei não lhe sucederiam, mas sim os da irmã. Um prodigioso número de filhos exporia o Estado a temíveis guerras civis. A ordem de sucessão que outorga a coroa aos filhos da irmã, cujo número não é maior do que seria o dos filhos de um príncipe que só tivesse uma esposa, previne tais inconvenientes. Existem nações nas quais razões de Estado ou alguma máxima de religião exigiram que certa família fosse sempre a reinante: tal é, nas Índias, o ciúme de casta e o medo de não descender dela. Pensou-se lá que, a fim de sempre ter príncipes de sangue real, cumpria tomar os filhos da irmã mais velha do rei. Máxima geral: alimentar os filhos constitui uma obrigação do direito natural; conceder-lhes a sucessão é uma obrigação do direito político ou civil. Daí procedem as diferentes disposições sobre os bastardos nos diversos países do mundo; seguem elas as leis civis ou políticas de cada país. CAPÍTULO VII DE COMO NÃO SE DEVE DECIDIR PELOS PRECEITOS DA RELIGIÃO QUANDO SE TRATA DOS DA LEI NATURAL Os abexins têm uma quaresma de cinquenta dias, muito rude, e que de tal modo os debilita, que, por muito tempo, são incapazes de qualquer ação: os turcos não deixam de ataca-los após sua quaresma. A religião, em proveito da defesa natural, deveria pôr limites a essas práticas. Ordenou-se aos judeus que descansassem no sábado; mas constituiu uma estupidez desta nação não se defender, quando seus inimigos escolheram este dia para ataca-los. Cambises, ao sitiar Pelusa, pôs na primeira fileira grande número de animais que os egípcios consideravam sagrados; os soldados da guarnição não se atreveram a atirar. Quem não vê que a defesa natural é de ordem superior a todos os preceitos? CAPÍTULO VIII DE COMO NÃO SE DEVE REGULAMENTAR PELOS PRINCÍPIOS DO DIREITO QUE SE CHAMA CANÔNICO AS COISAS REGULADAS PELOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL Pelo direito civil dos romanos, aquele que furta de um lugar sagrado uma coisa particular é castigado apenas pelo crime de furto; pelo direito canônico, é punido pelo crime de sacrilégio. O direito canônico leva em consideração o lugar; o direito civil, a coisa. Mas levar em conta somente o lugar equivale a não refletir nem sobre a natureza e a definição do roubo, nem sobre a natureza e a definição do sacrilégio. Como o marido pode pedir a separação em virtude de infidelidade da mulher, essa outrora pedia-a por causa da infidelidade do marido. Tal uso, contrário ao dispositivo das leis romanas, fora introduzido nos tribunais da Igreja, onde só se viam as máximas do direito canônico; e, com efeito, encarando o casamento apenas dentro das ideias puramente espirituais e na relação com as coisas da outra vida, a violação é a mesma. Mas as leis políticas ou civis de quase todos os povos fizeram distinção, com razão, entre esses dois casos. Exigiram das mulheres um grau de comedimento e de continência que não pedem aos homens, porque a violação do pudor pressupõe nas mulheres uma renúncia a todas as virtudes; porque a mulher, ao violar as leis do casamento, deixa o estado de dependência natural; porque a Natureza assinalou a infidelidade das mulheres com marcas certas, além de que os filhos adulterinos da mulher são necessariamente do marido, e estão a cargo dele, enquanto os filhos adulterinos do marido não são da mulher, nem se encontram a cargo dela. CAPÍTULO IX DE COMO AS COISAS QUE DEVEM SER REGULADAS PELOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL RARAMENTE PODEM SÊ-LO PELOS PRINCÍPIOS DAS LEIS DA RELIGIÃO As leis religiosas têm mais sublimidade; as leis civis dispõem de mais extensão. As leis de perfeição, extraídas da religião, têm por objeto mais a bondade do homem que as segue do que a da sociedade nas quais são observadas; ao contrário, as leis civis versam mais sobre a bondade moral dos homens em geral do que sobre a dos indivíduos. Deste modo, por respeitáveis que sejam as ideias que nascem imediatamente da religião, não devem sempre servir de princípio às leis civis, porque é outro o princípio destas, que é o bem geral da sociedade. Os romanos estabeleceram regulamentos a fim de resguardar na república os costumes das mulheres: eram as instituições políticas. Quando se instalou a monarquia, criaram leis civis a este respeito; e as estabeleceram sobre os princípios do governo civil. Quando apareceu a religião cristã, as novas leis estabelecidas apresentaram menos relação com a bondade geral dos costumes do que com a santidade do casamento; considerar-se-á menos a união dos dois sexos no estado civil do que num estado espiritual. Primeiramente, pela lei romana, um marido que recebia sua mulher após a condenação de adultério deveria ser punido como cúmplice de seus desregramentos. Justiniano, dentro de outro espírito, ordenou que ele poderia, durante dois anos, ir retomá-la no mosteiro. Quando uma mulher que tinha o marido na guerra não ouvia mais falar dele, podia, nos primeiros tempos, casar de novo facilmente, porque tinha nas mãos o poder de divorciar-se. A lei de Constantino ordenou que ela esperasse quatro anos, após os quais podia enviar ao chefe o libelo de divórcio; e, se seu marido voltasse, não podia mais acusá-la de adultério. Mas Justiniano estabeleceu que, qualquer que fosse o tempo decorrido desde a partida do marido, não podia ela casar-se novamente, a menos que provasse a morte do marido, pelo depoimento e pelo juramento do chefe. Justiniano tinha em vista a indissolubilidade do casamento; mas pode-se dizer que a tinha muito em vista. Pedia uma prova positiva, quando bastava uma prova negativa; exigia uma coisa muito difícil: dar conta do destino de um homem afastado e exposto a tantos acidentes; presumia um crime, isto é, a deserção do marido, quando era tão natural presumir-lhe a morte. Ia de encontro ao bem público, ao deixar uma mulher sem casamento; ia de encontro ao interesse particular, ao expô-la a mil perigos. A lei de Justiniano, que colocou entre as causas do divórcio o consentimento do marido e da mulher em ingressar num mosteiro, afastava-se totalmente dos princípios das leis civis. É natural que certas causas do divórcio provenham de certos impedimentos que não se podia prever antes do casamento; mas se podia prever o desejo de castidade, pois está em nós. Esta lei favorecia a inconstância num estado que é perpétuo por sua própria natureza; chocava o princípio fundamental do divórcio, que só aceitava a dissolução de um casamento na esperança de outro; finalmente, mesmo seguindo as ideias religiosas, ela apenas dedicava a Deus vítimas sem sacrifício. CAPÍTULO X EM QUE CASO SE DEVE SEGUIR A LEI CIVIL QUE PERMITE, E NÃO A LEI DA RELIGIÃO QUE PROÍBE. Quando, num país em que a poligamia é permitida, introduz-se uma religião que a proíbe, não acreditamos, falando apenas politicamente, que a lei do país deva admitir que um homem que tem várias mulheres se converta a tal religião, a menos que o magistrado e o marido as indenizem, restituindo-lhes, de alguma maneira, seu estado civil. Do contrário, sua condição seria deplorável; nada mais teriam feito do que obedecer às leis, e se veriam privadas das maiores vantagens da sociedade. CAPÍTULO XI DE COMO NÃO SE DEVE REGULAMENTAR OS TRIBUNAIS HUMANOS PELAS MÁXIMAS DOS TRIBUNAIS QUE CONCERNEM À OUTRA VIDA O tribunal da inquisição, formado pelos monges cristãos à ideia do tribunal da penitência, é contrário a toda boa polícia. Em toda parte encontrou uma revolta geral; e teria cedido às contradições, se aqueles que pretendiam estabelecê-los não houvessem tirado vantagens dessas mesmas contradições. Esse tribunal é insuportável em todos os governos. Na monarquia, só pode produzir delatores e traidores; nas repúblicas, só pode originar pessoas desonestas; no Estado despótico, é tão destruidor quanto ele. CAPÍTULO XII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Constitui um dos abusos desse tribunal que, de duas pessoas acusadas do mesmo crime, aquela que nega é condenada à morte, e aquela que confessa evita o suplício. Isto é extraído das ideias monásticas, em que aquele que nega parece estar na impenitência e condenado, e aquele que confessa parece estar no arrependimento e salvo. Semelhante distinção, porém, não pode dizer respeito aos tribunais humanos; a justiça humana, que vê tão somente as ações, tem com os homens um único pacto, que é o da inocência; a justiça divina, que vê os pensamentos, tem dois, o da inocência e o do arrependimento. CAPÍTULO XIII EM QUE CASO DEVEM-SE SEGUIR, EM RELAÇÃO AOS CASAMENTOS, AS LEIS DA RELIGIÃO E EM QUE CASO DEVEM-SE SEGUIR AS LEIS CIVIS Ocorreu, em todos os países e em todos os tempos, que a religião se imiscuiu nos casamentos. Desde que certas coisas foram consideradas impuras e ilícitas, e entretanto eram necessárias, teve-se de apelar para a religião, a fim de legitimá-las num caso, e reprová-las nos outros. De outro lado, sendo os casamentos, de todas as ações humanas, a que mais de perto interessava a sociedade, foi necessário que fossem regulamentados pelas leis civis. Tudo o que diz respeito ao caráter do casamento, à sua forma, à maneira de contraí-lo, à fecundidade que proporciona, que fez com que todos os povos compreendessem que era objeto de uma bênção particular, que, não lhe estando sempre vinculada, dependia de certas graças superiores; tudo isso é da competência da religião. As consequências dessa união em relação aos bens, as vantagens recíprocas, tudo o que se relaciona com a nova família, com aquela donde saiu, com a que deve nascer, tudo isso concerne às leis civis. Já que um dos grandes objetos do casamento é eliminar todas as incertezas que pesam sobre as uniões ilegítimas, a religião imprime-lhe seu caráter e as leis civis acrescentam-lhe o seu, a fim de que tenha toda autenticidade possível. Desse modo, além das condições que a religião exige para que seja válido o matrimônio, as leis civis ainda podem exigir outras. O que transmite esse poder às leis civis é que se trata de caracteres complementares e não de caracteres contraditórios. A lei religiosa prescreve certas cerimônias, e as leis civis querem o consentimento dos pais; com isso, exigem algo mais, mas nada exigem que seja contraditório. Segue-se daí que compete à lei da religião decidir se o laço será indissolúvel ou não, pois, se as leis da religião houvessem estabelecido o laço indissolúvel, e as leis civis tivessem preceituado que ele podia romper-se, seriam duas coisas contraditórias. Os caracteres impressos ao casamento pelas leis civis não são, às vezes, de absoluta necessidade; assim são aqueles estabelecidos pelas leis que, em lugar de anular o casamento, contentaram-se com punir os que o contraíram. Entre os romanos, as leis Papianas declararam contrários à justiça os casamentos que elas proibiam, e os submeteram tão somente a penas, e o senatus-consulto dado sobre o discurso do Imperador Marco Antonino declarou-os nulos; não houve mais casamento, mulher, dote, marido. A lei civil determina-se segundo as circunstâncias; às vezes ela se preocupa com reparar o mal, outras com preveni-lo. CAPÍTULO XIV EM QUE CASOS, NOS CASAMENTOS ENTRE PARENTES, DEVE-SE REGULAMENTAR PELAS LEIS DA NATUREZA; EM QUE CASOS DEVE-SE REGULAMENTAR PELAS LEIS CIVIS Na questão da proibição de casamento entre parentes, é coisa muito delicada situar com exatidão o ponto em que se detêm as leis da natureza, e aquele em que se iniciam as leis civis. Para tanto, é mister fixar princípios. O casamento do filho com a mãe confunde o estado das coisas: o filho deve um respeito ilimitado à mãe, a mulher deve um respeito ilimitado ao marido; o casamento da mãe com o filho subverteria, num e noutro, seu estado natural. Há mais: a Natureza adiantou, nas mulheres, o tempo em que podem gerar filhos; retardou-o nos homens; e, pela mesma razão, a mulher cessa de ter essa faculdade antes, e o homem, mais tarde. Se fosse permitido o casamento entre mãe e filho, aconteceria quase sempre que, quando o marido fosse capaz de cumprir os desígnios da Natureza, a mulher não mais o seria. O casamento entre o pai e a filha repugna à Natureza como o anterior; mas repugna menos porque não apresenta esses dois obstáculos. Daí por que os tártaros, que podem desposar suas filhas, jamais o fazem com as mães, como vemos nos Relatórios. Sempre foi da natureza dos pais velar pelo pudor de seus filhos. Encarregados do cuidado de formá-los, tiveram de conservar-lhes o corpo no mais perfeito estado, a alma o menos corrompida possível, tudo o que pode melhor inspirar desejos, e tudo o que é mais suscetível de provocar ternura. Aos pais, sempre ocupados em preservar os costumes dos filhos, foi mister ter natural aversão por tudo o que poderia corrompê-los. O casamento não constitui corrupção, dirão; mas, antes do casamento, é preciso falar, é necessário fazer-se amar, é preciso seduzir; esta sedução é que deve ter inspirado horror. Necessitou-se, portanto, de uma barreira insuperável entre aqueles que deviam ministrar a educação e os que deviam recebê-la, e evitar toda espécie de corrupção, mesmo em causa legítima. Por que os pais privam com tanto cuidado os que tencionam desposar suas filhas da companhia e da familiaridade delas? O horror ao incesto do irmão com a irmã deve ter provindo da mesma fonte. Foi suficiente que os pais e as mães tenham querido conservar puros os costumes de seus filhos e suas casas, para inspirar aos filhos horror por tudo o que podia incita-los à união dos dois sexos. A proibição do casamento entre primos coirmãos tem a mesma origem. Nos primeiros tempos, isto é, nos tempos santos, nas épocas em que não se conhecia o luxo, todos os filhos permaneciam em casa, e aí se estabeleciam; é que numa casa pequena podia-se abrigar uma grande família. Os filhos dos dois irmãos, ou primos coirmãos, eram considerados e se consideravam entre si irmãos. A mesma aversão que havia entre os irmãos e as irmãs pelo casamento, havia também, portanto, entre os primos coirmãos. Essas causas são tão fortes e tão naturais, que atuaram em quase toda a terra, independentemente de qualquer comunicação. Não foram os romanos que ensinaram aos habitantes de Formosa que o casamento entre parentes até o quarto grau era incestuoso; não foram os romanos que o disseram aos árabes, não o ensinaram aos maldivas. Se alguns povos não rejeitaram os casamentos entre os pais e os filhos, as irmãs e os irmãos, viu-se no primeiro livro que os seres inteligentes nem sempre seguem suas leis. Quem o diria! Ideias religiosas fizeram, frequentem ente, com que os homens caíssem nesses desregramentos. Se os assírios, os persas, desposaram suas mães, os primeiros fizeram por religioso respeito para com Semíramis; e os segundos, porque a religião de Zoroastro dava preferência a esses casamentos. Se os egípcios casaram-se com as irmãs, foi também um desvairamento da religião egípcia, que consagrou tais casamentos em honra de Ísis. Como é do espírito da religião levar-nos a fazer com esforço coisas grandes e difíceis, não se deve julgar que uma coisa é natural somente porque uma religião falsa a consagrou. O princípio de que os casamentos entre os pais e os filhos, os irmãos e as irmãs, são proibidos pela preservação do pudor natural em casa servirá para fazer-nos descobrir quais são os casamentos proibidos pela lei natural, e os que só podem sê-lo pela lei civil. Já que os filhos habitam, ou se julga habitarem na casa de seu pai e, por conseguinte, o enteado com a madrasta, o padrasto com a enteada, ou com a filha de sua mulher, o casamento entre eles é proibido pela lei da Natureza. Em tal caso, a imagem tem o mesmo efeito que a realidade, porque tem a mesma causa; a lei civil não pode e não deve permitir tais casamentos. Há povos entre os quais, como eu disse, os primos coirmãos são considerados irmãos, porque de ordinário habitam a mesma casa; há outros onde não se conhece esse uso. Entre aqueles povos, o casamento entre primos coirmãos deve ser encarado como contrário à natureza; entre os outros, não. Mas as leis da Natureza não podem ser leis locais. Desse modo, quando esses casamentos são proibidos ou consentidos, são, de acordo com as circunstâncias, consentidos ou proibidos por uma lei civil. Não é de uso necessário que o cunhado e a cunhada habitem a mesma casa. O casamento não é, portanto, proibido entre eles a fim de conservar a pudicícia em casa; e a lei que o proíbe ou consente não é uma lei da Natureza, mas uma lei civil, que se estabelece sobre as circunstâncias, e depende dos costumes de cada país: são casos em que as leis dependem dos costumes e das maneiras. As leis civis proíbem os casamentos, quando, pelos usos aceitos em certo país, se julga encontrarem-se nas mesmas circunstâncias que os que são proibidos pelas leis da Natureza; e elas os permitem quando os casamentos não se encontram neste caso. A proibição das leis da Natureza é invariável, porque depende de uma coisa invariável; o pai, a mãe e os filhos habitam necessariamente a mesma casa. Mas as proibições das leis civis são acidentais, porque dependem de uma circunstância acidental, pois só acidentalmente é que os primos coirmãos e outros habitam a mesma casa. Isso explica como as leis de Moisés, as dos egípcios e de vários outros povos consentem no casamento entre o cunhado e a cunhada, ao passo que esses mesmos casamentos são proibidos em outras nações. Nas Índias, há uma razão naturalíssima para admitir essas espécies de casamento. O tio aí é olhado como pai, e é obrigado a manter e estabelecer seus sobrinhos, como se fossem seus próprios filhos: isto provém do caráter deste povo, que é bom e cheio de humanidade. Esta lei ou este uso produziu outro. Se um marido perdeu a mulher, não pode deixar de desposar a irmã dela e isto é muito natural, pois a nova esposa torna-se a mãe dos filhos da irmã, e de forma alguma exige madrasta injusta. CAPÍTULO XV DE COMO NÃO SE DEVE REGULAMENTAR PELOS PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO AS COISAS QUE DEPENDEM DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CIVIL Como os homens renunciaram à sua independência natural para viver sob leis políticas, renunciam à comunhão natural dos bens para viver sob leis civis. Essas primeiras leis lhes proporcionaram a liberdade; as segundas, a propriedade. Não se deve decidir pelas leis da liberdade que, como dissemos, é apenas o império da cidade, o que deve ser decidido somente pelas leis concernentes à propriedade. Constitui um paralogismo dizer que o bem particular deve curvar-se ante o bem público: isso só ocorre nos casos em que se trata do império da cidade, isto é, a liberdade do cidadão; não acontece naqueles em que se trata da propriedade dos bens, porque o bem público consiste em que cada um conserve invariavelmente a propriedade que as leis civis lhe oferecem. Cícero sustentava que as leis agrárias eram funestas, porque a cidade só era estabelecida para que cada um conservasse seus bens. Tenhamos, portanto, por máxima que, quando se trata de bem público, não reside ele jamais em se privar um particular de seu bem ou mesmo em lhe suprimir a menor parte por uma lei ou um regulamento político. Neste caso, importa seguir com rigor a lei civil, que é a salvaguarda da propriedade. Assim, quando o público tem necessidade do capital de um particular, nunca se deve agir com o rigor da lei política; mas é então que deve triunfar a lei civil, que, como os dois olhos da mãe, olha cada particular como toda a cidade. Se o magistrado político desejar fazer algum edifício público, alguma estrada nova, cumpre que indenize; o público é, a este respeito, como um particular que trata com um particular. É bastante que possa obrigar um cidadão a lhe vender sua herança, e que lhe roube o grande privilégio, que tem da lei civil, de não poder ser forçado a alienar seu bem. Depois que os povos que destruíram Roma abusaram de suas próprias conquistas, o espírito de liberdade fê-los voltar ao de equidade; os mais bárbaros direitos, eles os exerceram com moderação; e, se alguém duvidasse disso, só teria que ler a admirável obra de Beaumanoir, que escrevia sobre a jurisprudência no século XII. Em seu tempo, as grandes estradas eram consertadas, como acontece hoje. Diz ele que, quando não se podia restabelecer uma grande estrada, abria-se outra, o mais perto possível da antiga; mas se indenizavam proprietários às custas dos que tiravam algum proveito da estrada. Decidia-se, nessa época, pela lei civil; em nossos dias, decide-se pela lei política. CAPÍTULO XVI DE COMO NÃO SE PODE RESOLVER PELAS REGRAS DO DIREITO CIVIL, QUANDO SE TRATA DE RESOLVER PELAS DO DIREITO POLÍTICO. Ver-se-á O fundo de todas as questões, se não se confundirem as regras que derivam da propriedade da cidade com as que nascem da liberdade da cidade. O domínio de um Estado é alienável, ou não é? Esta questão deve ser decidida pela lei política, e não pela lei civil. Não deve ser decidida pela lei civil, porque é tão necessário que haja um domínio para prover à subsistência do Estado quanto é necessário que haja, no Estado, leis civis que regulamentem a disposição dos bens. Se, portanto, se alienar o domínio, o Estado será forçado a constituir novo capital para outro domínio. Mas este expediente arruína também o governo político, porque, pela natureza da coisa, a cada domínio que se estabelecer, o súdito pagará sempre mais, e o soberano retirará sempre menos; em suma, o domínio é necessário, e a alienação não o é. A ordem de sucessão, nas monarquias, baseia-se no bem do Estado, que exige que esta ordem seja fixada, a fim de evitar as desgraças que, já disse, devem ocorrer no despotismo, onde tudo é incerto, porque tudo é arbitrário. Não é em proveito da família reinante que a ordem de sucessão é estabelecida, mas porque interessa ao Estado que haja uma família reinante. A lei que regulamenta a sucessão dos particulares é uma lei civil, que tem por objeto o interesse dos particulares; a que regulamenta a sucessão à monarquia é uma lei política, que tem por objeto o bem e a preservação do Estado. Daí se segue que, quando a lei política estabelecer num Estado uma ordem de sucessão, e esta ordem venha a findar-se, é absurdo reclamar a sucessão em virtude da lei civil de qualquer que seja o povo. Uma sociedade particular não vai fazer leis para outra sociedade. As leis civis dos romanos não são mais aplicáveis do que todas as outras leis; eles próprios não as empregaram, quando julgaram os reis: e as máximas pelas quais julgaram os reis são tão abomináveis que de modo algum se deve revivê-las. Disso ainda se segue que, quando a lei política fez qualquer família renunciar à sucessão, é absurdo querer empregar as restituições tiradas da lei civil. As restituições estão na lei; e podem ser boas contra os que vivem na lei; mas não são boas para aqueles que foram estabelecidos para a lei e vi vem para a lei. É ridículo pretender decidir os direitos dos reinos, das nações e do universo, pelas mesmas máximas com que se decide entre particulares o direito de uma goteira, para servir-me da expressão de Cícero. CAPÍTULO XVII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO O ostracismo deve ser examinado pelas regras da lei política, e não pelas regras da lei civil; e, muito longe de vir este uso aviltar o governo popular, é ele, ao contrário, apropriado a demonstrar-lhe a brandura, e teríamos sentido isso, se, sendo entre nós o exílio sempre uma pena, tivéssemos podido separar a ideia de ostracismo da de punição. Aristóteles nos diz que toda a gente está convicta de que esta prática apresenta alguma coisa de humano e de popular. Se, nos tempos e nos lugares em que se exercia este julgamento, não o consideravam odioso, cabe a nós, que vemos as coisas de tão longe, pensar de modo diferente dos acusadores, dos juízes e do próprio acusado? E se dermos atenção ao fato de este julgamento do povo cumular de glória aquele contra quem era pronunciado; ao fato de, quando dele se abusou em Atenas contra um homem que não o merecia, se deixou de emprega-lo, ver-se-á muito bem que se tem dele uma ideia falsa, e que constituía uma lei admirável a que previa os efeitos malsãos que podia produzir a glória de um cidadão, ao cumulá-lo de nova glória. CAPÍTULO XVIII DE COMO SE DEVE EXAMINAR SE AS LEIS QUE PARECEM CONTRADIZER-SE SÃO DA MESMA ORDEM Em Roma foi permitido que o marido emprestasse a mulher a outro. Plutarco no-lo diz formalmente. Sabe-se que Catão emprestou sua mulher a Hortênsío, e Catão não era homem que violasse as leis de seu país. De outro lado, um marido que consentisse nos desregramentos de sua esposa, que não a levasse a julgamento, ou que voltasse a ela após a condenação, era punido. Tais leis parecem contradizer-se, mas não se contradizem de nenhum modo. A lei que permitia que um romano emprestasse a esposa é visivelmente uma constituição lacedemônia, fixada para dar à república filhos de boa espécie, se ouso servir-me do termo; a outra tinha por objeto resguardar os costumes. A primeira era uma lei política; a segunda, uma lei civil. CAPÍTULO XIX DE COMO NÃO SE DEVEM DECIDIR PELAS LEIS CIVIS AS COISAS QUE DEVEM SÊ-LO PELAS LEIS DOMÉSTICAS A lei dos visigodos ordenava que os escravos fossem obrigados a prender o homem e a mulher que surpreendessem em adultério e apresentá-los ao marido e ao juiz: lei terrível, que colocava nas mãos destas vis pessoas o encargo da vingança pública, doméstica e particular! Esta lei só seria boa nos serralhos do Oriente, onde o escravo que é encarregado da clausura já prevaricou no momento em que se prevarica. Prende os criminosos, menos para leva-los a julgamento do que para que julguem a ele próprio, e para conseguir que se investigue, nas circunstâncias da ação, se se pode perder a suspeita de sua negligência. Mas nos países em que as mulheres não são guardadas, constitui uma insensatez que a lei civil as submeta, elas que governam a casa, à inquisição de seus escravos. Esta inquisição poderia ser, em certos casos, no máximo uma lei particular doméstica, nunca lei civil. CAPÍTULO XX DE COMO NÃO SE DEVEM DECIDIR PELOS PRINCÍPIOS DAS LEIS CIVIS AS COISAS QUE PERTENCEM AO DIREITO DAS GENTES A liberdade consiste, principalmente, em não poder ser forçado a fazer uma coisa que a lei não ordena; e achamo-nos nesta situação tão somente porque somos governados por leis civis: somos livres, portanto, porque vivemos sob leis civis. Segue-se disso que os príncipes, que não vivem entre si sob leis civis, não são livres; são governados pela força; podem continuamente forçar ou ser forçados. Daí se segue que os tratados que fizeram forçados são tão obrigatórios quanto os que teriam feito de bom grado; quando nós, que vivemos sob leis civis, somos coagidos a fazer algum contrato que a lei não exige, podemos, graças à lei, insurgir-nos contra a violência; mas um príncipe, que sempre se encontra em situação de forçar ou ser forçado, não pode queixar-se de um tratado que foi obrigado a fazer por violência. É como se ele se queixasse de seu estado natural; é como se quisesse ser príncipe em relação aos outros príncipes, e que os outros príncipes fossem cidadãos em relação a ele; isto é, chocar a natureza das coisas. CAPÍTULO XXI DE COMO NÃO SE DEVEM DECIDIR PELAS LEIS POLÍTICAS AS COISAS QUE PERTENCEM AO DIREITO DAS GENTES As leis políticas exigem que todo homem seja submetido aos tribunais criminais e cíveis do país onde se encontra, e à animadversão do soberano. O direito das gentes ordenou que os príncipes enviassem embaixadores uns aos outros; e a razão, extraída da natureza da coisa, não permitiu que tais embaixadores dependessem do soberano aos quais foram enviados, nem de seus tribunais. Representam a palavra do príncipe que os envia, e esta palavra deve ser livre. Nenhum obstáculo deve obstar-lhes a ação. Podem muitas vezes desagradar, porque falam por um homem independente. Poder-se-ia imputar-lhes crimes, se pudessem ser punidos por crimes; poder-se-ia atribuir-lhes dívidas, se pudessem ser presos por dívidas. Um príncipe que tem orgulho natural falaria pela boca de um homem que teria tudo a temer. Cumpre seguir, pois, em relação aos embaixadores, as razões tiradas do direito das gentes, e não as que procedem do direito político. Se abusarem de seu ser representativo, fazem-nos cessar, reenviando-os a seu país: pode-se mesmo acusá-los diante de seu senhor, que se torna, por isso, seu juiz ou seu cúmplice. CAPÍTULO XXII DESTINO INFELIZ DO INCA ATAUALPA Os princípios que acabamos de estabelecer foram cruelmente violados pelos espanhóis. O inca Ataualpa só podia ser julgado pelo direito das gentes; julgaram-no por leis políticas e civis. Acusaram-no de ter mandado à morte alguns de seus súditos, de ter tido várias mulheres etc. E o cúmulo da estupidez foi que não o condenaram pelas leis políticas e civis de seu país, e sim pelas leis políticas e civis dos espanhóis. CAPÍTULO XXIII DE COMO, QUANDO, POR ALGUMA CIRCUNSTÂNCIA, A LEI POLÍTICA DESTRÓI O ESTADO, DEVE-SE DECIDIR PELA LEI POLÍTICA QUE O CONSERVA, QUE SE TORNA ÀS VEZES UM DIREITO DAS GENTES. Quando a lei política, que estabeleceu no Estado certa ordem de sucessão, torna-se destruidora do corpo político para o qual foi feita, não se deve duvidar de que outra lei política não possa mudar esta ordem; e, bem longe de ser esta mesma lei oposta à primeira, ser-lhe-á inteiramente conforme na essência, pois ambas dependerão deste princípio: A SALVAÇÃO DO POVO É A SUPREMA LEI. Disse que um grande Estado, ao se tornar acessório de outro, enfraquecia-se e enfraquecia mesmo o principal. Sabe-se que ao Estado interessa ter seu chefe em seu próprio país, que as rendas públicas sejam bem administradas, que seu dinheiro não saia para enriquecer outro país. Muito importa que aquele que deve governar não se ache imbuído de máximas estrangeiras; elas convêm menos do que as que já se acham fixadas; aliás, os homens têm prodigioso apego a suas leis e a seus costumes; neles reside a felicidade de cada nação; é raro mudá-los sem grandes abalos e grande derramamento de sangue, como nos deixam ver as histórias de todos os países. Segue-se daí que, se um grande Estado tem por herdeiro um possuidor de um grande Estado, o primeiro pode muito bem excluí-lo, porque útil se torna a ambos os Estados que se mude a ordem da sucessão. Desse modo, a lei da Rússia, feita nos primórdios do reinado de Isabel, exclui prudentemente todo herdeiro que possua outra monarquia; desse modo, a lei de Portugal rejeita todo estrangeiro que seja admitido à coroa por direito de sangue. Se uma nação pode excluir, tem, com maior razão, o direito de fazer renunciar. Se ela teme que certo casamento tenha consequências que a possam levar a perder a independência, ou lançá-la numa partilha, poderá muito bem fazer que os contra entes, e os que deles nascerem, renunciem a todos os direitos que teriam sobre ela; e aquele que renuncia, e aqueles contra quem se renuncia, poderão se queixar tanto menos quanto o Estado poderia ter feito uma lei para excluí-los. CAPÍTULO XXIV DE COMO OS REGULAMENTOS DE POLÍCIA SÃO DE ORDEM DIFERENTE DOS DE OUTRAS LEIS CIVIS Há criminosos que o magistrado pune, há outros que corrige. Os primeiros são submetidos ao poder da lei, os outros à sua autoridade; aqueles são desligados da sociedade, a estes obriga-se que vivam de acordo com as regras da sociedade. No exercício da polícia, quem pune é mais o magistrado do que a lei; nos julgamentos de crimes, é a lei que pune mais do que o magistrado. As questões de polícia são coisas de todo instante, em que ordinariamente se trata de pouca coisa: quase não se necessita de formalidades. As ações da polícia são rápidas, e elas se exercem sobre coisas que se repetem todos os dias: as grandes punições não são, portanto, próprias para isso. Ela ocupa-se perpetuamente dos pormenores: os grandes exemplos não são feitos, portanto, para ela. Ela possui mais regulamentos do que leis. As pessoas que dela dependem estão incessantemente sob as vistas do magistrado; é, pois, culpa do magistrado se caem em excessos. Assim, não se deve confundir as grandes violações das leis com a violação da simples polícia: essas coisas são de ordem diferente. Daí se segue que não se está conforme a natureza das coisas nesta república da Itália, em que o porte de armas de fogo é punido como crime capital, e em que fazer mau uso delas não é mais fatal do que portá-las. Segue-se ainda que a ação tão louvada desse imperador que mandou empalar um padeiro que ele surpreendera em fraude é uma ação de sultão, que só sabe ser justo exagerando a própria justiça. CAPÍTULO XXV DE COMO NÃO SE DEVEM SEGUIR AS DISPOSIÇÕES GERAIS DO DIREITO CIVIL, QUANDO SE TRATA DE COISAS QUE DEVEM SER SUBMETIDAS A REGRAS PARTICULARES TIRADAS DE SUA PRÓPRIA NATUREZA. Será uma boa lei a que torna nulas todas as obrigações civis concluídas no curso de uma viagem entre os marinheiros num navio? François Pyrard nos diz que, em seu tempo, ela não era observada pelos portugueses, mas que o era pelos franceses. Pessoas que estão juntas somente por pouco tempo, que não têm nenhuma necessidade, pois o príncipe a provê, que não podem ter senão um único objeto, que é o de sua viagem, que não são mais da sociedade, mas cidadãos do navio, não devem contrair essas obrigações que só foram introduzidas para manter os encargos da sociedade civil. E neste mesmo espírito que a lei dos rádios, feita para um tempo em que se seguiam sempre as costas, ordenava que aqueles que permanecessem no barco durante a tempestade tivessem o navio e a carga, e que aqueles que o houvessem abandonado nada tivessem. SEXTA PARTE LIVRO VIGÉSIMO SÉTIMO DA ORIGEM DAS TRANSFORMAÇÕES DAS LEIS DOS ROMANOS SOBRE AS SUCESSÕES CAPÍTULO ÚNICO ESTA MATÉRIA LIGA-SE a estabelecimentos de antiguidade muito remota, e, a fim de penetrá-la a fundo, seja-me permitido procurar nas primeiras leis dos romanos o que não sei se foi visto até agora. Sabe-se que Rômulo dividiu as terras de seu pequeno Estado entre seus cidadãos; parece-me que daí é que procedem as leis de Roma sobre as sucessões. A lei da divisão das terras exigiu que os bens de uma família não passassem para outra; disso seguiu-se que houve somente duas ordens de herdeiros instituídos pela lei: os filhos e todos os descendentes que viviam sob a autoridade do pai, que foram chamados herdeiros necessários; e, à sua falta, os parentes mais próximos pela linha masculina, chamados agnatos. Segue-se ainda que os parentes pela linha feminina, chamados cognatos, não deviam suceder; teriam os bens transportados para outra família; e isto assim ficou estabelecido. Segue-se ainda que os filhos não deviam suceder à mãe nem a mãe aos filhos; isto teria levado os bens de uma família para outra. Daí por que são excluídos pela Lei das Doze Tabuas; ela só designava à sucessão os agnatos, e o filho e a mãe não o eram entre si. Mas era indiferente que o herdeiro necessário, ou, na sua falta, o agnato mais próximo, fosse homem ou mulher, porque, não sucedendo os parentes do lado materno, embora uma mulher herdeira se casasse, os bens voltavam sempre à família de que haviam saído. É por isso que não se distinguia, na Lei das Doze Tábuas, se a pessoa que sucedia era homem ou mulher. Isso fez com que, embora os netos pelo filho sucedessem ao avô, os netos pela filha não lhe sucedessem; pois os agnatos lhes eram preteridos, a fim de que os bens não passassem para outra família. Dessa maneira, a filha sucedia ao pai, e seus filhos não. Assim, entre os primeiros romanos, as mulheres sucediam, quando isso se harmonizava com a lei da divisão das terras; e não sucediam quando tal coisa podia ir de encontro a ela. Foram estas as leis das sucessões entre os primeiros romanos; e, como eram uma dependência natural da constituição e procediam da partilha das terras, vê-se muito bem que não tiveram uma origem estrangeira, e não foram incluídas no número das que importavam os deputados enviados às cidades gregas. Dionísío de Halicarnasso diz-nos que Sérvio Túlio, encontrando abolidas as leis de Rômulo e de Numa sobre a partilha das terras, restabeleceu-as e fez outras a fim de dar nova força às antigas. Assim, não se pode duvidar de que as leis de que falamos, feitas em consequência desta partilha, não sejam obra destes três legisladores de Roma. Uma vez que a ordem de sucessão fora estabelecida em consequência de uma lei política, um cidadão não devia alterá-la por uma vontade particular; isto é, nos primeiros tempos de Roma, não devia ser permitido que se fizesse um testamento. Entretanto, foi penoso que se tivesse sido privado em seus últimos momentos da participação dos benefícios. Encontrou-se um meio de conciliar, a este respeito, as leis com a vontade dos particulares. Foi permitido dispor dos bens numa assembleia do povo; e todo testamento, de alguma maneira, foi um ato do poder legislativo. A Lei das Doze Tábuas permitiu àquele que fazia seu testamento que escolhesse para herdeiro o cidadão que quisesse. A razão que fez com que as leis romanas restringissem tão grandemente o número dos que podiam suceder ab intestato foi a lei da partilha das terras; e a razão por que estenderam tão fortemente a faculdade de testar foi que o pai, podendo vender os filhos, podia, com maior razão, priva-los de seus bens. Eram, portanto, efeitos diferentes, pois promanavam de princípios diversos; e é este o espírito das leis romanas a respeito. As antigas leis de Atenas não permitiram ao cidadão fazer seu testamento. Sólon o permitiu, excetuando os que tinham filhos; e os legisladores de Roma, imbuídos da ideia do poder paterno, permitiram testar mesmo em detrimento dos filhos. Cumpre confessar que as antigas leis atenienses foram mais consequentes que as leis romanas. A permissão indefinida de testar, concedida aos romanos, arruinou paulatinamente o dispositivo político sobre a partilha das terras; introduziu, mais do que qualquer outra coisa, a funesta diferença entre as riquezas e a pobreza; vários quinhões foram reunidos numa só mão; certos cidadãos tiveram demasiado, uma infinidade de outros nada teve. Por isso, o povo, continuamente privado de sua parte, pediu sem cessar uma nova distribuição das terras. Solicitou-a no tempo em que a frugalidade, a parcimônia e a pobreza constituíam o caráter distintivo dos romanos, como nos tempos em que seu luxo chegou ao excesso. Sendo os testamentos propriamente uma lei feita na assembleia do povo, os que se achavam no exército viam-se privados da faculdade de testar. O povo deu aos soldados o poder de fazer, diante de alguns de seus companheiros, as disposições que teriam feito diante dele. As grandes assembleias do povo só se realizavam duas vezes por ano; por outro lado, o povo aumentara e os negócios também. Julgou-se que seria conveniente permitir que todos os cidadãos fizessem seu testamento na presença de alguns cidadãos romanos púberes, que representassem o corpo do povo: foram escolhidos cinco cidadãos antes os quais o herdeiro comprava do testador sua família, isto é, sua herança; outro cidadão portava uma balança a fim de pesar o seu preço; pois os romanos ainda não dispunham de moeda. Há indícios de que esses cinco cidadãos representavam as cinco classes do povo, e que a sexta não era contada, composta que era de pessoas que nada possuíam. Não se deve dizer, com Justiniano, que essas vendas eram imaginárias; tornaram-se depois, mas no início não o eram. A maioria das leis que regulamentaram, em seguida, os testamentos têm sua origem na realidade de tais vendas; vê-se muito bem a prova disto nos Fragmentos de Ulpiano. O surdo, o mudo e o pródigo não podiam fazer testamento: o surdo porque não podia ouvir as palavras do comprador da família; o mudo porque não podia pronunciar os termos da nomeação; o pródigo porque, sendo-lhe interditada qualquer gestão de negócios, não podia vender sua família. Omito os outros exemplos. Já que os testamentos eram feitos na assembleia do povo, constituíam atos do direito político mais que do direito civil, do direito público mais do que do direito privado; segue-se disso que o pai não podia consentir em que o filho, que estava sob seu poder, fizesse testamento. Entre a maioria dos povos, os testamentos não estão sujeitos a maiores formalidades do que os contratos ordinários, porque uns e outros não passam de expressões da vontade daquele que contrata, as quais pertencem igualmente ao direito privado. Entre os romanos, porém, onde os testamentos procediam do direito público, cercaram-se de maiores formalidades- do que os outros atos; e isto subsiste ainda hoje nas regiões da França que se regem pelo direito romano. Sendo os testamentos, como disse, uma lei do povo, deviam ser elaborados com a força da ordem, e pelas palavras que se chamaram diretas e imperativas. Disso se formou uma regra: não se podia transmitir a herança senão pelas palavras de ordem; daí se segue que, em certos casos, se podia fazer uma substituição, e ordenar que a herança passasse a outro herdeiro; mas jamais se podiam fazer fideicomissos, isto é, encarregar alguém, em forma de rogo, de entregar a outro a herança, ou uma parte da herança. Quando o pai não instituía o filho como herdeiro, nem o deserdava, o testamento era desfeito; mas era válido, embora não deserdasse a filha, ou a instituísse herdeira. Entendo a razão disso. Quando não instituía o filho seu herdeiro, nem o deserdava, causava prejuízo a seu neto que teria sucedido ab intestato a seu pai; mas, não instituindo herdeira a filha, nem a deserdando, não prejudicava de modo algum os filhos de sua filha, que não teriam sucedido ab intestato à sua mãe, porque não eram herdeiros necessários nem agnatos. Não tendo as leis dos romanos pensado em seguir senão o espírito da partilha das terras, não restringiram bastante as riquezas das mulheres, e deixaram, por isso, uma porta aberta ao luxo, que é sempre inseparável dessas riquezas. Entre a Segunda e a Terceira Guerra púnica, começou-se a sentir o mal; foi elaborada a lei Voconiana. E como grandes considerações levaram a fazê-la, como não nos restam senão poucos monumentos, e até agora só temos falado dela de maneira muito confusa, passo a esclarecê-la. Cícero conservou-nos um fragmento dela, que proíbe instituir herdeira uma mulher, casada ou não. O Epítome de Tito Lívio, onde ele falou desta lei, nada mais acrescenta a isso. Parece, através de Cícero e de Santo Agostinho, que a filha, e mesmo a filha única, estava compreendida na proibição. Catão, o Antigo, contribuiu com todo o seu poder para que esta lei fosse adotada. Aulo Gélio cita um fragmento do discurso que fez nessa ocasião. Impedindo as mulheres de suceder, pretendeu prevenir as causas do luxo, como, ao defender a lei Ópia, pretendeu deter o próprio luxo. Nas Institutas de Justiniano e de Teófilo, fala-se de um capítulo da lei Voconiana, que limitava a faculdade de legar. Lendo esses autores, não há ninguém que não pense que este capítulo foi feito para evitar que a sucessão não fosse de tal forma consumida por legados, que o herdeiro recusasse aceitá-la. Não é este, porém, o espírito da lei Voconiana. Vimos há pouco que seu objetivo era impedir que as mulheres recebessem alguma sucessão. O capítulo desta lei que determinava limites à faculdade de legar participava de tal objetivo: pois, se se pudesse legar tanto quanto se quisesse, as mulheres podiam ter recebido, como legados, o que não podiam obter como herança. A lei Voconiana foi feita para prevenir as riquezas demasiado grandes das mulheres. Foi, portanto, mister privá-las das sucessões consideráveis, e não daquelas que não podiam manter o luxo. A lei fixava uma determinada quantia, que devia ser dada às mulheres que privasse da sucessão. Cícero, que nos informa deste fato, não nos diz qual era a soma; mas Dion afirma que montava a cem mil sestércios. A lei Voconiana era feita para regulamentar as riquezas, e não para regulamentar a pobreza; por isso, Cícero nos diz que ela estatuía tão somente sobre os que estavam inscritos no censo. Isto fornece um pretexto para eludir a lei. Sabe-se que os romanos eram extremamente formalistas; e dissemos acima que o espírito da república era seguir a letra da lei. Houve pais que não se inscreveram no censo, a fim de poder deixar sua sucessão à filha; e os pretores julgaram que, assim, não se violava a lei, pois não se estava violando a letra. Certo Ânio Aselo instituíra herdeira sua filha única. Podia fazê-lo, diz Cícero; a lei Voconiana não o impedia, pois ele não estava no censor; Verres, sendo pretor, privara a filha da sucessão; Cícero afirma que Verres fora corrompido, porque, sem isso, não teria intervertido uma ordem que os outros pretores tinham seguido. Que eram, portanto, estes cidadãos que não estavam no censo que compreendia todos os cidadãos? Mas, segundo a instituição de Sérvio Túlio, relatada por Dionísio de Halicarnasso, todo cidadão que não se inscrevesse no censo era feito escravo; o próprio Cícero diz que tal homem perdia a liberdade. Zonara diz a mesma coisa. Importava, pois, que houvesse diferença entre não estar no censo segundo o espírito da lei Voconiana e não estar no censo segundo o espírito das instituições de Sérvio Túlio. Os que não se tinham inscrito nas cinco primeiras classes, em que eram colocados de acordo com a proporção de seus bens, não estavam no censo segundo o espírito da lei Voconiana; os que não eram inscritos no número das seis classes, ou que não eram colocados pelos censores no número dos chamados aerarii, não estavam no censo segundo as instituições de Sérvio Túlio. Tal era a força da Natureza, que os pais, a fim de eludir a lei Voconiana, consentiam em sofrer a vergonha de ser misturados na sexta classe com os proletários e os que eram taxados por cabeça, ou talvez mesmo ser inscritos nas tábuas dos Ceritas. Dissemos que a jurisprudência dos romanos não admitia os fideicomissos. A esperança de eludir a lei Voconiana introduziu-os. Instituía-se um herdeiro capaz de receber pela lei e rogava-se-lhe que devolvesse a herança a uma pessoa que a lei excluíra dela. Esta nova maneira de dispor teve efeitos bem diferentes. Uns entregaram a herança; e a ação de Sexto Peduceu foi digna de nota. Deu-se-lhe uma grande herança; não havia ninguém no mundo além dele que soubesse que lhe fora rogado que a entregasse; ele procurou a viúva do testador e deu-lhe toda a fortuna do marido. Outros guardaram para si a sucessão; e o exemplo de P. Sextílio Rufo também foi célebre, pois Cícero utiliza-o em suas disputas contra os epicuristas. "Em minha mocidade", diz ele, "pediu-me Sextílio que o acompanhasse à casa de seus amigos, para saber deles se devia entregar a herança de Quinto Fábio Galo a Fádia, a sua filha. Ele reunira vários jovens, com severas personalidades; e nenhum foi de parecer que ele desse a Fádia mais do que o que ela devia ter pela lei Voconiana. Sextílio teve com isso grande herança, da qual não teria ficado com nenhum sestércio, se tivesse preferido o que era justo e honesto ao que era útil." "Acredito", acrescenta Cícero, "que vós teríeis entregue a herança; acredito mesmo que Epicuro a teria entregue; mas nisso não estaríeis seguindo vossos princípios." Farei aqui algumas reflexões. Constitui uma desgraça da condição humana o fato de os legisladores serem obrigados a fazer leis que combatem mesmo os sentimentos naturais: tal foi a lei Voconiana. É que os legisladores preceituam mais sobre a sociedade do que sobre o cidadão, e sobre o cidadão mais do que sobre o homem. A lei sacrificava tanto o cidadão como o homem, e só pensava na república. Um homem rogava a seu amigo que entregasse sua sucessão à sua filha: a lei desprezava no testador os sentimentos da Natureza; desdenhava na filha a piedade filial; não tinha consideração alguma por aquele que era encarregado de entregar a herança, o qual se via em terríveis circunstâncias. Se a entregasse, era um mau cidadão; se a conservasse consigo, era um homem desonesto. Somente as pessoas de uma bondade natural pensariam em eludir a lei; somente as pessoas honestas podiam ser escolhidas para eludi-la; pois sempre constitui um triunfo a obter sobre a avareza e as voluptuosidades; e só as pessoas honestas é que obtêm esses triunfos. Talvez mesmo houvesse rigor em considerá-los, por isso, maus cidadãos. Não é impossível que o legislador tenha conseguido uma grande parte de seu objeto, quando sua lei era de tal sorte, que forçava somente as pessoas honestas a eludi-la. No tempo em que se fez a lei Voconiana, os costumes ainda haviam conservado algo de sua antiga pureza. Interessou-se, às vezes, a consciência pública em favor da lei, e fez-se que jurasse que a seguiria; de sorte que a probidade fazia guerra, por assim dizer, à probidade. Nos últimos tempos, porém, os costumes se corromperam a ponto de os fideicomissos deverem ter menos força para eludir a lei Voconiana, do que esta lei para se fazer obedecida. As guerras civis mataram um número infinito de cidadãos. Roma, no tempo de Augusto, viu-se quase deserta; cumpria repovoá-la. Foram feitas as leis Papianas, em que nada se omitiu do que podia encorajar o cidadão a casar-se e a ter filhos. Um dos principais meios foi aumentar, para os que se prestavam aos desígnios da lei, as esperanças de suceder, e diminuí-las para os que a isso se recusavam; e, como a lei Voconiana tornara as mulheres incapazes de suceder, em certos casos a lei Papiana anulou essa proibição. As mulheres, sobretudo as que tinham filhos, foram capacitadas a receber em virtude do testamento de seus maridos; quando tinham filhos puderam receber em virtude do testamento dos estranhos; tudo isso contra a disposição da lei Voconiana; e é digno de observação que não se abandonou inteiramente o espírito desta lei. Por exemplo, a lei Papiana permitia que um homem que tivesse um filho recebesse toda a herança pelo testamento de um estranho; outorgava a mesma graça à mulher somente quando ela tinha três filhos. É de notar que a lei Papiana não tomou as mulheres que tinham três filhos capazes de suceder, senão em virtude do testamento dos estranhos; e que, em relação à sucessão dos parentes, manteve as antigas leis e a lei Voconiana em toda a sua força. Mas isso não durou. Roma, arruinada pelas riquezas de todas as nações, mudara os costumes; não houve mais a preocupação de deter o luxo das mulheres. Aulo Gélio, que vivia sob o reinado de Adriano, diz-nos que, em seu tempo, a lei Voconiana estava quase aniquilada; foi abafada pela opulência da cidade. Por isso, encontramos nas Sentenças de Paulo, que vivia no tempo de Nigério, e nos Fragmentos de Ulpiano, que era do tempo de Alexandre Severo, que as irmãs do lado paterno podiam suceder, e que somente os parentes de um grau mais afastado é que se incluíam no caso da proibição da lei Voconiana. LIVRO VIGÉSIMO OITAVO DA ORIGEM E DAS REVOLUÇÕES DAS LEIS CIVIS DOS FRANCESES CAPÍTULO I DO CARÁTER DIFERENTE DAS LEIS DOS POVOS GERMÂNICOS DEPOIS QUE OS FRANCOS saíram de seu país, eles mandaram redigir, pelos sábios de sua nação, as leis sálicas. A tribo dos francos ripuários havendo-se reunido, sob o reinado de Clóvis, à tribo dos francos sálios, conservou seus usos; e Teodorico, rei da Austrásia, os mandou redigir. Ele compilou também os usos dos bávaros e dos alemães que estavam sob seu reinado. Porque, estando a Germânia enfraqueci da pela saída de tantos povos, os francos, após haverem avançado na conquista, haviam retrocedido um passo e levado o seu domínio para as florestas de seus antepassados. Parece que o código dos turíngios foi outorgado pelo mesmo Teodorico, pois que os turíngios eram também seus súditos. A lei dos frisões, que tinham sido dominados por Carlos Martelo e por Pepino, não é anterior a estes príncipes. Carlos Magno, que foi o primeiro a subjugar os saxões, outorgou-lhes a lei que ainda possuímos. Basta ler estes dois últimos códigos para ver que eles saem das mãos de vencedores. Os visigodos, os borguinhões e os lombardos, tendo fundado reinos, mandaram redigir suas leis, não para fazer com que seus usos fossem seguidos pelos povos vencidos, mas sim para que eles mesmos os seguissem. Há nas leis sálicas e ripuárias, nas dos alemães, dos bávaros, dos turíngios e dos frisões, uma simplicidade admirável; encontramos nelas uma rudeza original e um espírito que não havia sido ainda enfraquecido por outro espírito. Elas pouco se modificaram, porque estes povos, com exceção dos francos, conservaram-se na Germânia. Os próprios francos fundaram ali uma grande parte de seu império: deste modo, todas as suas leis foram germânicas. O mesmo não aconteceu com as leis dos visigodos, dos lombardos e dos borguinhões; elas perderam muito de seu caráter, porque estes povos, que se fixaram em suas novas moradas, também perderam muito do seu. O reino dos borguinhões não subsistiu o tempo necessário para que as leis do povo vencedor pudessem sofrer grandes modificações. Gondebaldo e Sigismundo, que recolheram seus usos, foram quase os últimos de seus reis. As leis dos lombardos receberam mais aditamentos do que modificações. As de Rotaris foram seguidas pelas de Grimoaldo, de Luitprando, de Rachis, de Aistolfo; mas elas não adquiriram forma nova. O mesmo não se deu com as leis dos visigodos; seus reis as refundiram e as fizeram refundir pelo clero. Os reis da primeira raça eliminaram das leis sálicas e ripuárias o que não podia absolutamente concordar com o cristianismo; conservaram, porém, todo o seu fundamento. Isso não se pode dizer das leis dos visigodos. As leis dos borguinhões, e principalmente as dos visigodos, apreciam as penas corporais. As leis sálicas e ripuárias não as acolheram, elas conservaram melhor o seu caráter. Os borguinhões e os visigodos, cujas províncias estavam muito expostas, procuraram conciliar-se com os antigos habitantes e lhes dar as leis civis mais imparciais, mas os reis francos, seguros de seu poder, não tiveram estes cuidados. Os saxões, que viviam sob o império dos francos, tiveram um gênio indomável e obstinaram-se em revoltar-se. Encontramos em suas leis o rigor do vencedor, que não é encontrado em outros códigos das leis dos bárbaros. Vemos ali o espírito das leis dos germanos nas penas pecuniárias, e o do vencedor nas penas corporais. Os crimes que eles cometem em seu país são punidos corporalmente; e o espírito das leis germânicas só é seguido na punição dos crimes que eles cometem fora de seu território. Declara-se ali que, por causa de seus crimes, eles jamais terão paz, e recusa-se-lhes até o asilo das igrejas. Os bispos exerciam uma autoridade imensa na corte dos reis visigodos; as questões mais importantes eram decididas nos concílios. Devemos ao código dos visigodos todas as máximas, todos os princípios e todos os objetivos da inquisição de hoje; e os monges nada mais fizeram do que copiar contra os judeus essas leis outrora feitas pelos bispos. De resto, as leis de Gondebaldo para os borguinhões parecem bastante judiciosas; as de Rotaris e outros príncipes lombardos o são ainda mais. Mas as leis dos visigodos, as de Recessuindo, de Chaindassuindo e de Egiga, são pueris, canhestras, sem sentido; elas não atingem a sua finalidade; cheias de retórica e vazias de sentido, frívolas quanto ao fundo e gigantescas quanto ao estilo. CAPÍTULO II DE COMO TODAS AS LEIS DOS BÁRBAROS FORAM PESSOAIS É uma característica particular dessas leis dos bárbaros não haverem sido vinculadas a um determinado território: o franco era julgado pela lei dos francos, o alemão pela lei dos alemães, o borguinhão pela lei dos borguinhões, o romano pela lei romana; e, bem longe de se cogitar, naqueles tempos, de tomar uniformes as leis dos povos conquistadores, não se pensava nem mesmo em ser legislador do povo vencido. Encontro a origem disto nos costumes dos povos germânicos. Suas nações estavam separadas por pântanos, lagos e florestas; sabemos por César que esse povo gostava de separar-se. O terror que eles tiveram pelos romanos fez com que se reunissem; cada homem, nessas nações mescladas, teve que ser julgado pelos usos e costumes de sua própria nação. Todos esses povos eram, de per si, livres e independentes; e a independência foi conservada mesmo depois que eles se misturaram. A pátria era comum e a república particular; o território era o mesmo e as nações diversas. O espírito das leis pessoais existia então nesses povos antes que eles partissem de suas terras de origem, e eles levaram-no em suas conquistas. Encontra-se este uso estabelecido nas fórmulas de Marculfo, nos códigos das leis dos bárbaros, principalmente na lei dos ripuários, nos decretos dos reis da primeira raça, de onde derivam as capitulares que foram feitas a esse respeito na segunda. As Crianças seguiam a lei do pai, as mulheres a do marido, as viúvas voltavam à própria lei, os libertos seguiam a de seu senhor. E não é tudo: cada um podia seguir a lei que quisesse: a constituição de Lotário I exigia que essa escolha fosse tomada pública. CAPÍTULO III DIFERENÇA CAPITAL ENTRE AS LEIS SÁLICAS E AS LEIS DOS VISIGODOS E DOS BORGUINHÕES Disse que a lei dos borguinhões e a dos visigodos eram imparciais; mas a lei sálica não o foi: estabeleceu entre os francos e os romanos as mais aflitivas distinções. Quando alguém matava um franco, um bárbaro, ou um homem que vivia sob a lei sálica, devia pagar aos seus parentes uma reparação de duzentos soldos; pagavam-se apenas cem, quando se havia morto um romano proprietário, e somente quarenta e cinco, quando se havia morto um romano tributário: a reparação por homicídio de um franco, vassalo do rei, era de seiscentos soldos; e por homicídios de um romano conviva do rei não era senão de trezentos. Ela estabelecia, então, uma diferença cruel entre o senhor franco e o senhor romano, e entre o franco e o romano que eram de condição medíocre. E não é tudo: se se reunia gente para assaltar um franco em sua casa e se ele era morto, a lei sálica ordenava uma reparação de seiscentos soldos; mas, se se houvesse assaltado um romano ou um liberto, não se pagava senão a metade da reparação. Pela mesma lei se um romano aprisionava um franco, devia trinta soldos de reparação; mas, se um franco aprisionava um romano, ele não devia senão uma de quinze. Um franco espoliado por um romano tinha sessenta e dois soldos e meio de reparação; e um romano espoliado por um franco só recebia uma de trinta. Tudo isto devia ser opressivo para os romanos. Entretanto, um autor célebre forma um sistema do Estabelecimento dos Francos nas Galias, no pressuposto de que eles eram os melhores amigos dos romanos. Eram então os francos os melhores amigos dos romanos, eles que lhes causaram e que deles receberam males horríveis? Eram os francos amigos dos romanos, eles que, após tê-los subjugado pelas armas, oprimiram-nos a sangue frio, com suas leis? Eles eram amigos dos romanos tal como os tártaros que conquistaram a China eram amigos dos chineses. Se alguns bispos católicos quiseram servir-se dos francos para destruir os reis arianos, deduz-se que eles tenham desejado viver sujeitos aos povos bárbaros? Pode-se concluir que os francos tivessem considerações especiais pelos romanos? Eu tiraria disso tudo consequências bem diferentes: quanto mais os francos contaram com os romanos, menos eles os pouparam. Mas o Abade Dubos abeberou-se em más fontes para um historiador: os poetas e os oradores: não é sobre obras de ostentação que se devem fundar os sistemas. CAPÍTULO IV DE COMO O DIREITO ROMANO SE PERDEU NO PAÍS DE DOMÍNIO DOS FRANCOS E SE CONSERVOU NO PAÍS DE DOMÍNIO DOS GODOS E DOS BORGUINHÕES. As coisas que eu disse elucidarão outras que até agora estiveram plenas de obscuridade. O país a que hoje chamam França foi governado, durante a sua primeira raça, pela lei romana ou pelo código Teodosiano, e pelas diversas leis dos bárbaros que ali habitavam. No país de domínio dos francos, a lei sálica era estabelecida para os francos, e o código Teodosiano para os romanos. Naquele de domínio dos visigodos, uma compilação do código Teodosiano, feita por ordem de Alaríco regulou as questões dos romanos; os costumes da nação, que Eurico mandou redigir, decidiram as dos visigodos. Mas por que as leis sálicas adquiram uma autoridade quase geral no país dos francos? E por que o direito romano se perdeu ali, pouco a pouco, enquanto, no domínio dos visigodos, o direito romano estendeu-se e exerceu uma autoridade geral? Digo que o direito romano perdeu o seu uso entre os francos, em virtude das grandes vantagens que havia em ser franco, bárbaro, ou homem vivendo sob a lei sálica; todos foram levados a abandonar o direito romano para viver sob a lei sálica. Ele foi conservado somente pelos eclesiásticos, porquanto esses não tiveram nenhum interesse em mudar. As diferenças das condições e das categorias não consistiam senão na grandeza das reparações, como eu farei ver em outra parte. Ora, leis particulares lhes deram reparações tão favoráveis quanto aquelas que tinham os francos: eles conservaram, então, o direito romano. Dele, eles não recebiam nenhum prejuízo; e ele lhes convinha, além disso, porque era obra dos imperadores cristãos. De outro lado, no patrimônio dos visigodos, como a lei visigoda não conferia nenhuma vantagem civil aos visigodos sobre os romanos, estes não tiveram nenhuma razão para deixar de viver sob a lei deles para viver sob outra: conservaram, portanto, suas leis e não adotaram as dos visigodos. Isso se confirma à medida que se avança. A lei do Gondebaldo foi muito imparcial e não foi mais favorável aos borguinhões do que aos romanos. Parece, pelo prólogo desta lei, que ela foi feita pelos borguinhões e que foi elaborada para regular as questões que poderiam nascer entre os romanos e os borguinhões; e, neste último caso, o tribunal foi bipartido. Isto era necessário por razões particulares, que decorrem do acordo político daqueles tempos. O direito romano subsistiu na Borgonha, para regular as contendas que os romanos poderiam ter entre si. Estes não tiveram razões para abandonar a própria lei, o que não aconteceu no país dos francos; tanto mais que a lei sálica ainda não fora estabelecida na Borgonha, como parece, pela famosa carta que Agobardo escreveu a Luís, o Bonacheirão. Agobardo pedia que este príncipe estabelecesse a lei sálica na Borgonha; portanto ela não fora estabelecida ali. Assim o direito romano subsistiu e subsiste ainda em todas as províncias que dependiam outrora deste reino. O direito romano e a lei dos godos mantiveram-se, do mesmo modo, no país de colonização dos gados: a lei sálica aí nunca foi recebida. Quando Pepino e Carlos Martelo expulsaram os sarracenos de lá, as cidades e as províncias que se submeteram a estes príncipes pediram que as suas leis fossem conservadas, e o obtiveram: o que, apesar do uso daqueles tempos, em que todas as leis eram pessoais, fez com que cedo o direito romano fosse olhado como uma lei real e territorial nesses países. Isto se prova pelo edito de Carlos, o Calvo, publicado em Pistes, no ano 864, o qual distingue entre os países em que se julgava pelo direito romano e aqueles em que isso não se dava. O edito de Pistes prova duas coisas: uma, que havia países em que se julgava segundo a lei romana e países em que não se julgava segundo essa lei; outra, que esses países em que se julgava pela lei romanas eram precisamente aqueles em que ela é seguida ainda hoje, como se vê nesse mesmo edito. Assim a distinção entre países da França consuetudinária e da França regida pelo direito escrito estava já estabelecida no tempo do edito de Pistes. Disse que, no início da monarquia, todas as leis eram pessoais; assim, quando o edito de Pistes distingue entre os países de direito romano e os que não o eram, isto significa que, nos países que não eram de direito romano, tantas pessoas escolheram viver sob alguma das leis dos povos bárbaros que não havia quase ninguém, nessas regiões, que escolhesse viver sob a lei romana; e que, nos países de lei romana, havia poucas pessoas que tivessem escolhido viver sob as leis dos povos bárbaros. Bem sei que digo aqui coisas novas; mas, se elas são verdadeiras, são muito antigas. Que importa, enfim, que seja eu, os Valois ou os Bígnons que as tenham dito? CAPÍTULO V CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO A lei de gondebaldo subsistiu durante muito tempo entre os borguinhões, concomitantemente com a lei romana; ela estava ainda em uso aí no tempo de Luís, o Bonacheirão; a carta de Agobardo não deixa nenhuma dúvida a esse respeito. Do mesmo modo, embora o edito de Pistes chame o país que havia sido ocupado pelos visigodos de o país de lei romana, a lei dos visigodos subsistia sempre ali; o que se prova pelo sínodo de Troyes, reunido sob Luís, o Gago, no ano de 878, isto é, catorze anos depois de edito de Pistes. Depois, as leis góticas e borguinhãs pereceram até em seus países, em consequência das causas gerais que fizeram desaparecer, em toda parte, as leis pessoais dos povos bárbaros. CAPÍTULO VI COMO O DIREITO ROMANO SE CONSERVOU NO DOMÍNIO DOS LOMBARDOS Tudo se curva aos meus princípios. A lei dos lombardos era imparcial, e os romanos não tiveram nenhum interesse em deixar a própria lei para adotar essa. O motivo que levou os romanos sob os francos escolherem a lei sálica não se apresentou na Itália; o direito romano ali se manteve ao lado das leis dos lombardos. E aconteceu até que esta cedeu ao direito romano; ela deixou de ser a lei da nação dominante; e, embora continuasse a ser a da nobreza principal, a maioria das cidades se erigiu em repúblicas, e esta nobreza caiu ou foi exterminada. Os cidadãos das novas repúblicas não foram levados a adotar uma lei que estabelecia o uso da lide judiciária, e cujas instituições se prendiam muito aos costumes e aos usos da cavalaria. Vivendo quase todo o clero, desde esse tempo tão poderoso na Itália, sob a lei romana, o número dos que seguiam a lei dos lombardos teve que ir diminuindo sempre. Não tinha, aliás, a lei dos lombardos essa majestade do direito romano, que lembrava à Itália a ideia de seu domínio sobre toda a terra; ela não possuía essa extensão. A lei dos lombardos e a lei romana não podiam mais servir senão para suprir os estatutos das cidades que se haviam erigido em repúblicas; ora, quem podia melhor supri-los, a lei dos lombardos, que só estatuía sobre alguns casos, ou a lei romana, que os abrangia a todos? CAPÍTULO VII COMO O DIREITO ROMANO SE PERDEU NA ESPANHA As coisas passaram-se de outro modo na Espanha. A lei dos visigodos triunfou e o direito romano se perdeu. Chaindassuindo e Recessuindo proscreveram as leis romanas, e não permitiriam nem sequer citá-las nos tribunais. Recessuindo foi ainda o autor da lei que revogava a proibição dos casamentos entre os godos e os romanos. É claro que essas duas leis tinham o mesmo espírito: este rei queria suprimir as principais causas de separação que havia entre os godos e os romanos. Ora, pensava-se que nada os separava mais do que a proibição de contratar casamento entre si, e a permissão de viverem sob leis diversas. Mas embora os reis dos visigodos tivessem proscrito o direito romano, ele sempre subsistiu nos domínios que possuíam na Gália Meridional. Essas regiões, afastadas do centro da monarquia, viviam em uma grande independência. Vê-se pela história de Vamba, o qual ascendeu ao trono em 672, que os naturais do país tinham levado vantagem: assim, a lei romana tinha ali mais autoridade e a lei gótica menos. As leis espanholas não convinham nem aos seus hábitos nem à sua situação atual: e o povo obstinou-se na lei romana talvez porque a ela ligou a ideia de sua liberdade. Há ainda mais: as leis de Chaindassuindo e de Recessuindo continham disposições apavorantes contra os judeus; mas estes eram poderosos na Gália Meridional. O autor da história do Rei Vamba denomina essas províncias de prostíbulo dos judeus. Quando os sarracenos vieram para essas províncias, tinham sido chamados para ali: ora, quem os podia ter chamado, senão os judeus ou os romanos? Os godos foram os primeiros oprimidos, porque eles eram a nação dominante. Vê-se em Procópio? que, em seus infortúnios, eles se retiraram da Gália Narbonense para a Espanha. Não há dúvida de que, no caso desse infortúnio, eles se refugiaram nas regiões da Espanha, que ainda se defendiam; e o número daqueles que, na Gália Meridional, viviam sob a lei dos visigodos tornou-se muito diminuto. CAPÍTULO VIII FALSA CAPITULAR Este infeliz compilador, Benedito Levita, não chegou a transformar esta lei visigoda, que proibia o uso do direito romano, em uma capitular, que foi atribuída mais tarde a Carlos Magno? Ele fez desta lei particular uma lei geral, como se tivesse querido exterminar o direito romano em todo o universo. CAPÍTULO IX DE COMO OS CÓDIGOS DAS LEIS DOS BÁRBAROS E AS CAPITULARES DECAÍRAM As leis sálicas, ripuárias, borguinhãs e visigodas deixaram, pouco a pouco, de ser usadas entre os franceses: e eis como. Tendo-se os feudos tornado hereditários e tendo-se os subfeudos estendido, muitos usos foram introduzidos, aos quais estas leis não eram mais aplicáveis. Conservaram efetivamente o seu espírito, que era o de regular a maioria das causas pela aplicação de multas. Mas tendo os valores, sem dúvida, mudado, as multas mudaram também; e veem-se muitas cartas em que os senhores fixavam multas, as quais deviam ser pagas em seus pequenos tribunais. Assim, seguia-se o espírito da lei, sem se seguir a própria lei. Além do mais, achando-se a França dividida numa infinidade de pequenos senhorios, que mais reconheciam uma dependência feudal do que uma dependência política, tornava-se bem difícil que uma só lei pudesse ser autorizada. Com efeito, não seria possível fazer com que ela fosse observada. Quase não havia mais o uso de enviar oficiais extraordinários às províncias, para que fiscalizassem a administração da justiça e as disputas políticas. Por essas cartas, parece mesmo que, quando os novos feudos se estabeleciam, os reis privavam-se do direito de para aí envia-los. Assim, quando, pouco a pouco, tudo foi transformado em feudo, estes oficiais não puderam mais ser empregados; não houve mais lei comum porque não havia ninguém que pudesse fazer com que ela fosse observada. As leis sálicas, borguinhãs e visigodas foram então extremamente negligenciadas no fim da segunda raça; e, no começo da terceira, quase não se ouvia mais falar delas. Sob as duas primeiras raças frequentem ente foi reunida a nação, isto é, os senhores e os bispos: não se tratava ainda das com unas. Procurou-se nestas assembleias regulamentar o clero, o qual constituía um corpo que se formava, por assim dizer, sob os conquistadores, e que estabelecia as suas prerrogativas. As leis feitas nestas assembleias são o que nós chamamos as capitulares. Aconteceram quatro coisas: as leis dos feudos estabeleceram-se, e grande parte dos bens da Igreja foi governada pelas leis dos feudos; os eclesiásticos mais se separaram e negligenciaram as leis de reforma, nas quais não tinham sido eles os únicos reformadores: recolheram-sé os cânones dos concílios e as decretais dos papas; e o clero recebeu estas leis como provenientes de uma fonte mais pura. Desde a instituição dos grandes feudos, os reis não tiveram mais, como já disse, emissários nas províncias para fazer com que as leis deles emanadas fossem observadas: assim, sob a terceira raça, não se ouviu mais falar de capitulares. CAPÍTULO X CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Acrescentaram-se diversas capitulares à lei dos lombardos, às leis sálicas, à lei dos bávaros. Procurou-se a razão disso: é preciso buscá-la na própria coisa. As capitulares eram de diversas espécies. Umas relacionavam-se com o governo político, outras com o governo econômico, a maioria com o governo eclesiástico, algumas com o governo civil. As da última espécie foram acrescentadas à lei civil, isto é, às leis particulares de cada nação: é por isso que é dito nas capitulares que nada foi aí estipulado contra a lei romana. Com efeito, as que diziam respeito ao governo econômico, eclesiástico ou político não tinham relação com esta lei; e as que diziam respeito ao governo civil não se relacionavam senão com as leis dos povos bárbaros, as quais eram por elas explicadas, corrigidas, aumentadas e diminuídas. Mas estas capitulares, acrescentadas às leis pessoais, fizeram, creio, com que fosse negligenciado o próprio corpo das capitulares. Em tempos de ignorância, o resumo de uma obra faz, muitas vezes, a própria obra decair. CAPÍTULO XI DAS OUTRAS CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS CÓDIGOS DAS LEIS DOS BÁRBAROS, DO DIREITO ROMANO E DAS CAPITULARES. Quando as nações germânicas conquistaram o império romano, elas ali encontraram o uso da escrita; e, imitando os romanos, elas redigiram seus usos e deles fizeram códigos. Os infelizes reinados que seguiram o de Carlos Magno, as invasões dos normandos, as guerras intestinas, novamente mergulharam as nações vitoriosas nas trevas de que tinham saído; não se soube mais ler nem escrever. Isto fez com que, na França e na Alemanha, fossem esquecidas as leis bárbaras escritas, o direito romano e as capitulares. O uso da escrita conservou-se melhor na Itália, em que reinavam os papas e os imperadores gregos e onde havia cidades florescentes e quase que o único comércio que se fazia então. A proximidade da Itália fez com que o direito romano se conservasse melhor nas regiões da Gália outrora submetidas aos godos e aos borguinhões, tanto mais que este direito era ali uma lei territorial e uma espécie de privilégio. Parece que foi o desconhecimento da escrita que fez, na Espanha, as leis visigodas decaírem. E, devido à decadência de tantas leis, formaram-se, em toda parte, os costumes. As leis pessoais caíram. As reparações e o que se denominava freda foram regulamentados mais pelos costumes do que pelo texto dessas leis. Assim, como no estabelecimento da monarquia se havia passado dos usos dos germânicos às leis escritas, voltou-se, alguns séculos depois, das leis escritas aos usos não escritos. CAPÍTULO XII DOS COSTUMES LOCAIS; REVOLUÇÃO DAS LEIS DOS POVOS BÁRBAROS E DO DIREITO ROMANO. Vê-se, através de diversos documentos, que já havia costumes locais na época da primeira e da segunda raça. Nesses documentos, fala-se do costume do lugar, do uso antigo, do costume, das leis e dos costumes. Alguns autores acreditaram que o que se denominava costumes eram as leis dos povos bárbaros, e que o que se denominava a lei era o direito romano. Provarei que isso não é possível. O Rei Pepino ordenou que, em todo lugar em que não houvesse nenhuma lei, o costume seria seguido; mas que o costume não seria preferido à lei. Ora, dizer que o direito romano teve preferência sobre os códigos das leis dos bárbaros é inverter o que diziam os documentos antigos e sobretudo estes códigos das leis dos bárbaros, que dizem perpetuamente o contrário. Longe de as leis dos povos bárbaros serem estes costumes, foram essas mesmas leis que, como leis pessoais, os introduziram. A lei sálica, por exemplo, era uma lei pessoal; mas nos lugares geralmente ou quase geralmente habitados pelos francos sálios a lei sálica, embora inteiramente pessoal, tornava-se, em relação a estes francos sálios, uma lei territorial; e ela só era pessoal para os francos que habitavam alhures. Ora, se em um lugar em que a lei sálica era territorial acontecia que vários borguinhões, alemães, ou mesmos romanos, tivessem tido questões com frequência, essas questões teriam sido decididas pelas leis destes povos; e um grande número de julgamentos ajustados segundo algumas dessas leis deveria ter introduzido no país novos usos. E isso explica muito bem a constituição de Pepino. Era natural que esses usos pudessem afetar os próprios francos do lugar, nos casos que não eram de modo algum decididos pela lei sálica; mas não era natural que eles pudessem prevalecer sobre a lei sálica. Assim, havia em cada lugar uma lei dominante e usos acolhidos que serviam como suplemento à lei dominante, desde que eles não se chocassem com ela. Podia acontecer mesmo que eles servissem de suplemento para uma lei que nem era territorial; e, para seguir o mesmo exemplo, se um lugar em que a lei sálica era territorial, um borguinhão era julgado pela lei dos borguinhões e seu caso não se encontrasse no texto dessa lei, não é preciso duvidar que ele seria julgado segundo o costume do lugar. No tempo do Rei Pepino, os costumes que se haviam formado tinham menos força que as leis; mas em pouco tempo os costumes destruíram as leis e, como os novos regulamentos sempre são remédios que indicam um mal presente, pode-se crer que, no tempo de Pepino, já se começavam a preferir os costumes às leis. O que disse explica como o direito romano começou desde os primeiros tempos a tornar-se uma lei territorial, como se vê no edito de Pistes; e como a lei goda não deixou de estar em uso ainda aí, como parece pelo sínodo de Troyes do qual falei. A lei romana se havia tornado a lei pessoal geral, e a lei goda a lei pessoal particular; e, consequentemente, a lei romana era a lei territorial. Mas de que forma a ignorância fez decair em toda parte as leis pessoais dos povos bárbaros, enquanto o direito romano subsistiu como lei territorial nas províncias visigodas e borguinhãs? Respondo que a lei romana também teve mais ou menos a sorte das outras leis pessoais; sem isso teríamos ainda o código Teodosiano nas províncias em que a lei romana era lei territorial, em lugar de aí termos as leis de Justiniano. Quase que só restou a essas províncias o nome de país de direito romano ou de direito escrito, e esse amor que os povos têm por sua lei, principalmente quando a olham como um privilégio, e algumas disposições do direito romano retidas pela memória dos homens. Mas isso foi o bastante para produzir o efeito de, quando apareceu a compilação de Justiniano, ter sido recebida nas províncias do domínio dos godos e dos borguinhões como lei escrita; enquanto, no antigo domínio dos francos, ela só o foi como razão escrita. CAPÍTULO XIII DIFERENÇA ENTRE A LEI SÁLICA OU DOS FRANCOS SÁLIOS E AS DOS FRANCOS RIPUÁRIOS E DOS OUTROS POVOS BÁRBAROS A lei sálica nunca admitia o uso de provas negativas, o que quer dizer que, pela lei sálica, quem fazia uma petição ou uma acusação devia prová-la, e que não bastava ao acusado negá-la: o que está de acordo com as leis de quase todas as nações do mundo. A lei dos francos ripuários tinha um espírito completamente diferente; ela se contentava com as provas negativas; e aquele contra quem se formulava um pedido ou uma acusação podia, na maioria dos casos, justificar-se jurando perante certo número de testemunhas que ele não tinha feito nada daquilo que lhe imputavam. O número de testemunhas que deviam jurar aumentava segundo a importância da coisa; ele chegava algumas vezes a setenta e dois. As leis dos alemães, dos bávaros, dos turíngios, dos frisões, dos lombardos e dos borguinhões foram feitas sobre o mesmo plano das dos ripuários. Acabei de dizer que a lei sálica nunca admitia as provas negativas. No entanto, havia um caso em que ela o fazia; mas, ainda nesse caso, não as admitia isoladas e sem o concurso de provas positivas. O suplicante fazia? ouvir suas testemunhas para estabelecer o seu pedido; O defensor fazia ouvir as suas para justificar-se e o juiz procurava a verdade nuns e noutros testemunhos. Essa prática era bem diferente da das leis ripuárias e das outras leis bárbaras, em que o acusado justificava-se jurando que não era culpado e fazendo com que seus parentes jurassem que ele tinha dito a verdade. Essas leis só podiam convir a um povo que possuía simplicidade e certa candura natural. Ainda assim, foi necessário que os legisladores previssem os abusos, conforme veremos logo a seguir. CAPÍTULO XIV OUTRA DIFERENÇA A lei sálica nunca permitia a prova pelo duelo; a lei dos ripuários e quase todas as dos povos bárbaros aceitavam-na. Acho que a lei do duelo era uma consequência natural, e o remédio da lei que estabelecia as provas negativas. Quando se fazia um pedido e via-se que ele ia ser falseado por um juramento, que restava a um guerreiro, que se via na contingência de ser confundido, senão exigir justificação do dano que lhe faziam, e até mesmo denunciar o perjúrio? A lei sálica, que não admitia o uso das provas negativas, não precisava da prova do duelo e não a aceitava; mas a lei dos ripuários e a dos outros povos bárbaros que admitiam esse uso foram forçadas a estabelecer a prova do duelo. Solicito que leiam as duas famosas disposições de Gondebaldo, rei da Borgonha, sobre esse assunto; verão que elas são extraídas da natureza da coisa. Era preciso, pela linguagem das leis dos bárbaros, retirar o juramento das mãos de um homem que dele queria abusar. Entre os lombardos, a lei de Rotaris admite casos em que ela determinava que aquele que se houvesse defendido por um juramento não podia mais ser fatigado por um duelo. Esse uso estendeu-se: veremos a seguir que males disso resultaram, e como foi preciso voltar à antiga prática. CAPÍTULO XV REFLEXÃO Não digo que, nas modificações que foram feitas no código das leis dos bárbaros, nas disposições que a ele foram acrescentadas, e no corpo das capitulares, não se possa encontrar algum texto em que, de fato, a prova do duelo não seja uma consequência da prova negativa. Circunstâncias particulares puderam, no curso de vários séculos, levar a estabelecer certas leis particulares. Falo do espírito geral das leis dos germânicos, de sua natureza e de sua origem; falo dos antigos usos desses povos, indicados ou estabelecidos por essas leis: e aqui não se trata senão disso. CAPÍTULO XVI DA PROVA PELA ÁGUA FERVENTE ESTABELECIDA PELA LEI SÁLICA A lei sálica admitia o uso da prova pela água fervente; e, como essa prova era muito cruel, a lei assumia novo caráter para suavizar seu rigor. Ela permitia àquele que tinha sido citado para vir fazer a prova pela água fervente que resgatasse sua mão, com consentimento da outra parte. O acusador, mediante certa soma que a lei fixava, podia contentar-se com o juramento de algumas testemunhas, as quais declaravam que o acusado não havia cometido o crime: este era um caso particular da lei sálica, no qual ela admitia a prova negativa. Essa prova era uma coisa convencional, que a lei tolerava mas não ordenava. A lei dava certa compensação ao acusador que queria permitir ao acusado a defesa pela prova negativa: era franqueado ao acusador ater-se ao juramento do acusado ou restabelecer a falsidade ou a injúria. A lei determinava um critério, para que antes do julgamento as partes, uma no temor de uma prova terrível, outra à vista de uma pequena compensação presente, terminassem suas contendas e pusessem fim aos seus ódios. Percebe-se bem que, uma vez consumada essa prova negativa, não era necessária outra, e que assim a prática do duelo não podia ser uma consequência dessa disposição particular da lei sálica. CAPÍTULO XVII MANEIRA DE PENSAR DE NOSSOS ANTEPASSADOS Surpreende-nos ver que nossos antepassados fizessem assim depender a honra, a fortuna e a vida dos cidadãos de coisas que eram menos da alçada da razão do que da do acaso; que eles empregassem incessantemente provas que nada provavam e que não estavam relacionadas nem com a inocência nem com o crime. Os germanos, que nunca haviam sido subjugados, gozavam de uma independência extrema. As famílias combatiam pelos homicídios, pelos roubos, pelas injurias. Esse costume foi modificado submetendo essas guerras a regras; elas passaram a ser travadas por ordem e sob as vistas do magistrado; o que era preferível a uma licença geral de se guerrearem. Como hoje os turcos, em suas guerras civis,• olham a primeira vitória como um julgamento de Deus que decide, assim os povos germanos, em suas questões, consideravam o acontecimento do combate uma sentença da Providência, sempre atenta para punir o criminoso ou o usurpador. Tácito diz que, entre os romanos, quando uma nação queria entrar em guerra com outra, ela procurava conseguir algum prisioneiro que pudesse combater com um dos seus; e que se julgava pela realização desse combate o êxito da guerra. Povos que acreditavam que o duelo regularia as questões públicas bem podiam pensar que ele poderia também regular as contendas particulares. Gondebaldo, rei da Borgonha, foi de todos os reis o que mais autorizou o uso do duelo. Esse príncipe expressa a razão de sua lei em sua própria lei: "É", diz ele, "para que nossos súditos não prestem mais juramento sobre fatos obscuros e não cometam nunca perjúrio sobre fatos certos". Assim, enquanto os eclesiásticos declaravam ímpia a lei que permitia o duelo, a lei dos borguinhões encarava como sacrílega a que estabelecia o juramento. A prova pelo duelo tinha algum motivo baseado na experiência. Em uma nação unicamente guerreira, a covardia supõe outros vícios; ela prova que se resistiu à educação que se recebeu, e que não se foi sensível à honra, nem dirigido pelos princípios que governaram os outros homens; ela demonstra que não se teme o desprezo deles, e que não se considera a estima deles: por pouco que se seja bem nascido, não se será, ordinariamente, carente da habilidade que deve estar aliada à força, nem da força que deve concorrer com a coragem; porque, se se dá valor à honra, ser-se-á, durante toda a vida, exercitado nas coisas sem as quais não se pode obter a honra. E ainda, em uma nação guerreira em que a força, a coragem e a façanha representam a honra, os crimes verdadeiramente odiosos são os que nascem da trapaça, da malícia e da astúcia, isto é, da covardia. Quanto à prova pelo fogo, depois que o acusado havia colocado a mão sobre um ferro quente, ou na água fervente, envolvia-se a mão em um saco, que era lacrado: se, três dias depois, não aparecesse marca de queimadura, ele era declarado inocente. Quem não vê que, num povo exercitado no manejo de armas, a pele rude e calosa não devia receber a impressão do ferro quente ou da água fervente, a ponto de aparecer três dias depois? E, se ela aparecesse, isso era uma marca de que aquele que fazia a prova era um efeminado. Nossos camponeses, com suas mãos calosas, manejam o ferro quente do modo que querem. E, quanto às mulheres, as mãos daquelas que trabalham podem resistir ao ferro quente. Às damas não faltavam campeões para defendê-las, e, em uma nação em que não havia luxo, quase não havia classe média. Pela lei dos turíngios, uma mulher acusada de adultério não era condenada à prova pela água fervente, senão quando não se apresentava nenhum campeão para tomar seu lugar; e a lei dos ripuários não admitia esta prova senão quando não se encontrava testemunhas para se inocentar. Mas uma mulher a quem nenhum dos parentes quisesse defender e um homem que não pudesse alegar nenhum testemunho de sua probidade eram por isso mesmo já considerados culpados. Digo, então, que, nas circunstâncias dos tempos em que a prova pelo duelo, a prova pelo ferro quente e pela água fervente estiveram em uso, houve tal acordo dessas leis com os costumes, que essas leis produziram menos injustiças do que poderiam por sua natureza; que os efeitos foram mais inocentes do que as causas; que elas feriram mais a equidade do que violaram os direitos; que elas foram mais desarrazoadas do que tirânicas. CAPÍTULO XVIII COMO A PROVA PELO DUELO DIFUNDIU-SE Poder-se-ia concluir, pela carta de Agobardo a Luís, o Bonacheirão, que a prova pelo combate não estava em uso entre os francos, pois que, depois de ter advertido este príncipe dos abusos da lei de Gondebaldo, pede que se julguem, na Borgonha, as questões pela lei dos francos. Mas como se sabe, por outro lado, que, naquele tempo, o duelo judiciário estava em uso na França, fica-se embaraçado. Isto se explica pelo que eu já disse: a lei dos francos sálios não admitia nunca essa prova, e a dos francos ripuários a aceitava. Mas, apesar dos clamores dos eclesiásticos, o uso do duelo judiciário estendeu-se cada dia mais na França; e vou provar imediatamente que foram eles mesmos que, em grande parte, propiciaram isso. É a lei dos lombardos que nos fornece esta prova. Havia-se introduzido, há muito tempo, um detestável costume (isso é dito no preâmbulo da constituição de Oto II); o de que, se a escritura de alguma herança era declarada falsa, aquele que a apresentava jurava sobre os Evangelhos que ela era verdadeira; e, sem nenhum julgamento prévio, ele se tornava proprietário da herança; e assim os perjuros estavam seguros de receber. Quando o Imperador Oto I se fez coroar em Roma, dirigindo o Papa João XII um concílio, todos os senhores da Itália clamaram ao imperador que era preciso que ele fizesse uma lei para corrigir esse abuso indigno. O papa e o imperador julgaram que era preciso reencaminhar a questão para o concílio que devia se realizar pouco depois em Ravena. Uma vez lá, os senhores fizeram as mesmas solicitações, e redobraram seus clamores; mas, sob pretexto de ausência de algumas pessoas, adiaram ainda uma vez essa questão. Quando Oto II e Conrado, rei da Borgonha, chegaram à Itália, tiveram em Verona um colóquio com os senhores da Itália; e, sob suas reiteradas instâncias, o imperador, com o consentimento de todos, fez uma lei que declarava que, quando houvesse alguma disputa sobre heranças em que uma das partes quisesse se servir de uma escritura e a outra sustentasse que ela era falsa, a questão seria decidida pelo duelo; e que a mesma regra seria observada quando se tratasse de matérias de feudos; que as igrejas seriam sujeitas à mesma lei e que elas combateriam na pessoa de seus campeões. Vê-se que a nobreza pediu a prova pelo duelo, por causa do inconveniente da prova introduzida nas igrejas; que, apesar dos brados dessa nobreza, apesar do abuso que por si só bradava, e apesar da autoridade de Oto, que chegou à Itália para falar e agir com toda autoridade, o clero se manteve firme em dois concílios; que o concurso da nobreza e os príncipes, tendo forçado os eclesiásticos a ceder, o uso do duelo judiciário devia ser considerado um privilégio da nobreza, uma defesa contra a injustiça, e uma proteção ao direito de propriedade; e que, desde esse momento, essa prática teve que se estender. E isso se fez num tempo em que os imperadores eram grandes e os papas pequenos, num tempo em que os atos vieram restabelecer na Itália a dignidade do império. Farei uma reflexão que confirmará o que disse acima, que o estabelecimento de provas negativas arrastava atrás de si a jurisprudência do duelo. O abuso de que se queixavam diante dos atos era o de que um homem, ao qual se objetava que sua escritura era falsa, defendia-se por uma prova negativa, declarando sobre os Evangelhos que ela não o era. Que se fez para corrigir o abuso de uma lei que tinha sido truncada? Restabeleceu-se o uso do duelo. Apressei-me em falar da constituição de Oto II, a fim de dar uma ideia clara das disputas daquele tempo entre o clero e os leigos. Havia existido antes uma constituição de Lotário I que, sobre as mesmas queixas e as mesmas disputas, querendo assegurar a propriedade dos bens, havia ordenado que o notário juraria que sua escritura não era falsa; e que, se ele tivesse morrido, far-se-ia jurarem as testemunhas que a tinham assinado: mas a dificuldade permanecia sempre, foi preciso recorrer ao remédio de que acabo de falar. Penso que antes daquele tempo, nas assembleias gerais presididas por Carlos Magno, a nação lhe demonstrou que, na situação real, era muito difícil que o acusador ou o acusado não se contradissessem no juramento, e que era melhor restabelecer o combate judiciário; o que foi feito por ele. O uso do combate judiciário estendeu-se entre os borguinhões, e o do juramento foi aí limitado. Teodorico, rei da Itália, aboliu o combate singular entre os ostrogodos; as leis de Chaindassuindo e de Recessuindo parecem ter querido extinguir até a sua ideia. Mas essas leis foram tão pouco acolhidas no Narbonês, que o duelo era lá considerado uma prerrogativa dos godos. Os lombardos que conquistaram a Itália depois da destruição dos ostrogodos pelos gregos para lá levaram o uso do duelo: mas suas primeiras leis o restringiram. Carlos Magno, Luís o Bonacheirão, os Otos, fizeram diversas constituições gerais, que se encontraram inseridas nas leis dos lombardos, e acrescentadas às leis sálicas, as quais estenderam o duelo de início às questões criminais e depois às civis. Não se sabia como fazer. A prova negativa pelo juramento tinha inconvenientes; a do duelo também os tinha: trocava-se de provas na medida em que se era atingido mais por umas que por outras. De um lado, os eclesiásticos se compraziam em ver que, em todas as questões seculares, recorria-se às igrejas e aos altares; e, de outro, uma nobreza arrogante prezava manter seus direitos pela sua espada. Não afirmo que tenha sido o clero que introduziu o uso de que a nobreza se queixava. Esse costume derivava do espírito das leis dos bárbaros e do estabelecimento das provas negativas. Mas, tendo uma prática que podia acarretar a impunidade para tantos criminosos feito pensar que era preciso se servir da santidade das igrejas para assustar os culpados e fazer empalidecer os perjuros, os eclesiásticos conservaram esse uso e a prática à qual ele estava unido; porque além do mais eles eram contrários às provas negativas. Vemos em Beaumanoir que essas provas nunca foram admitidas nos tribunais eclesiásticos; o que muito contribuiu, sem dúvida, para fazê-las cair, e para enfraquecer a disposição dos códigos das leis dos bárbaros a esse respeito. Isso fará, ainda, sentir bem a ligação entre o uso das provas negativas e o do duelo judiciário de que já falei tanto. Os tribunais leigos admiravam ambas e os tribunais clericais rejeitavam todas as duas. Na escolha da prova pelo duelo, a nação seguia seu gênio guerreiro; porque, enquanto se estabelecia o combate como um julgamento de Deus, aboliam-se as provas pela cruz, pela água fria e pela água fervente, que tinham sido também consideradas julgamentos de Deus. Carlos Magno ordenou que, se sobreviesse alguma desavença entre seus filhos, ela fosse encerrada com o julgamento pela cruz. Luís, o Bonacheirão, limitou esse julgamento às questões eclesiásticas; seu filho Lotário aboliu-o em todos os casos; ele também aboliu a prova pela água fria. Não digo que, num tempo em que havia tão poucos usos universalmente aprovados, essas provas não tenham sido reproduzidas em algumas igrejas, tanto mais que uma carta de Filipe Augusto faz menção a elas; mas digo que elas foram pouco usadas. Beaumanoir, que vivia no tempo de São Luís e um pouco depois, e fazia a enumeração dos diferentes gêneros de provas, fala da do duelo judiciário, mas nunca, de modo algum, das demais. CAPÍTULO XIX NOVA RAZÃO DO ESQUECIMENTO DAS LEIS SÁLICAS, DAS LEIS ROMANAS E DAS CAPITULARES. Já expus as razões que fizeram com que as leis sálicas, as leis romanas e as capitulares perdessem sua autoridade; acrescentarei que a grande difusão da prova pelo duelo foi a principal causa disso. As leis sálicas, que nunca admitiam esse uso, tornaram-se de algum modo inúteis e pereceram; as leis romanas, que também não o admitiam, perderam-se igualmente. Não se pensou mais senão em aperfeiçoar a lei do duelo e em fazer para ela uma boa jurisprudência. As disposições das capitulares não se tornaram menos inúteis. Assim, inúmeras leis perderam sua autoridade sem que se possa citar o momento em que isso ocorreu; foram esquecidas sem que se encontrem outras que tenham tomado seu lugar. Uma nação semelhante não tinha necessidade de leis escritas, e suas leis escritas podiam muito facilmente cair no esquecimento. Se havia alguma discussão entre duas partes, ordenava-se o duelo. Para isso, não era necessário muita suficiência. Todas as ações civis e criminais reduziam-se a fatos. É sobre esses fatos que se combatia; e não é somente o fundo da questão que se julgava pelo combate, mas ainda os incidentes, e os interlocutórios, como o diz Beaumanoir, que dá exemplos deles. Acho que no começo da terceira raça, a jurisprudência reduzia-se inteiramente a formalidades; tudo foi governado pelo ponto de honra. Se não se havia obedecido ao juiz, ele demandava sobre a injúria. Em Burges, se o preboste tinha notificado alguém, e ele não comparecesse. "Eu mandei te procurar", dizia ele, "e tu te negaste a vir; dá-me a razão deste desprezo"; e combatia-se. Luís, o Grande, reformou esse costume. O duelo judiciário estava em uso em Orléans, em todas as demandas por dívidas. Luís, o Jovem, declarou que esse costume só seria aplicado quando a demanda excedesse cinco soldos. Essa ordenança era uma lei local; porque, no tempo de São Luís, bastava que o valor fosse de mais de doze dinheiros. Beaumanoir tinha ouvido dizer por um homem de lei que havia outrora, na França, esse mau costume de se poder alugar durante certo tempo um campeão para combater nas questões. Para tanto, era preciso que o uso do duelo judiciário tivesse, naquele tempo, uma prodigiosa extensão. CAPÍTULO XX ORIGEM DO PONTO DE HONRA Encontram-se enigmas nos códigos das leis dos bárbaros. A lei dos frisões não concede senão meio soldo de reparação para aquele que recebeu golpes de bastão; e não há ferimento, por menor que seja, pelo qual ela não conceda mais. Pela lei sálica, se um ingênuo dava três bastonadas em um ingênuo, pagava três soldos; se fizera correr sangue, era punido como se tivesse ferido com o ferro e pagava quinze soldos: a pena era medida pela importância dos ferimentos. A lei dos lombardos estabeleceu diferentes reparações para uma bastonada, duas, três, quatro. Hoje, um só golpe vale cem mil. A constituição de Carlos Magno, inseri da na lei dos lombardos, manda que aqueles a quem permite o duelo combatam com o bastão. Talvez isso tenha sido uma deferência para com o clero; talvez, visto que se estendia o uso dos duelos, quisesse torná-los menos sanguinários. A capitular de Luís, o Bonacheirão, concede a escolha de combater com o bastão ou com as armas. Daí por diante, apenas os servos é que combatiam com o bastão. Já vejo nascerem e formarem-se os artigos particulares de nosso ponto de honra. O acusador começava por declarar, diante do juiz, que certa pessoa havia cometido uma determinada ação; e esta respondia que estava mentindo baseado nisso, o juiz ordenava o duelo. Estava estabelecida a máxima de que, quando se havia recebido um desmentido, era preciso bater-se. Quando um homem havia declarado que combateria, não podia mais voltar atrás; e se o fazia, era condenado a uma pena. Disso decorre a regra de que, quando um homem estava comprometido pela sua palavra, a honra não lhe permitia mais que se retratasse. Os gentis-homens batiam-se a cavalo e com suas armas; e os vilões batiam-se a pé e com o bastão. Daí decorreu que o bastão era o instrumento dos ultrajes, porque um homem que tivesse sido batido com ele tinha sido tratado como vilão. Só os vilões combatiam com o rosto descoberto, assim, só eles podiam receber golpes na face. Uma bofetada tornou-se uma injúria que devia ser lavada com sangue, porque um homem que a tivesse recebido havia sido tratado como vilão. Os povos germânicos não eram menos sensíveis que nós ao ponto de honra; eles eram até bem mais. Assim, os parentes mais afastados tomavam parte muito importante nas injúrias; e todos os seus códigos estão fundados neste ponto. A lei dos lombardos manda que aquele que, acompanhado de sua família, espanca um homem que não está em guarda, para cobri-lo de vergonha e de ridículo, pague a metade da reparação que ele deveria pagar se o tivesse matado; e que se, pelo mesmo motivo, ele o amarra, pague três quartos da mesma reparação. Podemos então dizer que nossos pais eram extremamente sensíveis às afrontas; mas as afrontas de uma espécie particular, como a de receber golpes com certo instrumento sobre certa parte do corpo, e dados de certa maneira, não lhes eram ainda conhecidas. Tudo isso era compreendido na afronta de ser espancado; e, neste caso, a intensidade dos excessos marcava a importância dos ultrajes. CAPÍTULO XXI NOVA REFLEXÃO SOBRE O PONTO DE HONRA ENTRE OS ROMANOS "Entre os germanos", diz Tácito "era uma grande infâmia o fato de ter abandonado o próprio escudo no combate; e muitos, depois desta desgraça, suicidaram-se." Também a antiga lei sálica concedia quinze soldos de reparação àquele de que se tinha dito, por injúria, que havia abandonado o escudo. Carlos Magno, corrigindo a lei sálica, estabeleceu para esse caso uma reparação de apenas três soldos. Não se poderá suspeitar que esse príncipe tenha querido enfraquecer a disciplina militar: é claro que essa modificação decorreu da mudança das armas: e é a essa modificação das armas que se deve a origem de muitos usos. CAPÍTULO XXII DOS COSTUMES RELATIVOS AOS COMBATES A nossa ligação com as mulheres está fundada na felicidade vinculada ao prazer dos sentidos, no encantamento de amar e ser amado, e ainda no desejo de agradá-las, pois elas são juízes muito esclarecidos a respeito de uma parte das coisas que constituem o mérito pessoal. Este desejo geral de agradar produz a galanteria, que não é o amor, mas a delicada, a volúvel, a perpétua mentira do amor. Segundo as circunstâncias, diferentes em cada nação e em cada século, o amor se inclina mais para uma dessas três coisas do que para as duas outras. Ora, digo que, no tempo dos nossos duelos, foi o espírito de galanteria que precisou adquirir forças. Encontro, na lei dos lombardos, que se um dos campeões tinha consigo ervas próprias para feitiços, o juiz fazia com que lhas tirassem e o obrigava a jurar que não tinha mais nenhuma. Essa lei só podia estar estribada na opinião comum; foi o medo, que se diz ter inventado tantas coisas, que fez imaginar essas espécies de influências. Como nos duelos os campeões estivessem armados de todas as peças, e como, com armas pesadas, ofensivas e defensivas, as de certa têmpera e de certa força representassem vantagens infinitas, a crença em armas encantadas de alguns combatentes deve ter transtornado o juízo de muita gente. Disso nasceu o maravilhoso sistema da cavalaria. Todos os espíritos abriram-se para essas ideias. Viram-se, nos romances, paladinos, necromantes, fadas, cavalos alados ou dotados de inteligência, homens invisíveis ou invulneráveis, mágicos que se interessavam pelo nascimento e pela educação de grandes personagens, e ainda palácios encantados e desencantados; em nosso mundo, um mundo novo; e o curso ordinário da natureza deixado somente para os homens comuns. Paladinos, sempre armados em uma parte do mundo cheia de castelos, de fortalezas e de malfeitores, consideravam uma honra punir a injustiça e defender os fracos. Disso nasceu ainda, nos romances, a galanteria fundada na ideia do amor ligada à de força e de proteção. Assim, nasceu a galanteria, quando se imaginaram homens extraordinários que, vendo a virtude unida à beleza e à fraqueza, foram levados a se expor, por ela, aos perigos e a ser gentis nas ações triviais da vida. Nossos romances de cavalaria enalteceram esse desejo de agradar e deram a uma parte da Europa esse espírito de galanteria, do qual se pode dizer ter sido pouco conhecido pelos antigos. O luxo prodigioso dessa imensa cidade de Roma incentivou a ideia dos prazeres dos sentidos. Certa ideia de tranquilidade nos campos da Grécia fez dar uma noção dos sentimentos do amor. A ideia de paladinos protetores da virtude e da beleza das mulheres levou à noção de galanteria. Esse espírito perpetuou-se pela prática dos torneios, que, unindo ao mesmo tempo os direitos do valor e do amor, deram também à galanteria uma grande importância. CAPÍTULO XXIII DA JURISPRUDÊNCIA DO DUELO JUDICIÁRIO Ter-se-á talvez curiosidade de ver esse uso monstruoso do duelo judiciário reduzido a princípios, e encontrar o corpo de uma jurisprudência tão singular. Os homens, que no fundo são razoáveis, submetem a regras seus próprios preconceitos. Nada era mais contrário ao bom senso do que o duelo judiciário; mas, desde que esse ponto foi assentado, sua execução se fez com certa prudência. Para se pôr bem a par da jurisprudência daqueles tempos, é preciso ler com atenção os regulamentos de São Luís, os quais produziram tão grandes transformações na ordem judiciária. Défontaines era contemporâneo desse príncipe; Beaumanoir escrevia depois dele, os outros viveram depois dele. É preciso então procurar a antiga prática nas correções que a eles se fizeram. CAPÍTULO XXIV REGRAS ESTABELECIDAS NO DUELO JUDICIÁRIO Quando havia muitos acusadores, era preciso que eles concordassem para que a questão fosse demandada por um só; e, se não se punham de acordo, aquele diante do qual se fazia a queixa nomeava um dentre eles, o qual dava prosseguimento à querela. Quando um gentil-homem citava um vilão, ele devia apresentar-se a pé, com o escudo e o bastão; e, se ele vinha a cavalo, com as armas de um gentil-homem, despojavam-no do cavalo e das armas; ele ficava de camisa e era obrigado a combater nesse estado contra o vilão. Antes do combate, a justiça fazia publicar três proclamas. Por um, era ordenado aos parentes das partes que se retirassem; por outro, avisavam o povo para guardar silêncio; pelo terceiro, era proibido dar socorro a uma das partes, o que era castigado com graves penas, e mesmo com a morte, se graças a esse socorro um dos combatentes houvesse sido vencido. Os auxiliares da justiça guardavam a liça; e, no caso em que uma das partes houvesse falado de paz, eles prestavam bastante atenção ao estado em que as duas estavam naquele momento, para que elas fossem repostas na mesma situação, se não fosse completada a paz. Quando eram recebidos penhores por crime ou por falso julgamento, a paz não podia ser concluída sem o consentimento do senhor; e, quando uma das partes havia sido vencida, não podia mais haver paz senão pela aprovação do conde, o que tinha relação com as nossas cartas de perdão. Mas, se o crime era capital e o senhor, corrompido com presentes, consentisse na paz, ele pagava uma multa de sessenta libras, e o direito que ele tinha de mandar punir o malfeitor era devolvido ao conde. Havia muita gente que não estava em condições nem de oferecer o duelo nem de recebê-lo, Permitia-se, com conhecimento de causa, que escolhessem um campeão, e, para que este tivesse o maior interesse em defender a parte que representava, ele tinha o punho cortado se fosse vencido. Quando se fez passar, no século passado, as leis capitais contra os duelos, bastaria talvez despojar um guerreiro dessa sua qualidade pela perda da mão, não havendo comumente nada mais triste para os homens do que sobreviver à perda de seu ofício. Quando, em um crime capital, o combate era feito por campeões, colocavam as partes em um lugar de onde elas não podiam ver a batalha: cada uma delas era cingida com a corda que devia servir para o seu suplício, se seu campeão fosse batido. Quem sucumbia no combate nem sempre perdia a coisa contestada. Se, por exemplo, se combatia sobre uma interlocutória, perdia-se apenas a interlocutória. CAPÍTULO XXV DOS LIMITES QUE SE IMPUNHAM AO USO DO DUELO JUDICIÁRIO Quando os penhores de batalha tinham sido recebidos sobre uma questão civil de pouca importância, o senhor obrigava as partes a retira-los. Se um fato era notório: por exemplo, se um homem tinha sido assassinado em pleno mercado, não era ordenada nem a prova por testemunhas nem a prova pelo combate; o juiz pronunciava-se sobre a publicidade do fato. Quando, na corte do senhor, houvesse frequentemente julgado da mesma maneira e, portanto, o uso estivesse conhecido, o senhor recusava o combate às partes, a fim de que os costumes não fossem modificados pelos diversos resultados dos combates. Não se podia requerer o combate senão paras si mesmo ou para alguém de sua linhagem, ou para seu senhor lígio. Quando um acusado era absolvido, outro parente não podia requerer o combate; pois de outro modo as questões jamais teriam fim. Se aquele de quem os parentes queiram vingar a morte vinha a reaparecer, não havia mais motivo para combate: o mesmo acontecia se, por uma ausência reconhecida por todos, o combate se tornava impossível. Se um homem que tinha sido morto havia, antes de morrer, desculpado aquele que era acusado, e denunciado outro, nunca se procedia ao combate; mas, se não havia acusado ninguém, considerava-se sua declaração apenas um perdão pela própria morte: a demanda tinha prosseguimento; e mesmo, entre gentis-homens, podia-se chegar à guerra. Quando havia uma guerra e um dos parentes dava ou recebia os penhores de batalha, o direito da guerra cessava; pensava-se que as partes queriam seguir as vias normais da justiça; e aquela que continuasse a guerra teria que ser condenada a reparar os prejuízos. Assim, a prática do duelo judiciário tinha a seguinte vantagem: ela podia transformar uma querela geral em uma querela particular, outorgar força aos tribunais e reconduzir ao estado civil aqueles que não eram mais governados senão pelo direito das gentes. Como há uma infinidade de coisas sábias que são dirigi das de maneira muito insensata, há também loucuras que são conduzidas de maneira muito sábia. Quando um homem acusado de um crime mostrava visivelmente que era o próprio acusador que o havia cometido, não havia mais penhores de batalha; porque nunca havia culpado que não tivesse preferido um combate duvidoso a uma punição certa. Nunca havia- combate nas questões que se decidiam por árbitros ou por cortes eclesiásticas; não havia igualmente quando se tratava dos dotes das mulheres. Mulher, diz Beaumanoir, não pode combater. Se uma mulher citava alguém, sem nomear o seu campeão, não eram recebidos os seus penhores de batalha. Era preciso ainda que uma mulher fosse autorizada pelo seu barão, isto é, seu marido, para citar; mas sem essa autoridade ela podia ser citada. Se o apelante ou o apelado tinham menos de quinze anos, não havia combate. Entretanto, ele podia ser ordenado para as questões de pupilos, quando o tutor ou aquele que tinha a jurisdição quisesse correr os riscos desse processo. Parece-me que esses são os casos em que era permitido ao servo combater. Ele combatia contra outro servo; ele combatia contra um liberto, e mesmo contra um gentil-homem, se ele fosse citado; mas, se era ele quem citava, este último podia recusar o combate; e o senhor do servo estava até mesmo no direito de retira-lo da corte. O servo podia, por concessão escrita do senhor, ou pelo uso, combater contra todos os libertos: e a Igreja exigia este mesmo direito para os seus servos, como sinal de respeito a ela. CAPÍTULO XXVI DO DUELO JUDICIÁRIO ENTRE UMA DAS PARTES E UMA DAS TESTEMUNHAS Beaumanoir diz que um homem, ao ver que uma testemunha ia depor contra ele, podia impugnar a segunda, dizendo aos juízes que a sua parte fornecia uma testemunha falsa e caluniadora; e, se a testemunha quisesse sustentar a querela, ele dava os penhores de batalha. Não havia mais questão para inquérito: porque, se a testemunha fosse vencida, ficava decidido que a parte havia fornecido uma falsa testemunha, e ela perdia o seu processo. Não era necessário deixar que a segunda testemunha contradissesse; porque ela teria pronunciado seu testemunho e a questão teria sido encerrada com o depoimento das duas testemunhas. Mas, impedindo a segunda, o depoimento da primeira tornava-se inútil. Tendo sido rejeitada a segunda testemunha, a parte não podia fazer ouvir outras, e ela perdia seu processo; mas, no caso em que não houvesse penhores de batalha, podiam ser apresentadas outras testemunhas. Beaumanoir diz que a testemunha podia dizer à sua parte antes de depor: "Eu não abro a boca para combater por vossa querela, nem para pleitear pela minha; e se vós quiserdes defender-me, direi minha verdade de bom grado". A parte achava-se obrigada a combater pela testemunha e, se ela era vencida, não perdia sua liberdade/ mas a testemunha era rejeitada. Creio que isso era uma modificação do antigo costume; e o que me faz pensar assim é que esse uso de citar testemunhas encontra-se estabelecido na lei dos bávaros e na dos borguinhões, sem nenhuma restrição. Já falei da constituição de Gondebaldo, contra a qual Agobardo e Santo Avito tanto protestaram. "Quando o acusado", diz este príncipe, "apresenta testemunhas para jurar que ele não cometeu o crime, o acusador poderá convocar para combate uma das testemunhas, porque é justo que este que se ofereceu para jurar, e que declarou que sabia a verdade, não ponha dificuldade em combater para sustentá-la." Esse rei não deixava às testemunhas nenhum subterfúgio para evitar o combate. CAPÍTULO XXVII DO DUELO JUDICIÁRIO ENTRE UMA PARTE E UM DOS PARES DO SENHOR. APELAÇÃO CONTRA FALSO JULGAMENTO Sendo da natureza da decisão pelo duelo terminar a questão para sempre, e não sendo compatível com um novo julgamento e novas demandas, a apelação, tal como é estabelecida pelas leis romanas e pelas leis canônicas, isto é, para um tribunal superior, a fim de fazer reformar o julgamento de outra, era desconhecida na França. Uma nação guerreira, governada unicamente pelo ponto de honra, não conhecia essa forma de proceder; e, sempre segundo o mesmo espírito, ela tomava, contra os juízes, as vias que teria podido empregar contra as partes. A apelação, nessa nação, era um desafio para um combate com armas, que devia terminar pelo sangue; e não esse convite para uma querela por escrito, que só foi conhecido mais tarde. Assim, diz São Luís, em seus Estabelecimentos que a apelação contém felonia e iniquidade. Assim Beaumanoir nos diz que, se um homem queria se queixar de algum atentado cometido contra ele por seu senhor, devia declarar a este que abandonava seu feudo; depois do que, ele o citava diante de seu senhor suserano e oferecia os penhores de batalha. Igualmente, o senhor renunciava à homenagem, se ele citava seu vassalo diante do conde. Apelar contra o senhor, por falso julgamento, era o mesmo que dizer que seu julgamento tinha sido falsa e maldosamente conduzido; ora, enunciar tais palavras contra seu senhor era cometer uma espécie de crime de felonia. Assim, em vez de citar por falso julgamento o senhor que estabelecia e regulava o tribunal, citavam-se os pares que formavam o tribunal; evitava-se desse modo o crime de felonia; não se insultavam senão os pares, aos quais sempre se podia dar reparação do insulto. Expunha-se muito quem falseava o julgamento dos pares. Se se esperava que o julgamento fosse feito e pronunciado, ficava-se obrigado a combater- com todos, quando eles se ofereciam para tornar válido o julgamento. Se se apelava antes que todos os juízes tivessem dado a sua opinião, era necessário combater contra todos os que tinham chegado ao mesmo parecer. Para evitar esse perigo, suplicava-se ao senhor que ordenasse que cada par proclamasse bem alto seu parecer; e, quando o primeiro já se tinha pronunciado e o segundo ia fazer o mesmo, dizia-se-lhe que ele era falso, mau e caluniador; e então não era mais senão contra este que se deveria combater. Défontaines queria que, antes de declarar a falsidade, se deixasse que três juízes se pronunciassem; e ele não diz que era necessário combater contra os três, e ainda menos que havia casos em que era preciso combater contra todos os que se tinham declarado de mesma opinião. Essas divergências decorrem de que, naqueles tempos, não havia muitos usos que fossem precisamente os mesmos. Beaumanoir prestava conta do que se passava no condado de Clermont; Défontaines, do que se usava em Vermandois. Quando um dos pares ou homem de feudo houvesse declarado que sustentaria o julgamento, o juiz mandava dar os penhores de batalha, e além do mais tomava garantias para que o apelante sustentasse seu apelo. Mas o par que era apelado não dava nenhuma garantia, porque ele era súdito do suserano, e devia defender o apelo ou pagar ao senhor uma multa de sessenta libras. Se aquele que apelava não provava que o julgamento tinha sido mau, pagava ao senhor uma multa de sessenta libras, a mesma multa ao par contra quem apelara, e outro tanto a cada um dos que tinham abertamente concordado com o julgamento. Quando um homem, violentamente suspeito de um crime que merecia a morte, havia sido preso e condenado, não podia apelar contra um falso julgamento; pois teria sempre apelado ou para prolongar sua vida ou para obter a absolvição. Se alguém dizia que o julgamento era falso e mau, e não se oferecia para prova-lo, isto é, para combater, era condenado a dez soldos de multa se fosse gentil-homem e a cinco soldos se fosse servo, pelas palavras torpes que havia dito. Os juízes ou pares que tinham sido vencidos não deviam perder nem a vida nem os membros; mas quem os citava era punido com a morte, quando a questão era capital. Essa maneira de citar os homens de feudo por falso julgamento visava evitar que fosse citado o próprio senhor. Mas, se o senhor não tinha nenhum par ou não tinha o bastante, ele podia, às próprias custas, tomar emprestados pares de seu senhor suserano; mas esses pares não eram obrigados a julgar, se não o quisessem; podiam declarar que só tinham vindo para dar o seu conselho; e, nesse caso particular, era ao senhor que, julgando e pronunciando, ele próprio, o julgamento, cabia sustentar a apelação, se se apelava contra falso julgamento. Se o senhor fosse tão pobre que não estivesse em situação de tomar emprestados pares de seu senhor suserano, ou negligenciasse em fazer tal pedido, ou o suserano se recusasse a concedê-los, o senhor não podia então julgar só e ninguém era obrigado a litigar diante de um tribunal no qual o julgamento não podia ser feito, e a questão era levada à corte do senhor suserano. Creio que essa foi uma das grandes causas da separação entre a justiça e o feudo, donde se formou a regra dos jurisconsultos franceses: Uma coisa é o feudo, outra é a justiça. Porque, havendo aí uma infinidade de homens de feudo que não tinham pessoas sujeitas a eles, nunca se achavam em estado de manter o seu tribunal; todas as questões eram levadas ao tribunal de seu senhor suserano; perdiam o direito à justiça, porque não tinham nem o poder nem a vontade de reclama-lo. Todos os juízes que haviam participado do julgamento deviam estar presentes quando este era realizado, a fim de que pudessem acompanha-lo e dizer sim àquele que, querendo acusar de falsidade, lhes perguntava se prosseguiriam; porque, diz Défontaines, "é uma questão de cortesia e de lealdade, e não há aí possibilidade de fuga ou de dilação". Creio que é dessa maneira de pensar que adveio o uso, seguido ainda hoje na Inglaterra, pelo qual todos os jurados devem estar de acordo para condenar à morte. Cumpria então declarar-se de acordo com a maioria; e, se havia empate, pronunciava-se, em caso de crime, pelo acusado; em caso de dívidas, pelo devedor; em caso de herança, pelo demandado. Um dos pares, diz Défontaines, não podia dizer que não julgaria se eles não fossem senão quatro, ou se eles não estivessem todos presentes, ou se os mais sábios não comparecessem; é como se ele tivesse dito, no meio da confusão, que não socorreria seu senhor porque ele não tinha perto de si senão uma parte de seus homens. Mas era ao senhor que cabia fazer honra à sua corte e escolher os seus homens mais valentes e mais sábios. Cito isto para fazer sentir o dever dos vassalos, que era o de combater e julgar; e esse dever era tal, que julgar era o mesmo que combater. Um senhor que litigava em seu tribunal contra seu vassalo, e fosse condenado, podia citar um de seus homens, por falso julgamento. Mas, por força do respeito que este devia a seu senhor pela fé dada, e pela benevolência que o senhor devia a seu vassalo, pela fé recebida, fazia-se uma distinção: ou o senhor dizia, em geral, que o julgamentos era falso e mau; ou ele imputava a seu vassalo prevaricações pessoais. No primeiro caso, ele ofendia seu próprio tribunal, e, de algum modo, a si mesmo, e nesse caso não podia ter penhores de batalha; mas, no segundo caso, os possuía, porque atacava a honra de seu vassalo; e aquele dos dois que fosse vencido perdia a vida e os bens, para manter a paz pública. Esta distinção, necessária neste caso particular, foi estendida. Beaumanoir diz que, quando aquele que apelava contra falso julgamento atacava um dos súditos com imputações pessoais, havia batalha; mas que, se só atacasse o julgamento, aquele dentre os pares que era citado era livre de fazer julgar a questão por batalha ou por direito. Mas, como o espírito que reinava no tempo de Beaumanoir era o de restringir o uso do duelo judiciário, e como essa liberdade concedida ao par citado, de defender o julgamento, por combate ou não, era igualmente contrária às ideias da honra estabelecidas naqueles tempos, e ao compromisso que se tinha para com o senhor, de defender seu tribunal, creio que essa distinção de Beaumanoir era uma jurisprudência nova entre os franceses. Não digo que todas as apelações contra falso julgamento fossem decididas por batalha; isto vale tanto para esta apelação como para todas as outras. Lembremo-nos das exceções de que já falei no capítulo XXV. Aqui, era ao tribunal suserano que competia ver se era preciso tirar, ou não, os penhores de batalha. Não se podia imputar falsidade aos julgamentos efetuados no tribunal do rei; porque, não tendo o rei quem lhe fosse igual, não havia ninguém que pudesse citá-lo; e, não tendo superior, não havia quem pudesse apelar contra o seu tribunal. Esta lei fundamental, necessária como lei política, diminuía ainda, como lei civil, os abusos da prática judiciária daqueles tempos. Quando um senhor temia que fosse atribuída falsidade ao seu tribunal, ou via que se apresentavam para atribuir falsidade a ele, se era para o bem da justiça que isso não acontecesse, ele podia requerer homens da corte do rei, cujo julgamento não se podia considerar falso; e o Rei Filipe, diz Défontaines, enviou todo o seu conselho para julgar uma questão no tribunal do Abade de Corbie. Mas, se o senhor não pudesse ter juízes do rei, ele podia incorporar seu tribunal ao do rei, se dependesse somente dele; e, se houvesse senhores intermediários, ele se dirigia a seu senhor suserano, indo de senhor em senhor até o rei. Assim, embora não se tivesse naqueles tempos nem a prática nem a ideia das apelações de hoje, havia meios de recorrer ao rei, o qual era sempre a fonte de onde partiam todos os rios, e o mar a que eles voltavam. CAPÍTULO XXVIII DA APELAÇÃO DE FALTA DE DIREITO Chamava-se falta de direito ao fato de, no tribunal de um senhor, diferir-se, evitar-se ou recusar-se a fazer justiça às partes. Na segunda raça, embora o conde tivesse muitos oficiais subordinados a ele, a pessoa desses estava subordinada, mas a jurisdição não o estava. Esses oficiais, em seus pleitos, sessões ou audiências, julgavam, em última instância, como se fossem o próprio conde. Toda a diferença consistia na partilha da jurisdição; por exemplo, o conde podia condenar à morte, julgar sobre a liberdade e a restituição dos bens, e o centurião não o podia. Pela mesma razão havia causas maiores- que estavam reservadas ao rei; eram aquelas que interessavam diretamente à ordem política. Tais eram as discussões que existiam entre os bispos, os abades, os condes e outros poderosos, que os reis julgavam junto com os grandes vassalos. O que disseram alguns autores, que se apelava do conde ao enviado do rei, ou missus dominicus, não tem fundamento. O conde e o missus tinham uma jurisdição igual e independente uma da outra; toda a diferenças consistia em que o missus dava suas audiências em quatro meses do ano, e o conde nos outros oito. Se alguém, condenado em um julgamento, solicitasse que o julgassem de novo, e fosse ainda condenado, pagava uma multa de quinze soldos, ou recebia quinze bofetadas dos juízes que haviam decidido a questão. Quando os condes ou os enviados do rei não se sentiam com bastante força para levar os poderosos à razão, faziam com que eles dessem caução de que se apresentariam perante o tribunal do rei: era para julgar a questão, e não para tornar a julgá-la. Encontro, na capitular de Metz, a apelação por falso julgamento ao tribunal do rei estabelecida e todas as outras espécies de apelação proscritas e punidas. Se não se aquiescesse ao julgamento dos escabinos e não se reclamasse, era-se preso até que se tivesse aquiescido; e, se se reclamasse, era-se conduzido sob uma guarda segura diante do rei, e a questão era discutida em seu tribunal. Quase não se colocava a questão de apelação por falta de direito porque, bem antes de, naqueles tempos, existir o costume de queixar-se de que os condes e outras pessoas que tinham o direito de manter sessões de tribunal criminal não estivessem certos em manter sua corte, queixava-se, ao contrário, de que eles o eram muito; e há numerosas ordenações que proíbem aos condes e outros quaisquer oficiais de justiça de realizarem mais do que três sessões por ano. Era menos necessário corrigir sua negligência do que sustar sua atividade. Mas quando um incontável número de pequenos senhorios foi formado, e quando diferentes graus de vassalagem foram estabelecidos, a negligência de certos vassalos em manter sua corte deu origem a essas espécies de apelação, quanto mais que isso revertia para o senhor suserano em multas consideráveis. Difundindo-se cada vez mais o uso do duelo judiciário, houve lugares, casos e momentos em que foi difícil reunir os pares, nos quais, consequentemente, negligenciou-se a prestação da justiça. A apelação por falta de direito apareceu; e essas espécies de apelações foram amiúde pontos notáveis de nossa história, porque a maioria das guerras daqueles tempos tinha por motivo a violação do direito político, como nossas guerras de hoje têm comumente por causa, ou por pretexto, a violação do direito das gentes. Afirma Beaumanoir que, no caso de falta de direito, nunca havia batalha: eis aqui as razões disso. Não se podia chamar ao combate o próprio senhor, por causa do respeito devido à sua pessoa: não se podia chamar os pares do senhor, porque a coisa era clara e nada restava senão contar os dias dos adiamentos ou de outros prazos: não havia julgamento e só se falseava sobre um julgamento. Enfim, o delito dos pares ofendia tanto o senhor quanto a parte: e era contra a ordem que houvesse um combate entre o senhor e seus pares. Mas como diante do tribunal suserano se provava a culpa pelas testemunhas, estas podiam ser chamadas para o combate; e com isso não se ofendia nem o senhor nem seu tribunal. 1°) No caso em que a falta provinha da parte dos homens ou pares do senhor que haviam adiado a prestação da justiça, ou deixado de fazer o julgamento depois de passados os prazos, era aos pares do senhor que se acusava de falta de direito diante do suserano; e, se eles sucumbiam, pagavam uma multa ao seu senhor. Este não podia levar nenhum socorro aos seus homens; pelo contrário, apreendia seu feudo até que cada um deles lhe tivesse pago uma multa de sessenta libras. 2°) Quando a falta provinha ao senhor, fato que ocorria quando não havia em sua corte número suficiente de homens para efetuar o julgamento, ou quando não havia reunido seus homens, ou colocado alguém em seu lugar para reuni-los, citava-se a falta diante do senhor suserano; mas, por causa do respeito devido ao senhor, fazia-se delongar a parte e não o senhor. O senhor citava sua corte diante do tribunal suserano; e, se ganhava a causa, devolviam-lhe a questão, e pagavam-lhe uma multa de sessenta libras mas se a falta de direito era provada, sua pena era perder o julgamento da coisa contestada; o fundamento era julgado no tribunal suserano; com efeito, não se tinha reclamado a falta senão para isso. 3°) Se se pleiteava na corte de seu senhor contra ele, o que só ocorria para as questões concernentes ao feudo, após ter cedido todos os prazos, intimava-se o senhor mesmo diante dos homens bons e fazia-se com que ele fosse intimado pelo suserano, de quem se devia ter permissão. Nunca se intimava através dos pares, porque esses não podiam citar seu senhor; mas podiam aprazar para o seu senhor. Algumas vezes a apelação de falta de direito era seguida de uma apelação de falso julgamento, quando o senhor, apesar da falta, havia feito apresentar o julgamento. O vassalo que acusasse injustamente seu senhor por falta de direito era condenado a pagar-lhe uma multa deixada a seu critério. Haviam os ganteses citado por falta de direito o Conde de Flandres pelo fato de ele ter demorado em lhes conceder julgamento em sua corte. Descobriu-se que ele havia concedido um prazo ainda menor do que o costume do país permitia. Os ganteses lhe foram remetidos; ele mandou apreender seus bens até o valor de sessenta mil libras. Eles retomaram à corte do rei, para que essa multa fosse moderada; foi decidido que o conde podia aplicar essa multa, e até mais, se desejasse. Beaumanoir assistira a esses julgamentos. 4°) Nas questões que o senhor podia ter contra o vassalo por causa da pessoa ou da honra deste, ou de bens que não eram do feudo, não havia caso de apelação por falta de direito, visto que nunca se julgava na corte do senhor, mas na de quem o defendia; os súditos, diz Défontaines, não tinham o direito de julgar sobre a pessoa de seu senhor. Esforcei-me para dar uma ideia clara dessas coisas, as quais, nos autores daqueles tempos, são tão confusas e obscuras, que na verdade extraí-las do caos em que estão é o mesmo que descobri-las. CAPÍTULO XXIX ÉPOCA DO REINADO DE SÃO LUÍS São Luís aboliu o duelo judiciário nos tribunais de seus domínios, como parece pela ordenação que fez a esse respeito, e pelos Estabelecimentos. Mas não o suprimiu nas cortes de seus barões, exceto no caso de apelação de falso julgamento. Não se podia acusar de falsidade a corte de seu senhor, sem requerer o duelo judiciário contra os juízes que haviam pronunciado o julgamento. Mas São Luís introduziu o uso de acusar de falsidade sem combater: modificação que foi uma espécie de revolução. Declarou ele que nunca se poderia acusar de falsidade os julgamentos emitidos nos senhorios de seus domínios, porque se trataria de crime de felonia. Efetivamente, se era uma modalidade de crime de felonia contra o senhor, com mais forte razão ele o era contra o rei. Mas quis que dele pudesse ser solicitada a correção dos julgamentos concedidos em suas cortes; não porque eles fossem falsa ou maldosamente prolatados, mas sim porque causavam algum dano. Quis, pelo contrário, que se fosse obrigado a acusar de falsidade os julgamentos das cortes dos barões, se se quisesse fazer queixa contra eles. Não se podia, segundo os Estabelecimentos, acusar de falsidade os tribunais do domínio do rei, como acabamos de dizer. Cumpria solicitar emenda diante do mesmo tribunal; e, no caso em que o bailio não quisesse fazer a emenda requerida, o rei permitia o apelo ao tribunal, ou antes, que eles, interpretando eles próprios os Estabelecimentos, apresentassem-lhe- um requerimento ou uma petição. Com relação às cortes dos senhores, São Luís, ao permitir que se lhes acusasse de falsidade, desejou que a questão fosse levada ao tribunal do rei, ou do senhor suserano, não para aí ser decidida pelo combate, mas por testemunhas, seguindo uma forma de proceder da qual ele deu as regras. Assim, quer se pudesse acusar de incompetência, como nos tribunais dos senhores, quer não se pudesse, como nos tribunais de seus domínios, estabeleceu ele que se poderia apelar sem correr risco de um combate. Relata-nos Défontaines os dois primeiros exemplos que presenciou, em que se havia procedido sem duelo judiciário; um, numa questão julga da pelo tribunal de Saint-Quentin, que pertencia ao domínio do rei; e outro, no tribunal de Ponthieu, onde o conde, que estava presente, objetou com a antiga jurisprudência; mas estas duas questões foram julgadas pelo direito. Perguntar-se-á, talvez, por que São Luís ordenou para os tribunais de seus barões uma maneira de proceder diferente da que ele estabelecia nos tribunais de seus domínios. Eis a razão: São Luís, estatuindo para os tribunais de seus domínios, nunca foi constrangido em seus pareceres; mas teve que ser deferente com os senhores que gozavam dessa antiga prerrogativa pela qual as questões nunca eram retiradas de seus tribunais, a menos que não se estivesse exposto ao perigo de ser acusado de falsidade. São Luís manteve esse costume de acusar de falsidade, mas quis se fizesse isso sem combater: isto é, para que a modificação fosse menos sentida, suprimiu o fato, e deixou subsistir os termos. Isso não foi universalmente aceito nos tribunais dos senhores. Escreve Beaumanoir que, em seu tempo, havia duas maneiras de julgar: uma segundo o Estabelecimento do rei, e outra segundo a prática antiga; que os senhores tinham o direito de seguir uma ou outra dessas práticas; mas que numa questão, quando se tinha escolhido uma, não se podia mais voltar à outra. Acrescenta ele que o Conde de Clermont seguia a nova prática, enquanto seus vassalos se atinham à antiga; mas que ele poderia, quando desejasse, estabelecer a antiga, sem o que teria menos autoridade que seus vassalos. Faz-se mister saber que a França estava, então dividida em região do domínio do rei e naquilo que se chamava região dos barões, ou em baronias; e, para servir-me dos termos dos Estabelecimentos de São Luís, em região de obediência-ao-rei e em região fora da obediência-ao-rei. Quando os senhores faziam ordenações para as regiões de seus domínios, só utilizavam sua própria autoridade; mas, quando as faziam considerando também a região de seus barões, eram feitas de acordo com eles, firmadas ou subscritas por eles; sem isso, os barões as recebiam ou não as recebiam, conforme lhes parecesse convir ou não ao bem de seus senhorios. Os subvassalos mantinham os mesmos termos com os grandes vassalos. Ora, os Estabelecimentos não foram dados com o consentimento dos senhores, embora estatuíssem sobre coisas que lhes eram de grande importância: mas só foram acolhidos pelos que acreditaram que lhes era vantajoso acolhê-los. Roberto, filho de São Luís, admitiu-os em seu condado de Clermont; e seus vassalos não acreditaram que lhe conviesse fazê-los aplicar entre eles. CAPÍTULO XXX OBSERVAÇÕES SOBRE AS APELAÇÕES Compreende-se que as apelações, provocações para um combate, deviam ser feitas imediatamente. "Se se parte do tribunal sem apelar", diz Beaumanoir, "perde-se a apelação e considera-se o julgamento válido." Isso subsistiu mesmo depois que se restringiu o costume do duelo judiciário. CAPÍTULO XXXI CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Não podia o vilão acusar de falsidade o tribunal de seu senhor: informa-nos Défontaínes isto é confirmado pelos Estabelecimentos. "Também", diz ainda Défontaines, "não há entre ti, senhor, e teu vilão, outro juiz além de Deus”. Fora o uso do duelo judiciário que impedira os vilãos de poderem acusar de falsidade o tribunal de seu senhor; e isso é tão verdadeiro, que os vilãos que, por charta de permissão ou pelo uso tinham o direito de combater, possuíam igualmente o direito de acusar de falsidade o tribunal do senhor, mesmo quando os súditos que haviam julgado fossem cavaleiros; e Défontaínes apresenta os expedientes para que esse escândalo do vilão que, acusando de falsidade o julgamento, combatia contra um cavaleiro não ocorresse. Começando a prática dos duelos judiciários a ser abolida, e o uso das novas relações a introduzir-se, julgou-se insensato que as pessoas libertas tivessem um recurso contra a injustiça do tribunal de seus senhores, e que os vilãos não o tivessem; e o parlamento acolheu suas apelações como as das pessoas libertas. CAPÍTULO XXXII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Quando se acusava de falsidade o tribunal do senhor, este comparecia pessoalmente ante o senhor suserano, para defender o julgamento de seu tribunal. Igualmente, no caso de apelação de falta de direito, a parte aprazada diante do senhor suserano levava seu senhor com ela, para que, se a falta não fosse provada, ele pudesse reaver seu tribunal. Posteriormente, tendo-se tornado geral para todas as questões o que não passava de dois casos particulares, pela introdução de todas as modalidades de apelação, pareceu extraordinário que o senhor fosse obrigado a passar sua vida em outros tribunais que não os seus, e por questões que não as suas. Ordenou Filipe de Valois que só os bailios seriam aprazados. E, quando o uso das apelações se tornou ainda mais frequente, coube às partes defender a apelação; a causa do juiz tornou-se a causa da parte. Disse que na apelação de falta de direito o senhor perdia apenas o direito de mandar julgar a questão em seu tribunal. Mas, se o próprio senhor era visado como parte - o que se tornou muito frequente -, pagava ao rei, ou ao senhor suserano, devendo quem o havia provocado pagar uma multa de sessenta libras. Daí originou-se o costume, quando as apelações foram universalmente admitidas, de pagar a multa ao senhor quando se reformava a sentença de seu juiz, uso que subsistiu por muito tempo, foi confirmado pela ordenação de Roussillon e prescreveu em virtude de seu absurdo. CAPÍTULO XXXIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Na prática do duelo judiciário, o apelante que acusara um dos juízes podia perder, pelo combate, seu processo, e não podia ganhá-lo. Com efeito, a parte que tivesse um julgamento a seu favor não devia ser despojada dele pela causa de outrem. Fazia-se mister, então, que o apelante que tivesse vencido combatesse ainda contra a parte, não para saber se o julgamento era bom ou mau; não se tratava mais desse julgamento, pois que o combate o tinha anulado, mas de decidir se a queixa era legítima ou não; e é sobre este novo ponto que se combatia. Daí deve ter-se originado nossa maneira de pronunciar os arestos: a corte considera nula a apelação; a corte considera nulos a apelação e o que foi apelado. Efetivamente, quando quem apelara de falso julgamento era vencido, a apelação ficava anulada; quando vencia, o julgamento era anulado e também a apelação: era preciso realizar novo julgamento. Tanto isto é verdade que, quando a questão era julga da por inquéritos, esta maneira de pronunciar não ocorria. O Sr. de la Roche-Flavin nos diz que a câmara dos inquéritos não podia usar esta forma nos primeiros tempos de sua criação. CAPÍTULO XXXIV COMO O PROCESSO SE TORNOU SECRETO Os duelos haviam introduzido uma forma pública de processo: a acusação e a defesa eram igualmente conhecidas. "As testemunhas", narra Beaumanoir, "devem prestar seu testemunho diante de todos." Diz o comentador de Boutillier ter aprendido de antigo praxistas, e por alguns processos velhos escritos a mão, que antigamente, na França, os processos criminais eram feitos publicamente, e de forma pouco diferente dos julgamentos públicos dos romanos. Isso se relacionava à ignorância da escrita, comum naqueles tempos. O uso da escrita fixa as ideias, e pode fazer estabelecer o segredo; mas, quando não se tem esse uso, só a publicidade do processo pode fixar essas mesmas ideias. E, como podia haver incerteza sobre o que havia sido julgado por homens, ou pleiteado diante dos homens, podia-se relembra-lo todas as vezes que se reunia o tribunal, razão pela qual se chamava processo por recordação, e, neste caso, não era permitido desafiar as testemunhas para combate porque as questões nunca mais teriam fim. Posteriormente, introduziu-se uma forma secreta de proceder. Tudo era público: tudo se tornou oculto; os interrogatórios, as informações, a leitura dos depoimentos às testemunhas, o confronto, as conclusões da parte pública; e tal é o uso de hoje em dia. A primeira forma de proceder convinha ao governo de então, como a nova era apropriada ao governo que foi estabelecido depois. O comentador de Boutilier fixa na ordenação de 1539 a época dessa transformação. Creio que isso aconteceu pouco a pouco, e que ela passou de senhoria a senhoria, à medida que os senhores renunciaram à antiga prática de julgar, e que a extraída dos Estabelecimentos de São Luís veio a se aperfeiçoar. De fato, Beaumanoír diz que não era senão nos casos em que se podia dar penhores de batalha que se ouviam publicamente as testemunhas; nos outros, elas eram vistas em segredo, e redigiam-se por escrito seus depoimentos. Os processos tornaram-se então secretos, quando não houve mais penhores de batalha. CAPÍTULO XXXV DAS CUSTAS Antigamente, na França, não havia condenação de custas em tribunal leigo. A parte que era derrotada era bastante punida pelas condenações de multa para com o senhor e seus pares. A maneira de proceder pelo duelo judiciário fazia com que, nos crimes, a parte que sucumbia, e que perdia a vida e os bens, fosse punida tanto quanto podia sê-lo: e, nos outros casos do duelo judiciário, havia multas algumas vezes fixas, algumas vezes dependentes da vontade do senhor, que faziam os processos bastante temidos. O mesmo acontecia nas questões que só se decidiam pelo combate. Como era o senhor que tinha os proveitos principais, era ele também que fazia as principais despesas, quer para reunir os pares, quer para apronta-los para proceder ao julgamento. De resto, as questões, acabando no próprio lugar, e quase sempre imediatamente, e sem esse número infinito de escrituras que se viu depois, não era necessário obrigar que as partes arcassem com as custas. É o uso das apelações que deve naturalmente introduzir o de obrigar as custas. Desse modo, Défontaines diz que, quando se apelava por lei escrita, isto é, quando se seguiam as novas leis de São Luís, obrigava-se às custas; mas que, no uso comum, que não permitia citar sem acusar de falsidade, não havia custas: só se obtinha uma multa, e a posse por um ano e um dia da coisa contestada, se a questão era remetida ao senhor. Mas, quando as novas facilidades de apelar aumentaram o número das apelações quando, pelo frequente uso dessas apelações de um tribunal a outro, as partes foram sem cessar transportadas para fora do lugar de seu domicílio; quando a nova arte do processo multiplicou e eternizou os processos; quando a ciência de evitar as questões mais justas foi-se refinando; quando um pleiteante soube fugir, unicamente para se fazer seguir; quando a solicitação se tornou ruinosa, e a defesa tranquila; quando as razões se perderam nos volumes de palavras e de escritos; quando tudo ficou repleto de cúmplices da justiça que não deviam conceder justiça; quando a má-fé encontrou conselhos onde não encontrou apoios; foi extremamente necessário conter os pleiteantes, pelo temor das custas. Eles tiveram que pagá-las pela decisão e pelos meios que haviam empregado para eludi-la. Carlos, o Formoso, fez a esse respeito uma ordenação geral. CAPÍTULO XXXVI DA PARTE PÚBLICA Como, pelas leis sálicas e ripuárias, e pelas outras leis dos povos bárbaros, as penas para os crimes eram pecuniárias, nunca havia então, como atualmente entre nós, parte pública que fosse encarregada da demanda judicial criminal. Com efeito, tudo se reduzia a reparações de danos; toda demanda judicial era, de alguma maneira, civil, e cada particular podia fazê-la. Por outro lado, o direito romano tinha formas populares para a demanda judicial criminal, as quais não podiam estar de acordo com a medição de uma parte pública. O uso dos duelos judiciários não repugnava menos a esta ideia; pois quem quereria ser a parte pública e tornar-se campeão de todos contra todos? Encontro, em uma coletânea de fórmulas que Muratori inseriu nas leis dos lombardos, que havia, na segunda raça, um advogado da parte pública. Mas, se lemos a compilação inteira dessas fórmulas, veremos que havia uma diferença total entre esses oficiais e o que chamamos hoje de parte pública, de procuradores-gerais, de procuradores do rei ou dos senhores. Os primeiros eram agentes do público, antes para a manutenção política e doméstica do que para a manutenção civil. Com efeito, nunca se vê nessas fórmulas que eles fossem encarregados da demanda judicial criminal e das questões que concerniam aos maiores, às igrejas, ou ao estado das pessoas. Disse que o estabelecimento de uma parte pública repugnava ao uso do duelo judiciário. Encontrei, entretanto, em uma dessas fórmulas um advogado da parte pública que tem a liberdade de combater. Muratori colocou-a na continuação da constituição de Henrique I para a qual foi feita. Diz-se, nessa constituição, que, "se alguém matar seu pai, seu irmão, seu sobrinho, ou algum outro de seus parentes, perderá sua sucessão, que passará para os outros parentes, e a sua própria pertencerá ao fisco". Ora, é para a demanda dessa sucessão destinada ao fisco que o advogado da parte pública, que lhe sustentava os direitos, tinha a liberdade de combater: este caso fazia parte da regra geral. Vemos nessas fórmulas o advogado da parte pública agir contra quem havia prendido um ladrão e não o tinha levado ao conde; contra quem provocara uma sublevação ou uma assembleia contra o conde; contra quem havia salvado a vida de um homem que o conde lhe dera para ser morto; contra o advogado das igrejas, a quem o conde ordenara que lhe apresentasse um ladrão e que não havia obedecido; contra quem havia revelado o segredo do rei aos estranhos; contra quem, a mão armada, perseguira o enviado do imperador; contra quem menosprezara as cartas do imperador, e era processado pelo advogado do imperador, ou pelo próprio imperador; contra quem não quisera receber a moeda do príncipe; enfim, este advogado requeria as coisas que a lei adjudicava ao fisco. Mas na perseguição dos crimes no processo criminal não se via o advogado da parte pública; mesmo quando utilizavam os duelos mesmo quando se tratava de Incêndio; mesmo quando o juiz era morto em seu tribunal; mesmo quando se tratava do estado das pessoas, da liberdade e da escravidão. Essas fórmulas são feitas não somente para a lei dos lombardos, mas também para as capitulares acrescentadas: destarte, não é preciso duvidar que, sobre este assunto, não nos apresentem elas a prática da segunda raça. É claro que esses advogados da parte pública tiveram que extinguir-se com a segunda raça, tal como os enviados do rei nas províncias; pela razão de que não houve mais lei geral, nem fisco geral; e pela razão de que não houve mais conde nas províncias para manter a audiência; e consequentemente não houve mais essas espécies de oficiais, cuja principal função era manter a autoridade do conde. O uso dos combates, tornado mais frequente na terceira raça, não permitiu o estabelecimento de uma parte pública. Igualmente, Boutillier, em sua Suma Rural, falando dos oficiais de justiça, só cita os bailios, os vassalos feudais e os sargentos. Vede os Estabelecimentos e Beaumanoir sobre a maneira como eram feitos os processos naqueles tempos. Encontro nas leis de Tiago I, rei de Maiorca, uma criação do emprego de procurador do rei, com as funções que têm hoje os nossos. É óbvio que eles só surgiram depois que a forma judiciária mudou entre nós. CAPÍTULO XXXVII DE COMO OS ESTABELECIMENTOS DE SÃO LUIS CAÍRAM NO ESQUECIMENTO Este foi o destino dos Estabelecimentos: nasceram, envelheceram e morreram em muito pouco tempo. Farei a seguir algumas reflexões. O código que temos sob o nome de Estabelecimentos de São Luís nunca foi feito para servir de lei para todo o reino, embora isto seja dito no prefácio desse código. Tal compilação é um código geral que estatui sobre todas as questões civis, as disposições de bens por testamento ou inter vivos, os dotes e os benefícios das mulheres, as vantagens e as prerrogativas dos feudos, as causas de polícia etc. Ora, numa época em que cada cidade, burgo ou vila tinha seu costume, dar um corpo geral de leis civis era querer derrubar num momento todas as leis particulares sob as quais se vivia em cada lugar do reino. Fazer um costume geral de todos os costumes particulares seria uma coisa imprudente, mesmo naqueles tempos em que os príncipes em toda parte só encontravam obediência. O que acabo de dizer prova ainda que esse código dos Estabelecimentos não foi confirmado no parlamento pelos barões e súditos da lei do reino, como é dito no manuscrito do palácio de Amiens, citado por Ducange. Vê-se, nos outros manuscritos, que esse código foi dado por São Luís no ano de 1270, antes de sua partida para Túnis. Esse fato não é verdadeiro; porque São Luís partiu em 1269, como observou Ducange; donde ele conclui que esse código fora publicado em sua ausência. Mas digo que isso não pode ser. Como São Luís teria escolhido a época de sua ausência para fazer uma coisa que teria sido uma semente de perturbações, e que teria podido produzir não modificações, mas revoluções? Tal empreendimento, mais que outro, teria de ser acompanhado de perto, e não era a obra de uma regência fraca e até composta por senhores que tinham interesse em que a coisa não fosse bem-sucedida. Eram eles: Mateus, Abade de São Dionísio; Simão de Clermont, Conde de Nesle; e, em caso de morte, Filipe, Bispo de Évreux; e João, Conde de Ponthieu. Vimos acima que o Conde de Ponthieu opôs-se em sua senhoria à execução de uma nova ordem judiciária. Digo, em terceiro lugar, que há grandes indícios de que o código que temos seja algo diferente dos Estabelecimentos de São Luís sobre a ordem judiciária. Esse código cita os Estabelecimentos: é, então, uma obra sobre os Estabelecimentos, e não os Estabelecimentos. Além do mais, Beaumanoir, que cita amiúde os Estabelecimentos de São Luís, só cita os Estabelecimentos particulares desse príncipe, e não essa compilação dos Estabelecimentos. Défontaines, que escrevia sobre esse príncipe, fala-nos das duas primeiras vezes que executaram seus Estabelecimentos sobre a ordem judiciária como uma coisa passada. Os Estabelecimentos de São Luís eram portanto anteriores à compilação a que me refiro, a qual, a rigor, e adotando os prólogos errados colocados por alguns ignorantes no início dessa obra, só teria surgido no último ano da vida de São Luís, ou mesmo depois da morte desse príncipe. CAPÍTULO XXXVIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO O que é então essa compilação que temos sob o nome de estabelecimentos de São Luís? O que é esse código obscuro, confuso e ambíguo, em que se confunde incessantemente a jurisprudência francesa com a lei romana; em que se fala como um legislador, e onde se vê um jurisconsulto; em que se encontra um corpo inteiro de jurisprudência sobre todos os casos, sobre todos os pontos do direito civil? É preciso transportar-se para aqueles tempos. Vendo São Luís os abusos da jurisprudência de seu tempo, procurou fazer com que os povos desgostassem dela; fez vários regulamentos para os tribunais de seus domínios, e para os de seus barões; e teve tal êxito, que Beaumanoir, que escrevia bem pouco tempo depois da morte desse príncipe, diz que a maneira de julgar estabelecida por São Luís era praticada em grande número de tribunais dos senhores. Assim, esse príncipe alcançou seu objetivo, embora seus regulamentos para os tribunais dos senhores não tivessem sido feitos para serem lei geral do reino, mas exemplo que cada um poderia seguir, e que cada um teria até interesse em seguir. Ele suprimiu o mal acentuando o melhor. Quando viram em seus tribunais, quando viram nos tribunais dos seus senhores, uma maneira de proceder mais natural, mais razoável, mais conveniente à moral, à religião, à tranquilidade pública, à segurança da pessoa e dos bens, adotaram-na e abandonaram a outra. Convidar, quando não cumpre coagir; conduzir, quando não cumpre comandar, é a habilidade suprema. A razão tem um império natural; ela tem mesmo um império tirânico: resiste-se-lhe, mas essa resistência é seu triunfo; mais um pouco de tempo e ser-se-á forçado a voltar a ela. São Luís, para fazer com que não se apreciasse a jurisprudência francesa, mandou traduzir os livros do direito romano, para que fossem conhecidos pelos homens de lei daqueles tempos. Défontaines, que é o primeiro autor de praxe que temos, fez um grande uso dessas leis romanas; sua obra é, de alguma maneira, resultado da antiga jurisprudência francesa, das leis ou Estabelecimentos de São Luís, e da lei romana. Beaumanoir fez pouco uso da lei romana; mas conciliou a antiga jurisprudência francesa com os regulamentos de São Luís. É no espírito dessas duas obras, e sobretudo na de Défontaines, que algum bailio, creio, fez a obra de jurisprudência que chamamos os Estabelecimentos. Diz-se no título dessa obra que ela é feita segundo o uso de Paris e de Orléans, e das cortes de baronia; e, no prólogo, que ele é um tratado dos usos de todo o reino, de Anjou e da corte de baronia. É claro que essa obra foi feita para Paris, Orléans e Anjou, tal como as obras de Beaumanoir e de Défontaines foram feitas para os condados de Clermont e de Vermandois: e, como se afigura, por Beaumanoir, que muitas leis de São Luís haviam penetrado nas cortes de baronia, o compilador teve alguma razão em dizer que sua obra concernia também às cortes de baronia. É claro que quem fez essa obra compilou os costumes da região com as leis e os Estabelecimentos de São Luís. Essa obra é muito preciosa, porque contém os antigos costumes de Anjou e os Estabelecimentos de São Luís, tais como eram então praticados, e, enfim, o que aí se praticava da antiga jurisprudência francesa. A diferença entre essa obra e as de Défontaines e de Beaumanoir é que aí se fala em termos de mandamento, como fazem os legisladores; e isso assim podia ser, porque era uma compilação de costumes escritos e de leis. Havia um vício nessa compilação; formava ela um código anfíbio, onde se misturava a jurisprudência francesa com a lei romana; aproximavam-se coisas que não tinham relação, e que frequentemente eram contraditórias. Bem sei que os tribunais franceses, de vassalos ou de pares, os julgamentos sem apelação para outro tribunal, a maneira de pronunciar por estas palavras: Condeno ou Absolvo, estavam em conformidade com os julgamentos populares dos romanos. Mas se fez pouco uso dessa antiga jurisprudência; utilizara-se mais da que foi posteriormente introduzida pelos imperadores, que se empregou em toda parte nessa compilação, para regulamentar, limitar, corrigir, ampliar a jurisprudência francesa. CAPÍTULO XXXIX CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO As formas judiciárias introduzidas por São Luís caíram em desuso. Esse príncipe tivera em vista menos a coisa em si, isto é, a melhor maneira de julgar, do que a melhor maneira de substituir a antiga prática de julgar. O primeiro objetivo era fazer com que a antiga jurisprudência caísse em desagrado, e o segundo, criar nova jurisprudência. Mas, tendo aparecido os inconvenientes daquela, viu-se logo suceder outra. Destarte, as leis de São Luís deram mais meios para modificar a jurisprudência francesa do que a modificaram: abriram novos tribunais, ou antes, vias para aí chegar; e, quando se pôde chegar facilmente àquele que tinha autoridade geral, os julgamentos que, anteriormente, não cumpriam senão os usos de uma senhoria particular criaram uma jurisprudência universal. Obtiveram-se, pela força dos Estabelecimentos, decisões gerais, que faltavam inteiramente no reino; quando o edifício foi construído, deixou-se cair o andaime. Desse modo, as leis estabelecidas por São Luís tiveram efeitos que não se deveriam ter esperado da obra-prima da legislação. Algumas vezes são necessários muitos séculos para preparar as modificações; os acontecimentos amadurecem e eis as revoluções. O parlamento julgou, em última instância, quase todas as questões do reino. Antes só julgava as que ocorriam entre duques, condes, barões, bispos, abades, ou entre o rei e seus vassalos, mais na relação que elas tinham com a ordem pública do que com a ordem civil. Com o tempo foi-se obrigado a tornar o parlamento sedentário, e a mantê-lo sempre reunido; enfim criaram-se muitos deles para que bastassem a todas as questões. Logo que o parlamento se tornou um corpo fixo, começou-se a compilar seus arestos. Jean de Monluc, no reinado de Filipe, o Belo, fez a compilação chamada atualmente de registros Olim. CAPÍTULO XL DE COMO FORAM ADOTADAS AS FORMAS JUDICIÁRIAS DAS DECRETAIS Mas como, ao se abandonarem as formas judiciárias estabelecidas, adotaram-se de preferência as do direito canônico às do direito romano? É que se tinham sempre diante dos olhos os tribunais eclesiásticos, os quais obedeciam às formas do direito canônico, e não se conhecia nenhum tribunal que seguisse as do direito romano. Além disso, os limites da jurisdição eclesiástica e da secular eram, naqueles tempos, bem pouco conhecidos: havia pessoas que litigavam indiferentemente nos dois tribunais, havia matérias pelas quais se litigava da mesma maneira. Parece que a jurisdição leiga só conservou para si, privativamente, o julgamento das matérias feudais e os crimes cometidos pelos leigos nos casos em que não ofendiam a religião. Porque se, em razão das convenções e dos contratos, era preciso recorrer à justiça leiga, as partes podiam voluntariamente instaurar processo diante dos tribunais eclesiásticos, os quais, não tendo o direito de obrigar a justiça leiga a mandar executar a sentença, obrigavam a obedecê-la por meio da excomunhão. Nessas circunstâncias, quando, nos tribunais leigos, se quis mudar de prática, adotou-se a dos eclesiásticos, porque era conhecida; e não a do direito romano, porque não era conhecida, pois, em matéria de prática, não se sabe senão aquilo que se pratica. CAPÍTULO XLI FLUXO E REFLUXO DA JURISDIÇÃO ECLESIÁSTICA E DA JURISDIÇÃO LEIGA Estando o poder civil nas mãos de uma infinidade de senhores, fora fácil para a jurisdição eclesiástica ampliar-se cada dia mais: porém, como a jurisdição eclesiástica enfraquecia a jurisdição dos senhores e contribuiu, por isso, para dar forças à jurisdição real, esta restringiu pouco a pouco a jurisdição eclesiástica, que recuou diante da primeira. O parlamento, que admitira em sua forma de proceder tudo o que havia de bom e de útil na dos tribunais eclesiásticos, inicialmente apenas viu seus abusos; e, fortificando-se a jurisdição real todos os dias, esteve cada vez mais em condição de corrigir esses mesmos abusos. Esses eram, efetivamente, intoleráveis; e, sem os enumerar, remontarei a Beaumanoir, a Boutillier, às ordenações dos nossos reis. Só falarei dos que interessavam mais diretamente à riqueza pública. Conhecemos esses abusos pelos ares tos que os reformaram. A ignorância crassa os havia induzido; uma espécie de inteligência apareceu, e eles não existiram mais. Pode-se considerar, pelo silêncio do clero, que ele próprio ia à frente da correção; o que, considerada a natureza do espírito humano, merece louvores. Todo homem que morria sem deixar uma parte de seus bens à Igreja, o que se chamava morrer inconfesso, era privado da comunhão e da sepultura. Se morria sem fazer testamento, era preciso que os parentes obtivessem do bispo que nomeasse, juntamente com eles, árbitros para fixar o que o defunto deveria ter dado caso tivesse feito testamento. Não se podia dormir junto na primeira noite de núpcias, nem mesmo nas duas seguintes, sem ter comprado a permissão para tal; eram exatamente essas três noites que cumpria escolher, porque, para as demais, não se teria dado muito dinheiro. O parlamento corrigiu tudo isso. Encontra-se, no Glossário do Direito Francês de Ragueau, o aresto que ele emitiu contra o bispo de Amiens. Volto ao começo de meu capítulo. Quando, em um século, ou em um governo, vemos os diversos corpos do Estado procurarem aumentar sua autoridade, lograrem, uns sobre os outros, certas vantagens, enganar-nos-íamos frequentemente se olhássemos seus empreendimentos como uma marca certa de sua corrupção. Por uma infelicidade relacionada com a condição humana, os grandes homens moderados são raros; e, como é sempre mais fácil seguir sua força do que detê-la, talvez na classe das pessoas superiores seja mais fácil encontrar pessoas extremamente virtuosas, do que homens extremamente sábios. A alma sente tantos prazeres em dominar as outras almas; mesmo os que amam o bem amam tão fortemente a si mesmos, que não há ninguém que não seja bastante infeliz para ter ainda que desconfiar de suas boas intenções: e, na verdade, nossas ações contêm tantas coisas, que é mil vezes mais fácil fazer o bem do que fazê-lo bem feito. CAPÍTULO XLII RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANO E O QUE DELE RESULTOU. MODIFICAÇÕES NOS TRIBUNAIS Tendo sido o Digesto de Justiniano reencontrado mais ou menos no ano de 1137, o direito romano pareceu receber um segundo nascimento. Estabeleceram-se na Itália escolas onde o ensinavam: já se tinham o Código Justiniano e as Novelas. Já disse que este direito ganhou aí tal acolhimento que fez eclipsar a lei dos lombardos. Doutores italianos trouxeram o direito de Justiniano para a França, onde só se conhecera o Código Teodosiano, porque apenas depois do estabelecimento dos bárbaros nas Gálias é que as leis de Justiniano foram feitas. Esse direito sofreu algumas oposições; mas se manteve, apesar das excomunhões dos papas, que protegiam seus cânones. São Luís procurou dar-lhe fé pelas traduções que mandou fazer das obras de Justiniano, as quais ainda temos manuscritas em nossas bibliotecas; e já disse que se fez um grande uso delas nos Estabelecimentos. Filipe, o Belo, mandou ensinar as leis de Justiniano, somente com razão escrita, nas regiões da França governadas pelos costumes; e foram elas adota das como lei nas regiões em que o direito romano era a lei. Disse mais acima que a maneira de proceder pelo duelo judiciário exigia, nos que julgavam, bem pouca suficiência; decidiam-se as questões em cada lugar, conforme o uso de cada lugar, e segundo alguns costumes simples, os quais eram transmitidos por tradição. Havia, no tempo de Beaumanoir, duas maneiras diferentes de fazer justiça. Em alguns lugares, julgava-se por pares, em outros, julgava-se por bailios. Quando se seguia a primeira forma, os pares julgavam conforme o uso de sua jurisdição; na segunda, eram os virtuosos ou os velhos que indicavam ao bailio o mesmo uso. Tudo isso não requeria nenhuma instrução, nenhuma capacidade, nenhum estudo. Mas, quando o código obscuro dos Estabelecimentos e outras obras de jurisprudência apareceram; quando o direito romano foi traduzido; quando começou a ser ensinado nas escolas; quando certa arte do processo e certa arte da jurisprudência começaram a formar-se; quando se viu nascerem praxistas e jurisconsultos, os pares e os homens virtuosos não se achavam mais em condição de julgar; os pares começaram a retirar-se dos tribunais do senhor; os senhores não se mostraram muito inclinados a reuni-los, quanto mais que os julgamentos, em vez de serem uma ação brilhante, agradável à nobreza, interessante para os guerreiros, não passavam de uma prática que eles não entendiam nem queriam entender. A prática de julgar por pares tornou-se de pouco uso, a de julgar por bailios ampliou-se. Os bailios não julgavam: faziam a instrução e pronunciavam o julgamento dos virtuosos; mas, não estando estes mais em condições de julgar, os próprios bailios é que julgaram. Isto se fez tão mais facilmente na medida em que se tinha diante dos olhos a prática dos juízes da Igreja: o direito canônico e o novo direito civil concorreram igualmente para abolir os pares. Assim se perdeu o uso, constantemente observado na monarquia, segundo o qual um juiz nunca julgava só, como se vê pelas leis sálicas, pelas capitulares, e pelos primeiros escritores de praxe da terceira raça. O abuso contrário, que só ocorre nas justiças locais, foi moderado, e de alguma maneira corrigido, pela introdução em muitos lugares de um representante do juiz, a quem este último consulta e que representa os antigos virtuosos; pela obrigação em que estava o juiz de servir-se de dois graduados nos casos que pudessem merecer uma pena aflitiva; e enfim esse abuso tornou-se nulo pela extrema facilidade das apelações. CAPÍTULO XLIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Deste modo, não foi uma lei que proibiu os senhores de manterem eles próprios suas cortes; não foi uma lei que aboliu as funções que seus pares aí desempenhavam; não houve lei que ordenasse criar os bailios; não foi por uma lei que eles tiveram o direito de julgar. Tudo isso se fez pouco a pouco, e por força da coisa. O conhecimento do direito romano, os arestos dos tribunais, as compilações dos costumes recentemente escritos, tudo demandava um estudo do qual os nobres e o povo iletrado não eram capazes. A única ordenação que temos sobre este assunto é a que obriga os senhores a escolherem seus bailios na ordem dos leigos. É erradamente que a olharam como a lei de sua criação; mas ela não diz senão o que diz. Além do mais, fixa o que prescreve pelas razões que apresenta para isso. "É para que", afirma-se, "os bailios possam ser punidos por suas prevaricações que cumpre que sejam eles admitidos na ordem dos leigos." Conhecemos os privilégios dos eclesiásticos naqueles tempos. Não é preciso crer que os direitos que os senhores usufruíam outrora, e que hoje não mais usufruem, lhes foram tirados como usurpações: muitos desses direitos foram perdidos por negligência; e outros abandonados porque, tendo-se introduzido diversas modificações nas cortes em muitos séculos, não podiam subsistir com essas modificações. CAPÍTULO XLIV DA PROVA POR TESTEMUNHAS Os juízes, que só tinham os usos como regras, em cada questão que se apresentava informavam-se deles comumente através de testemunhas. Tornando-se o duelo judiciário menos usado, os interrogatórios passaram a ser feitos por escrito. Mas uma prova oral feita por escrito nunca passa de uma prova oral; isso só fazia aumentar as custas do processo. Fizeram-se regulamentos que tornaram inútil a maior parte desses interrogatórios estabeleceram-se registros públicos, nos quais a maioria dos fatos encontrava-se provada: a nobreza, a idade, a legitimidade, o casamento. A escrita é um testemunho dificilmente corrompível. Mandaram redigir por escrito os costumes. Tudo isso era muito razoável: é mais fácil procurar nos registros de batismo se Pedro é filho de Paulo, do que provar esse fato por um longo inquérito. Quando, numa região, há um número muito grande de usos, é mais fácil escrevê-los todos em um código do que obrigar os particulares a provar cada um. Enfim, fez-se a famosa ordenação que proibia receber a prova por testemunhas por uma dívida acima de cem libras, a menos que já tivesse havido um começo de prova por escrito. CAPÍTULO XLV DOS COSTUMES DA FRANÇA A França era regida, como disse, pelos costumes não escritos; e os usos particulares de cada senhorio formavam o direito civil. Cada senhorio tinha seu direito civil, como diz Beaumanoir, e um direito tão particular, que este autor, que deve ser considerado à luz daqueles tempos, e uma grande luz, diz não crer que em todo o reino houvesse dois senhores que fossem governados inteiramente pela mesma lei. Essa prodigiosa diversidade tinha uma primeira origem e também uma segunda. Pela primeira, pode-se lembrar o que afirmei acima, no capítulo dos costumes locais e quanto à segunda, encontramo-la nos diversos acontecimentos dos duelos judiciários; devendo casos continuamente fortuitos introduzir naturalmente novos usos. Esses costumes eram conservados na memória dos anciãos; mas se formaram pouco a pouco leis e costumes escritos. 1°) No começo da terceira raça outorgaram os reis chartas particulares, e mesmo algumas gerais, da maneira como expliquei acima: tais são os Estabelecimentos de Filipe Augusto e os que se devem a São Luís. Do mesmo modo, os grandes vassalos, de acordo com os senhores que deles dependiam, outorgaram, nas assentadas de seus ducados ou condados, certas chartas ou Estabelecimentos, conforme as circunstâncias; tais foram a assentada de Godofredo, conde da Bretanha, sobre a partilha dos nobres; os costumes da Normandia, concedidos pelo Duque Raul; os costumes da Champanha, outorgados pelo Rei Tibaldo; as leis de Simão, conde de Montfort, e outras. Isso produziu algumas leis escritas, e mais gerais mesmo do que as que existiam. 2°) No começo da terceira raça, quase todo o baixo povo era servo. Muitas razões obrigaram os reis e os senhores a libertá-los. Libertando seus servos, os senhores doavam-lhes certos bens; foi preciso dar-lhes leis civis para regulamentar a disposição destes bens. Libertando seus servos, os senhores privavam-se de seus bens; foi preciso então regulamentar os direitos que os senhores se reservavam para O equivalente de seus bens. Ambas as coisas foram regulamentadas pelas cartas de alforria; estas compuseram parte de nossos costumes, que se encontra redigi da por escrito. 3°) No reinado de São Luís e nos seguintes, praxistas hábeis, tais como Défontaines, Beaumanoir e outros, redigiram por escrito os costumes de seus bailiatos. Seu objetivo era antes estabelecer uma praxe judiciária do que os usos da época sobre a disposição dos bens. Mas aí se encontra de tudo; e, embora esses autores particulares só tivessem autoridade pela verdade e publicidade das coisas que diziam, não se pode duvidar que tenham sido muito úteis para o renascimento do nosso direito francês. Tal era, naqueles tempos, nosso direito consuetudinário escrito. Eis a grande época. Carlos VII e seus sucessores mandaram redigir por escrito, em todo o reino, os diversos costumes locais, e prescreveram as formalidades que deviam ser observadas em sua redação. Ora, como essa redação foi feita por províncias, e como, de cada senhorio, vinha-se depositar na assembleia geral da província os usos escritos ou não escritos de cada lugar, procurou-se tornar os costumes mais gerais, tanto mais quanto isso pôde ser feito sem ferir os interesses dos particulares, que foram preservados. Destarte, nossos costumes adquiriram três características: foram escritos, foram mais gerais, receberam o selo da autoridade real. Tendo sido novamente redigidos muitos desses costumes foram alvo de muitas modificações, quer suprimindo tudo o que não era compatível com a jurisprudência atual, quer acrescentando muitas coisas extraídas dessa jurisprudência. Embora se considere, entre nós, que o direito consuetudinário contém uma espécie de oposição ao direito romano, de maneira que esses dois direitos dividem os territórios, é verdade, entretanto, que muitas disposições do direito romano entraram em nossos costumes, sobretudo quando se efetuaram novas redações, em tempos não muito longínquos dos nossos, quando esse direito era o objeto dos conhecimentos de todos os que se destinavam aos empregos civis; em tempos em que ninguém se vangloriava de ignorar o que se deve saber, e de saber o que se deve ignorar; quando a aptidão do espírito servia mais para aprender a própria profissão do que para exercê-la; e quando os divertimentos contínuos não eram sequer o atributo das mulheres. Teria sido necessário que me estendesse ainda mais no final deste livro; e que, ao entrar em maiores pormenores, tivesse seguido todas as modificações insensíveis que, desde a abertura das apelações, formaram o grande corpo da jurisprudência francesa. Mas, assim, teria inserido uma grande obra em outra grande obra. Sou como aquele antiquário que partiu de seu país, chegou ao Egito, lançou uma olhadela sobre as pirâmides e voltou. LIVRO VIGÉSIMO NONO DA MANEIRA DE COMPOR AS LEIS CAPÍTULO I DO ESPÍRITO DO LEGISLADOR EU O DIGO, E PARECE-ME que só faço esta obra para prova-lo: o espírito de moderação deve ser o do legislador; o bem político, como o bem moral, encontra-se sempre entre dois limites. Eis o exemplo disso. As formalidades da justiça são necessárias para a liberdade. Mas o número delas poderia ser tão grande, que iria de encontro à finalidade das mesmas leis que as teriam estabelecido: as questões não teriam fim; a propriedade dos bens ficaria incerta; dar-se-ia, sem exame, a uma das partes o bem da outra ou se arruinariam todas as duas de tanto examinar. as cidadãos perderiam sua liberdade e segurança; os acusadores não mais teriam meios para convencer, nem os acusados meios para justificar-se. CAPÍTULO II CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Cecílio, em Aulo Célio, discorrendo sobre a Lei das Doze Tábuas, que permitia ao credor esquartejar o devedor insolvente, justifica-a por sua própria atrocidade, que impedia tomar emprestado além das possibilidades. As leis mais cruéis serão portanto as melhores? O Bem será a violência, e todas as relações entre as coisas serão destruídas? CAPÍTULO III DE COMO AS LEIS QUE PARECEM AFASTAR-SE DOS DESÍGNIOS DO LEGISLADOR FREQUENTEMENTE SE LHES CONFORMAM A lei de Sólon, que declarava infames todos os que, numa sedição, nenhum partido tomavam, pareceu bastante extraordinária: mas faz-se mister atentar para as circunstâncias em que a Grécia se encontrava então. Estava ela dividida em três pequenos Estados: era de temer que, numa república agitada pelas dissensões civis, pessoas mais prudentes se pusessem ao abrigo; e que por isso as coisas não fossem levadas ao extremo. Nas sedições que ocorriam nesses pequenos Estados, a maior parte da cidade participava da querela, ou a provocava. Em nossas grandes monarquias, os partidos são formados por poucas pessoas, e o povo desejaria viver na inação. Nesse caso, é natural atrair os sediciosos à maioria dos cidadãos e não a maioria dos cidadãos aos sediciosos; no outro, é preciso fazer com que a minoria de pessoas prudentes e tranquilas adira aos sediciosos: é assim que a fermentação de um licor pode ser detida por uma só gota de outro. CAPÍTULO IV DAS LEIS QUE CONTRARIAM OS DESÍGNIOS DO LEGISLADOR Há leis que o legislador conheceu tão pouco, que são contrárias ao próprio objetivo que ele se propôs. As que estabeleceram entre os franceses que, quando um dos dois pretendentes a um benefício morre, o benefício fica para o sobrevivente, procuraram sem dúvida extinguir as questões. Mas daí resulta um efeito contrário; vimos os eclesiásticos atacarem-se e baterem-se, como dogues ingleses, até a morte. CAPÍTULO V CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO A lei a que me vou referir encontra-se no juramento que nos foi conservado por Esquino. "Juro que nunca destruirei uma cidade dos Anfictiões, e não desviarei de modo algum suas águas correntes: se algum povo ousar fazer alguma coisa de semelhante, declarar-lhe-ei guerra e destruirei suas cidades." O último artigo dessa lei, que parece confirmar o primeiro, na realidade lhe é contrário. Anfictião quer que nunca se destruam as cidades gregas, e sua lei abre a porta para a destruição dessas cidades. Para estabelecer um bom direito das gentes, entre os gregos, cumpria acostumá-los a pensar que era coisa atroz destruir uma cidade grega: portanto, não deviam nem mesmo destruir os destruidores. A lei de Anfictião era justa, mas não prudente. Isto se prova pelo próprio abuso que dela se fez. Filipe não se deu o poder de destruir as cidades, a pretexto de que elas tinham violado as leis dos gregos? Anfictião poderia infligir outras penas: ordenar, por exemplo, que certo número de magistrados da cidade destruidora, ou os chefes do exército violador, fossem punidos com a morte; que o povo destruidor cessasse, por algum tempo, de gozar dos privilégios dos gregos; que pagasse uma multa até a restauração da cidade. A lei devia sobretudo versar sobre a reparação do dano. CAPÍTULO VI DE COMO AS LEIS QUE PARECEM AS MESMAS NEM SEMPRE TÊM O MESMO EFEITO Proibia César que se guardassem em casa mais de sessenta sestércios. Em Roma, esta lei foi considerada muito adequada para conciliar os devedores com os credores; porque, obrigando os ricos a emprestar aos pobres; colocava esses em situação de satisfazer os ricos. Lei semelhante, estabelecida na França, na época do Sistema, foi muito funesta: é que a circunstância em que fora feita era terrível. Depois de suprimir todos os meios de empregar o dinheiro, suprimiu-se até o recurso de guardá-lo na própria casa; o que correspondia a um roubo praticado com violência. César fez sua lei para que o dinheiro circulasse entre o povo; o ministro da França fez a sua para que o dinheiro fosse depositado numa só mão. O primeiro deu em troca do dinheiro bens fundiários ou hipotecas sobre particulares; o segundo propôs, em troca do dinheiro, títulos que não tinham nem poderiam ter nenhum valor por sua natureza, já que a lei obrigava a aceitá-los. CAPÍTULO VII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO. NECESSIDADE DE BEM COMPOR AS LEIS. Estabeleceu-se a lei do ostracismo em Atenas, Argos e Siracusa. Em Siracusa, ocasionou males, porque foi executada imprudentemente. Os cidadãos principais baniam-se uns aos outros, colocando-se uma folha de figueira na mão de maneira que os que tinham algum mérito deixaram os negócios. Em Atenas, onde o legislador havia sentido a extensão e os limites que deveria dar à sua lei, o ostracismo foi uma coisa admirável: nunca se lhe submetia mais que uma só pessoa; era preciso tão grande número de sufrágios, que se tornava difícil exilar alguém cuja ausência não fosse necessária. Só se podia banir de cinco em cinco anos: com efeito, desde que o ostracismo só devia ser exercido contra um grande personagem que inspirasse temor aos seus cidadãos, isso não devia ser questão de todos os dias. CAPÍTULO VIII DE COMO AS LEIS QUE PARECEM AS MESMAS NEM SEMPRE TIVERAM O MESMO MOTIVO Aceitou-se, na França, a maioria das leis dos romanos sobre as substituições; mas estas têm aqui motivo completamente diferente do que entre os romanos. Entre esses, a herança estava ligada a certos sacrifícios que deveriam ser feitos pelo herdeiro, regulamentados pelo direito dos pontífices. Isso fez com que os romanos considerassem desonra morrer sem herdeiro, tomassem seus escravos por herdeiros e inventassem as substituições. A substituição vulgar, que foi a primeira a ser inventada, que só ocorria nos casos em que o herdeiro instituído não aceitasse a herança, é uma grande prova disso: nunca tinha por finalidade perpetuar a herança numa família do mesmo nome, mas encontrar alguém que aceitasse a herança. CAPÍTULO IX DE COMO AS LEIS GREGAS E ROMANAS PUNIRAM O HOMICÍDIO DE SI MESMO, SEM TEREM O MESMO MOTIVO. Um homem, diz Platão, que matou quem lhe está estreitamente ligado, isto é, ele próprio, não por ordem do magistrado, nem para evitar a ignomínia, mas por fraqueza, será punido. A lei romana punia essa ação, quando ela não era praticada por fraqueza de alma, por tédio da vida, por incapacidade de sofrer a dor, mas pelo desespero por algum crime. A lei romana absolvia no caso em que a grega condenava, e condenava no caso em que a outra absolvia. A lei de Platão estava baseada nas instituições lacedemônias, em que as ordens do magistrado eram totalmente absolutas, em que a ignomínia era a maior das desgraças, e a fraqueza o maior dos crimes. A lei romana abandonava todas as belas ideias; não passava de uma lei fiscal. Na época da república, não havia lei em Roma que punisse os que matavam a si próprios: esta ação, entre os historiadores, é sempre bem considerada, e nunca se vê neles punição contra os que a cometeram. No tempo dos primeiros imperadores, as grandes famílias de Roma foram incessantemente exterminadas por julgamentos. Introduziu-se o costume de prevenir a condenação por morte voluntária. Achavam nisso grande vantagem. Obtinha-se a honra da sepultura, e os testamentos eram executados; decorria isto do fato de não haver lei civil em Roma contra os que se matavam a si mesmos. Mas, quando os imperadores se tornaram tão avaros quanto tinham sido cruéis, não deixaram mais àqueles de que queriam desfazer-se o meio de conservar seus bens, e declararam crime tirar a vida a si próprio pelos remorsos de outro crime. O que afirmo dos motivos dos imperadores é tão verdadeiro, que estes consentiram que os bens dos que se tinham suicidado não fossem confiscados, quando o crime pelo qual se tinham suicidado não sujeitasse ao confisco. CAPÍTULO X DE COMO AS LEIS QUE PARECEM CONTRÁRIAS DERIVAM ALGUMAS VEZES DO MESMO ESPÍRITO Vai-se atualmente à casa de um homem para cita-lo em juízo; isso não se podia fazer entre os romanos. A citação em juízo era uma ação violenta uma espécie de coação física, e não se podia ir à casa de um homem para cita-lo em juízo do mesmo modo como hoje não se pode coagir fisicamente em sua casa um homem que só é condenado por dívidas civis. As leis romanas e as nossas admitem igualmente o princípio de que cada cidadão tem a própria casa como asilo, e que nela não deve receber nenhuma violência. CAPÍTULO XI DE QUE MANEIRA DUAS LEIS DIFERENTES PODEM SER COMPARADAS Na França, a pena contra as falsas testemunhas é capital; na Inglaterra, não o é. Para julgar qual das duas leis é a melhor, faz-se mister acrescentar: na França, a questão de criminosos é praticada; na Inglaterra não o é; e dizer ainda: na França, o acusado não apresenta suas testemunhas, e é raríssimo que se admita o que chamam fatos justificativos; na Inglaterra, são aceitas as testemunhas de ambas as partes. As três leis francesas formam um sistema muito coeso e muito consequente; as três leis inglesas formam outro sistema que não o é menos. A lei da Inglaterra, que não conhece questão contra os criminosos, só pode alimentar pouca esperança de arrancar do acusado a confissão de seu crime; convoca, portanto, de todos os lados, testemunhas estranhas, e não ousa desencoraja-las pelo temor de uma pena capital. A lei francesa, que tem um recurso a mais, não receia intimidar tanto as testemunhas; pelo contrário, a razão requer que as intimide: só escuta as testemunhas de uma das partes; são estas que apresentam a parte pública; e o destino do acusado depende de suas testemunhas. Mas, na Inglaterra, são aceitas as testemunhas de ambas as partes, e a questão é, por assim dizer, discutida entre elas. O falso testemunho pode, portanto, ser aí menos perigoso; o acusado tem um recurso contra o falso testemunho, enquanto a lei francesa não o concede. Destarte, para julgar qual dessas leis é a mais conforme à razão, não cumpre comparar cada uma dessas leis com as outras; é preciso tomá-las todas em conjunto, e compará-las todas em conjunto. CAPÍTULO XII DE COMO AS LEIS QUE PARECEM AS MESMAS SÃO NA REALIDADE DIFERENTES As leis gregas e romanas puniam tanto o receptador do roubo como o ladrão: a lei francesa faz o mesmo. Aquelas eram razoáveis, estas não o são. Entre os gregos e os romanos, sendo ladrão condenado a uma pena pecuniária, era necessário punir receptador com a mesma pena; porque todo homem que contribui, de alguma maneira, para que haja um dano deve repara-lo. Mas, entre nós, sendo capital a pena por roubo, não se pôde, sem exagerar as coisas, punir o receptador da mesma maneira que o ladrão. Quem recebe o roubo pode muitas vezes recebê-lo inocentemente; o que rouba é sempre culpado: um impede a convicção de um crime já cometido, o outro comete esse crime; tudo é passivo em um, há uma ação no outro; cumpre que o ladrão supere muitos obstáculos, e que sua alma se obstine por mais tempo contra as leis. Os jurisconsultos foram mais longe: encararam o receptador como mais odioso que o ladrão porque sem eles, dizem, o roubo não poderia ser escondido por muito tempo. Isso, ainda uma vez, podia ser bom quando a pena era pecuniária; tratava-se de um dano, e o receptador comumente estava mais em situação de repara-lo: mas, tornada a pena capital, seria necessário pautar-se por outros princípios. CAPÍTULO XIII DE COMO NÃO É NECESSÁRIO SEPARAR AS LEIS DO OBJETIVO PARA O QUAL SÃO FEITAS. LEIS ROMANAS SOBRE O ROUBO. Quando o ladrão era surpreendido com a coisa roubada, antes que houvesse levado para o lugar em que resolvera escondê-la, os romanos denominavam isso de roubo manifesto. Quando o ladrão só era descoberto posteriormente, tratava-se de roubo não manifesto. A Lei das Doze Tábuas ordenava que o ladrão manifesto fosse vergastado e reduzido à servidão se era púbere; ou somente vergastado se era impúbere: condenava o ladrão não manifesto apenas ao pagamento do dobro da coisa roubada. Quando a lei Pórcia aboliu a prática de vergastar os cidadãos e de reduzi-los à servidão, o ladrão manifesto foi condenado ao quádruplo e continuaram a punir com o dobro o ladrão não manifesto. Parece estranho que essas leis estabelecessem tal diferença na qualidade desses dois crimes, e na pena que infligiam; de fato; que o ladrão fosse surpreendido antes ou depois de haver levado o roubo ao seu destino, essa circunstância em nada alterava a natureza do crime. Parece-me indubitável que toda a teoria das leis romanas sobre o roubo foi extraída das instituições lacedemônias. Licurgo, desejando dar a seus cidadãos habilidade, astúcia e atividade, quis que as crianças fossem exercitadas no furto, e que fossem rudemente chicoteadas as que se deixassem surpreender: isso estabeleceu entre os gregos, e a seguir entre os romanos, grande diferença entre o roubo manifesto e o roubo não manifesto. Entre os romanos, o escravo que roubava era precipitado da rocha Tarpéia. No caso, não se tratava das instituições lacedemônias; as leis de Licurgo sobre o roubo não se destinavam aos escravos; segui-las era afastar-se delas nesse ponto. Em Roma, quando um impúbere era surpreendido no roubo, o pretor mandava vergastá-lo a seu bel-prazer, como se fazia na Lacedemônia. Tudo isso vinha de mais longe. Os lacedemônios haviam copiado esses usos dos cretenses; e Platão, desejando provar que as instituições dos cretenses eram feitas para a guerra, cita esta: "A faculdade de suportar a dor nos duelos e nos furtos que obrigam a esconder-se". Como as leis civis dependem das leis políticas, pois são feitas para uma sociedade, seria conveniente que, quando se quisesse transportar uma lei civil de uma nação para outra, se examinasse antes se ambas têm as mesmas instituições e o mesmo direito político. Assim, quando as leis sobre o roubo passaram dos cretenses para os lacedemônios, como passaram juntamente com o governo e a própria constituição, foram tão judiciosas num desses povos quanto o foram no outro. Mas quando foram levadas da Lacedemônia para Roma, como não encontraram a mesma constituição, foram aí sempre estranhas, e não tiveram nenhuma ligação com as outras leis civis dos romanos. CAPÍTULO XIV DE COMO É PRECISO NÃO SEPARAR AS LEIS DAS CIRCUNSTÂNCIAS NAS QUAIS FORAM FEITAS. Uma lei de Atenas queria que, quando a cidade estava sitiada, todas as pessoas inúteis fossem mortas. Era uma abominável lei política, consequente de um abominável direito das gentes. Entre os gregos, os habitantes de uma cidade conquistada perdiam a liberdade civil e eram vendidos como escravos; a tomada de uma cidade acarretava sua inteira destruição; e é a origem não somente dessas proibições obstinadas e dessas ações desnaturadas, mas ainda dessas leis atrozes que algumas vezes foram feitas. As leis romanas queriam que os médicos pudessem ser punidos por negligência ou por imperícia. Neste caso, condenavam à deportação o médico de condição algo elevada, e à morte o de condição mais baixa. Pelas nossas leis isso se dá de outra forma. As leis de Roma não tinham sido feitas nas mesmas circunstâncias que as nossas; em Roma, ingeria-se o medicamento que se quisesse; mas, entre nós, os médicos são obrigados a fazer estudos e a receber certos graus de profissão; eles são portanto tidos como conhecedores de sua arte. CAPÍTULO XV DE COMO É BOM, ALGUMAS VEZES, QUE UMA LEI SE CORRIJA A SI PRÓPRIA. A lei das Doze Tábuas permitia matar o ladrão noturno, tanto quanto o ladrão diurno que, sendo perseguido, defendia-se; mas ela queria que aquele que matava o ladrão gritasse e chamasse os cidadãos e isso é algo que as leis que permitem fazer justiça com as próprias mãos devem sempre exigir. É o grito da inocência que, no momento da ação, chama testemunhas, chama juízes. É preciso que o povo tome conhecimento da ação e que tome conhecimento dela no momento em que ela foi executada; em um tempo em que tudo fala: o ar, o rosto, as paixões, o silêncio, e em que cada palavra condena ou justifica. Uma lei que pode tornar-se tão contrária à segurança e à liberdade dos cidadãos deve ser executada na presença dos cidadãos. CAPÍTULO XVI COISAS A OBSERVAR NA COMPOSIÇÃO DAS LEIS Os que têm um gênio suficientemente amplo para poder dar leis à sua nação ou a outra devem tomar certas precauções sobre a maneira como formá-las. O estilo deve ser conciso. As Leis das Doze Tábuas são um modelo de precisão; as crianças as aprendiam de cor. As Novelas de Justiniano são tão difusas, que foi preciso abrevia-las. O estilo das leis deve ser simples; a expressão direta é sempre melhor compreendida do que a expressão meditada. Não há majestade nas leis do baixo império; nelas os príncipes falam como retores. Quando o estilo das leis é empolado, olhamo-las apenas como obra de ostentação. É essencial que as palavras das leis despertem em todos os homens as mesmas ideias. O Cardeal de Richelieu concordava que se podia acusar um ministro diante do rei, mas queria que se punisse aquele que quisesse provar coisas que não fossem consideráveis; o que devia impedir toda gente de dizer alguma verdade contra ele, pois uma coisa considerável é inteiramente relativa, e o que é considerável para um não é para outro. A lei de Honório punia com a morte aquele que comprava como servo um liberto, ou que tivesse querido inquietá-lo. Não era preciso servir-se de uma expressão tão vaga: a inquietude que se causa a um homem depende inteiramente do grau de sua sensibilidade. Quando a lei deve estabelecer alguma coisa, é preciso, tanto quanto possível, evitar fazê-lo a preço de dinheiro. Mil causas mudam o valor da moeda; e com a mesma denominação não se tem mais a mesma coisa. Sabe-se a história desse impertinente de Roma que dava bofetadas em todas as pessoas que encontrava, e lhes fazia apresentar os vinte e cinco soldos da Lei das Doze Tábuas. Quando, numa lei, foram fixadas as ideias das coisas, não é preciso recorrer a expressões vagas. Na ordenação criminal de Luís XIV, após ter feito a enumeração exata desses casos reais, são acrescentadas estas palavras: "E aqueles que os juízes reais sempre julgaram"; o que faz voltar ao arbitrário de que se acabava de sair. Diz Carlos VII ter notícias de que as partes apelam três, quatro e seis meses depois do julgamento, contra o costume do reino em país consuetudinário: ordena que se apelará incontinenti, a menos que tenha havido fraude ou dolo do procurador ou que haja grande e evidente causa para dispensar o apelante. O fim desta lei destrói o começo; e ela o destrói tão bem, que depois disso apelaram durante trinta anos. A lei dos lombardos não permite que uma mulher que haja tomado hábito de religiosa, embora não seja ainda consagrada, possa casar-se, "porque", diz ela, "se um esposo que se comprometeu com uma mulher somente por um anel não pode, sem crime, desposar outra, com mais forte razão, a esposa de Deus ou da Santa Virgem..." Digo que, nas leis, é preciso raciocinar da realidade para a realidade, e não da realidade para a abstração, ou da abstração para a realidade. Uma lei de Constantino quer que só o testemunho do bispo baste, sem ouvir outras testemunhas. Este príncipe escolhia um caminho bem curto; julgava as questões pelas pessoas, e as pessoas pelas dignidades. As leis não devem ser sutis; elas são feitas para pessoas de entendimento medíocre: não são uma obra de lógica, mas a razão simples de um pai de família. Quando, numa lei, as exceções, limitações, modificações não são necessárias, mais vale não colocá-las. Semelhantes pormenores inspiram novos pormenores. É preciso não fazer modificação numa lei sem razão suficiente. Justiniano ordenou que um marido poderia ser repudiado, sem que a mulher perdesse seu dote, se durante dois anos ele não conseguira consumar o casamento. Modificou sua lei, e deu três anos ao pobre Infeliz. Mas, em semelhante caso, dois anos valem três, e três não valem mais que dois. Quando se esforça tanto para dar razão a uma lei, é preciso que esta razão seja digna dela. Uma lei romana decide que um cego não pode pleitear, porque não vê os ornatos da magistratura. Só propositadamente se poderia apresentar uma razão tão má, quando se apresentavam tantas boas para isso. O jurisconsulto Paulo diz que a criança nasce perfeita no sétimo mês, e que a razão dos números de Pitágoras parece comprova-lo. É singular que se julguem essas coisas pela razão dos números de Pitágoras. Alguns jurisconsultos franceses disseram que, quando o rei adquiria alguma região, as igrejas, aí, ficavam sujeitas ao direito de regalia, porque a coroa do rei é redonda. Não discutirei aqui os direitos do rei e se, neste caso, a razão da lei civil ou eclesiástica deve ceder à razão da lei política; mas direi que direitos tão respeitáveis devem ser defendidos com sentenças graves. Quem nunca viu apoiarem-se, sobre a imagem do signo de uma dignidade, os direitos reais desta dignidade? Dávila diz que Carlos IX foi declarado maior no parlamento de Ruão, mal entrara nos catorze anos, porque as leis querem que se conte o tempo momento por momento, quando se trata da restituição e da administração dos bens do pupilo: enquanto considera o ano começado como completo, quando se trata de adquirir honras. Não procuro censurar uma disposição que não parece ter tido inconvenientes até aqui; direi somente que a razão alegada pelo chanceler do Asilo não era a verdadeira: o governo dos povos está longe de ser apenas uma honra. Em caso de presunção, a da lei vale mais que a do homem. A lei francesa considera fraudulentos todos os atos praticados por um negociante nos dez dias que precederam sua falência: é a presunção da lei. A lei romana infligia penas ao marido que conservava sua mulher depois do adultério, a menos que ele não tivesse sido levado a isso pelo temor da ocorrência de um processo, ou por negligência de sua própria vergonha; e é presunção do homem. Era preciso que o juiz presumisse os motivos pela conduta do marido, e que ele se decidisse por uma maneira de pensar muito obscura. Quando o juiz presume, os julgamentos se tornam arbitrários; quando a lei presume, dá ao juiz uma regra fixa. A lei de Platão, como disse, queria que se punisse aquele que se matava não para evitar a ignomínia, mas por fraqueza. Esta lei era viciosa, pois, sendo este o único caso em que não se podia arrancar ao criminoso a confissão do motivo que o levara a agir, queria que o juiz decidisse sobre estes motivos. Como as leis inúteis enfraquecem as leis necessárias, as que podem ser eludidas enfraquecem a legislação. Uma lei deve ter seu efeito, e é preciso não permitir que seja derrogada por uma convenção particular. A lei Falcídia ordenava, entre os romanos, que o herdeiro tivesse sempre a quarta parte da herança: outra lei permite ao testador proibir o herdeiro de reter esta quarta parte: é se divertir com as leis. A lei Falcídia tornava-se inútil: porque, se o testador queria favorecer seu herdeiro, este não precisava da lei Falcídia; e, se ele não queria favorecê-lo, proibia-o de usar a lei Falcídia. É preciso atentar para que as leis sejam concebidas de maneira que não entrem em choque com a natureza das coisas. Na proscrição do Príncipe de Orange, Filipe II prometeu dar àquele que o matasse, ou aos herdeiros desse, vinte e cinco mil escudos e títulos de nobreza; e isto com palavra de rei e como servidor de Deus. A nobreza prometida por tal ação! Tal ação ordenada na qualidade de servidor de Deus! Tudo isso confunde as ideias de honra, de moral e de religião. É raro que seja necessário proibir uma coisa que não é má, sob pretexto de alguma perfeição que se imagina. É preciso nas leis certa candura. Feitas para punir a maldade dos homens, elas mesmas devem ter a maior inocência. Pode-se ver na lei dos visigodos essa petição ridícula pela qual se obrigou os judeus a comerem todas as coisas preparadas com carne de porco, contanto que eles não comessem a própria carne de porco. Era uma grande crueldade: eram submetidos a uma lei contrária à deles; não se deixava que conservassem sua própria lei, o que podia ser um sinal para serem reconhecidos. CAPÍTULO XVII MANEIRA PREJUDICIAL DE FAZER LEIS Os imperadores romanos manifestavam, como nossos príncipes, suas vontades através de decretos e de editos; mas, coisa que nossos príncipes não fazem, eles permitiram que os juízes ou os particulares, em suas desavenças, os interrogassem por cartas; e suas respostas eram denominadas rescritos. As decretais dos papas são, propriamente falando, rescritos. Percebe-se que é uma má espécie de legislação. Os que assim pedem leis são maus guias para o legislador; os fatos são sempre mal expostos. Trajano, diz Júlio Capitolino, recusou frequentemente fazer rescritos dessa espécie, para que não se estendesse a todos os casos uma só decisão, e frequentemente um favor particular. Macrino havia resolvido abolir todos esses rescritos não podia suportar que fossem consideradas leis as respostas de Cômodo, de Caracala e de todos esses outros príncipes cheios de imperícia. Justiniano pensou de maneira diferente, e encheu delas a sua compilação. Eu queria que aqueles que leem as leis romanas distinguissem bem estas espécies de hipóteses dos senatus-consultos, dos plebiscitos, das constituições gerais dos imperadores, e de todas as leis baseadas na natureza das coisas, na fragilidade das mulheres, na fraqueza dos menores e na utilidade pública. CAPÍTULO XVIII DAS IDEIAS DE UNIFORMIDADE Há certas ideias de uniformidade que se apoderam algumas vezes dos grandes espíritos (pois impressionaram Carlos Magno), mas que chocam infalivelmente os pequenos espíritos. Esses encontram nelas uma espécie de perfeição que reconhecem, porque é impossível não descobri-la: os mesmos pesos na fiscalização, as mesmas medidas no comércio, as mesmas leis no Estado, a mesma religião em toda parte. Mas isso é sempre conveniente, sem exceção? O mal de mudar é sempre menor do que o mal de resignar-se? E não consiste a grandeza do gênio em melhor saber em que caso é preciso uniformidade, e em que caso são necessárias as diversidades? Na China, os chineses são governados pelo cerimonial chinês, e os tártaros pelo cerimonial tártaro: no entanto, é o povo do mundo que mais tem a tranquilidade como objetivo. Quando os cidadãos seguem as leis, que importa que sigam a mesma? CAPÍTULO XIX DOS LEGISLADORES Aristóteles queria satisfazer ora a sua inveja de Platão, ora a sua paixão por Alexandre. Platão era revoltado contra a tirania do povo de Atenas. Maquiavel estava obcecado pelo seu ídolo, o Duque de Valentinois. Thomas More, que falava mais do que havia lido e do que havia pensado, queria governar todos os Estados com a simplicidade de uma cidade grega. Arríngton não via senão a república da Inglaterra, enquanto uma multidão de escritores encontrava a desordem em toda parte em que não via coroa. As leis defrontam-se sempre com as paixões e os preconceitos do legislador. Algumas vezes passam através deles e por eles são manchadas; outras ficam entre eles e a eles se incorporam. LIVRO TRIGÉSIMO TEORIA DAS LEIS FEUDAIS ENTRE OS FRANCOS NA RELAÇÃO QUE TÊM COM O ESTABELECIMENTO DA MONARQUIA CAPÍTULO I DAS LEIS FEUDAIS ACREDITO QUE HAVERIA uma imperfeição em minha obra se deixasse em silêncio um acontecimento ocorrido uma vez no mundo, e que talvez não aconteça nunca mais; se não falasse dessas leis que vimos aparecer em determinado momento em toda a Europa, sem que tivessem nada com aquelas que se conheceram até então; dessas leis que provocaram bens e males infinitos; que deixaram direitos quando seu domínio cedeu; que, ao dar a muitas pessoas diversos tipos de senhorio sobre a mesma coisa ou sobre as mesmas pessoas, diminuíram o peso do senhorio inteiro; que colocaram diversos limites nos impérios demasiado extensos; que produziram a regra com uma inclinação para a anarquia, e a anarquia com uma tendência para a ordem e para a harmonia. Isso exigiria uma obra especial; mas, considerada a natureza desta, encontrar-se-ão nela mais essas leis como as considerei do que como as tratei. É um belo espetáculo o das leis feudais. Um carvalho antigo ergue-se; os olhos veem de longe sua folhagem; ele se aproxima, vê-se o seu tronco; mas não se percebem suas raízes: é preciso cavar a terra para encontra-las. CAPÍTULO II DAS ORIGENS DAS LEIS FEUDAIS Os povos que conquistaram o império romano haviam saído da Germânia. Embora poucos autores antigos nos tenham descrito seus costumes, temos dois deles que são de grande importância. César, guerreando contra os germanos, descreve os seus costumes; e é sobre esses costumes que ele pautou algumas de suas escaramuças. Certas páginas de César sobre este assunto são volumes. Tácito escreveu uma obra especial sobre os costumes dos germanos. Essa obra é curta: mas é a obra de Tácito, que abreviava tudo, porque tudo via. Esses dois autores concordam de tal modo acerca dos códigos das leis dos povos bárbaros que possuímos, que ao ler César e Tácito encontramos em toda parte esses códigos, e ao ler esses códigos encontramos em toda parte César e Tácito. De modo que, se na investigação das leis feudais vejo-me em um labirinto obscuro, cheio de caminhos e de voltas, creio que tenho a ponta do fio, e que posso caminhar. CAPÍTULO III DA ORIGEM DA VASSALAGEM César diz "que os germanos não se interessavam pela agricultura; que a maioria vivia de leite, queijo e carne; que ninguém tinha terras nem limites que lhe fossem próprios; que os príncipes e os magistrados de cada nação davam aos particulares a porção de terra que bem queriam, e no lugar em que queriam, e os obrigavam no ano seguinte a passá-la adiante". Tácito diz "que cada príncipe tinha um bando de pessoas que se ligavam a ele e o seguiam". Este autor que, em sua língua, lhes dá um nome que tem relação com sua situação, denomina-os companheiros. Havia entre eles uma emulação singular para obter alguma distinção junto ao príncipe, e uma mesma emulação entre os príncipes quanto ao número e a bravura de seus companheiros. "É", acrescenta Tácito, "a dignidade, é o poder de estar sempre cercados por uma multidão de jovens que se escolheram; é um adorno na paz, é um amparo na guerra. Tornam-se célebres em sua nação e entre os povos vizinhos, se superam os outros pelo número e pela coragem de seus companheiros; recebem presentes; as legações vêm de todas as partes. Frequentemente a reputação decide a guerra. No combate, é vergonhoso para o príncipe ser inferior em coragem; é vergonhoso para o bando não igualar-se ao príncipe em virtude; é uma infâmia eterna sobreviver a ele. O compromisso mais sagrado é o de defendê-lo. Se uma cidade está em paz, os príncipes vão para as que estão em guerra; é por isso que conservam grande número de amigos. Estes recebem deles o cavalo de combate e o terrível dardo. As refeições pouco delicadas, mas em quantidade, são uma espécie de soldo para eles. O príncipe não mantém suas dádivas senão pelas guerras e pelas rapinas. É mais difícil persuadi-los a lavrar a terra e esperar o outro ano do que a desafiar o inimigo e receber ferimentos; não adquirirão pelo suor o que podem obter pelo sangue." Assim, entre os germanos, havia vassalos, e não feudos. Não havia feudos, porque os príncipes não tinham terras para dar; ou, antes, os feudos eram cavalos de batalha, as armas, as refeições. Havia vassalos porque havia homens fiéis que estavam empenhados por sua palavra, que estavam engajados para a guerra, e que prestavam mais ou menos o mesmo serviço que fizeram depois para os feudos. CAPÍTULO IV CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO César diz que, "quando um príncipe declarava à assembleia que fizera um projeto de expedição, e pedia que o seguissem, aqueles que aprovavam o chefe e o empreendimento levantavam-se e ofereciam seu auxílio. Esses eram louvados pela multidão. Mas, se não cumpriam seu compromisso, perdiam a confiança pública e eram considerados desertores e traidores". O que diz César e o que dissemos no capítulo precedente é, segundo Tácito, o germe da história da primeira raça. Não se deve ficar admirado com o fato de os reis terem tido sempre, em cada expedição, novos exércitos a refazer, outros bandos a persuadir, novas pessoas a engajar; com o fato de ter sido necessário, para adquirir muito, despender muito; de terem adquirido sem cessar pela partilha da terra e pelos saques, e dado sem cessar essas terras e esses saques; de seu domínio ter aumentado continuamente e diminuir sem cessar; com o fato de um pai, que dava a um de seus filhos um reino, juntar sempre a ele um tesouro; de o tesouro do rei ser considerado necessário para a monarquia; e de um rei não poder, mesmo para o dote de suas filhas, dividir esse tesouro sem o consentimento dos outros reis. O funcionamento da monarquia dependia de molas que cumpria sempre reajustar. CAPÍTULO V DA CONQUISTA DOS FRANCOS Não é verdade que os francos, entrando na Gália, tenham ocupado todas as terras do país para convertê-las em feudos. Algumas pessoas assim pensaram, porque viram no fim da segunda raça quase todas as terras transformadas em feudos, em subfeudos, ou em dependências de um ou de outro; mas isso teve causas particulares que serão explica das em seguida. A consequência que se quis tirar disso, a de que os bárbaros fizeram um regulamento geral para estabelecer em toda parte a servidão da gleba, não é menos falsa que o princípio. Se, numa época em que os feudos eram amovíveis, todas as terras do reino tivessem sido feudos, ou dependências de feudos, e todos os homens do reino tivessem sido vassalos ou servos deles dependentes, como aquele que tem os bens sempre tem também o poder, o rei que houvesse continuamente disposto dos feudos, isto é, da única propriedade, teria tido um poder tão arbitrário quanto o do sultão da Turquia: o que subverte toda a história. CAPÍTULO VI DOS GODOS, DOS BORGUINHÓES E DOS FRANCOS As gálias foram invadidas pelas nações germânicas. Os visigodos ocuparam a Narbonésia e quase todo o Sul; os borguinhões estabeleceram-se na parte que dá para o Oriente; e os francos conquistaram quase todo o restante. Não se pode duvidar que esses bárbaros não tenham conservado, em suas conquistas, os costumes, as inclinações e os usos que tinham em seu país, porque uma nação não muda em um instante a maneira de pensar e agir. Esses povos, na Germânia, cultivavam pouco as terras. Parece, segundo Tácito e César, que se dedicavam muito à vida pastoril: também as disposições dos códigos das leis dos bárbaros giram quase todas em torno de rebanhos. Roricão, que escrevia história entre os francos, era pastor. CAPÍTULO VII DAS DIFERENTES MANEIRAS DE PARTILHAR AS TERRAS Tendo os godos e os borguinhões penetrado, sob diversos pretextos, no interior do império, os romanos, para deter suas devastações, foram obrigados a prover à subsistência deles. De início deram-lhes trigo; em seguida, preferiram dar-lhes terras. Os imperadores ou, em nome deles, os magistrados romanos fizeram convênios com eles, sobre a partilha do país, como vemos nas crônicas e nos códigos dos visigodos e dos borguinhões. Os francos não seguiram o mesmo plano. Não se encontra nas leis sálicas e ripuárias nenhum traço de semelhante divisão de terras. Haviam conquistado, tomaram o que lhes aprouve, e só estabeleceram regulamentos entre eles mesmos. Distingamos, portanto, o procedimento dos borguinhões e dos visigodos na Gália, o desses mesmos visigodos na Espanha, dos soldados auxiliares sob o reinado de Augústulo e Odoacro na Itália, daquele dos francos nas Gálias, e dos vândalos na África. Os primeiros concluíram convênios com os antigos habitantes, e, consequentemente, uma divisão de terras com eles; os segundos não fizeram nada disso. CAPÍTULO VIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO O que dá ideia da grande usurpação das terras dos romanos pelos bárbaros é encontrar-se, nas leis dos visigodos e dos borguinhões, que esses dois povos tiveram os dois terços das terras; mas esses dois terços só foram tomados em certos bairros, os quais foram destinados a eles. Diz Condebaldo, na lei dos borguinhões, que seu povo, em seu estabelecimento, recebeu dois terços das terras; e é dito, no segundo suplemento dessa lei, que não se daria mais que a metade àqueles que viessem para o país. Todas as terras não haviam, portanto, a princípio, sido divididas entre os romanos e os borguinhões. Encontram-se nos textos desses dois regulamentos as mesmas expressões; explicam-se portanto um pelo outro. E, como não se pode compreender o segundo como divisão universal de terras, não se pode também dar tal significação ao primeiro. Os francos agiram com a mesma moderação que os borguinhões; não despojaram os romanos em toda a extensão de suas conquistas. Que teriam feito de tantas terras? Apossaram-se daquelas que lhes convinham, e deixaram o resto. CAPÍTULO IX JUSTA APLICAÇÃO DA LEI DOS BORGUINHÕES E DA DOS VISIGODOS SOBRE A PARTILHA DAS TERRAS É preciso considerar que essas divisões não foram feitas por um espírito tirânico, mas com a ideia de prover às necessidades mútuas dos dois povos que deviam habitar o mesmo país. A lei dos borguinhões estabelece que cada borguinhão seja recebido como hóspede em casa de um romano. Isso está de acordo com os costumes dos germânicos, que, pela narrativa de Tácito eram o povo da terra que mais amava o exercício da hospitalidade. Estipula a lei que o borguinhão tenha os dois terços das terras, e o terço dos servos. Ela seguia o gênio dos dois povos, e conformava-se à maneira pela qual eles procuravam a própria subsistência. O borguinhão, que fazia pastar os rebanhos, tinha necessidade de muitas terras e de poucos servos; e o grande trabalho da cultura das terras exigia que o romano tivesse menos glebas, e maior número de servos. Os bosques eram divididos pela metade, porque as necessidades a esse respeito eram as mesmas. Vê-se, no código dos borguinhões, que cada bárbaro foi colocado na casa de cada romano. A divisão não foi, portanto, geral, mas o número de romanos que concederam a divisão foi igual ao dos borguinhões que a receberam. O romano foi lesado o menos possível. O borguinhão, guerreiro, caçador e pastor, não desdenhou aceitar terrenos incultos; o romano conservava as terras mais apropriadas para a agricultura; os rebanhos do borguinhão adubavam o campo do romano. CAPÍTULO X DAS SERVIDÕES Diz a lei dos borguinhões que, quando esses povos se estabeleceram nas Gálias, receberam os dois terços de terras e o terço de servos. A servidão da gleba estava portanto estabelecida em toda parte da Gália antes da entrada dos borguinhões. A lei dos borguinhões, ao estatuir sobre as duas nações, distingue formalmente, em uma e outra, os nobres, os ingênuos e os servos. A servidão não era portanto uma coisa particular para os romanos, nem a liberdade e a nobreza uma coisa particular para os bárbaros. Essa mesma lei diz que, se um liberto borguinhão não havia dado certa soma a seu dono, nem recebido uma terça porção de um romano, continuaria sendo considerado da família de seu dono. O romano proprietário era, portanto, livre, pois não estava na família de outro; era livre, pois sua terça porção era um sinal de liberdade. Basta abrir as leis sálicas e ripuárias, para ver que os romanos não viviam mais em servidão nem entre os francos nem entre os outros conquistadores da Gália. O Conde de Boulainvilliers falhou no ponto capital de seu sistema; não provou que os francos tenham feito um regulamento geral que colocasse os romanos numa espécie de servidão. Como sua obra foi escrita sem nenhuma arte, e como, nela, ele fala com aquela simplicidade, com aquela franqueza, e com aquela ingenuidade da antiga nobreza de que saiu, todos são capazes de julgar não só das belas coisas que diz como também dos erros em que incidiu. Por isso, não o examinarei. Direi apenas que possuía mais espírito do que luzes, mais luzes do que saber; mas esse saber não era desprezível, porque sabia muito bem as grandes coisas de nossa história e de nossas leis. O Conde de Boulainvilliers e o Abade Dubos fizeram, cada um, um sistema, dos quais um parece ser uma conjuração contra o Terceiro Estado, e o outro uma conjuração contra a nobreza. Quando o Sol deu a Faetonte seu carro para conduzir, disse-lhe: "Se você subir muito alto, queimará a morada celeste; se descer muito baixo, reduzirá a cinzas a terra. Não vá muito para a direita, cairá na constelação da Serpente; não vá muito para a esquerda, irá para a de Ara: conserve-se entre as duas". CAPÍTULO XI CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO O que deu a ideia de um regulamento geral, feito na época da conquista, é ter-se visto na França um número prodigioso de servidões no começo da terceira raça; e, como não se aperceberam da progressão contínua que se fez dessas servidões, imaginaram numa época obscura uma lei geral que nunca existiu. No começo da primeira raça, viu-se um número infinito de homens livres, seja entre os francos, seja entre os romanos; mas o número de servos aumentou de tal modo, que, no começo da terceira, todos os trabalhadores e quase todos os habitantes das cidades eram servos e, enquanto no começo da primeira raça havia nas cidades quase a mesma administração que entre os romanos, grupos da burguesia, um senado, os cursos de judicatura, não se encontram mais, no começo da terceira, senão um senhor e servos. Quando os francos, os borguinhões e os godos realizavam suas invasões, apossavam-se do ouro, do dinheiro, dos móveis, das vestes, dos homens, das mulheres, dos meninos, de que o exército podia encarregar-se; tudo era transportado em comum, e era dividido pelo exército. Todo o corpo da história prova que depois do primeiro estabelecimento, isto é, após as primeiras devastações, eles receberam os habitantes em capitulação, e lhes deixaram todos os direitos políticos e civis. Era o direito das gentes daqueles tempos; arrebatava-se tudo na guerra, concedia-se tudo na paz. Se isso não tivesse sido assim, como encontraríamos nós nas leis sálicas e borguinhãs tantas disposições à servidão geral dos homens? Mas o que a conquista não fez, o próprio direito das gentes, que subsistiu à conquista, o fez. A resistência, a revolta, o saque das cidades acarretavam a servidão dos habitantes. E como, além das guerras que as diferentes nações conquistadoras fizeram entre si, houve aquela particular entre os francos, as diversas divisões da monarquia fizeram nascer ininterruptamente guerras civis entre os irmãos ou sobrinhos, nas quais esse direito das gentes continuou a ser praticado, as servidões tornaram-se mais gerais na França do que nos outros países: e é, creio, uma das causas da diferença que há entre nossas leis francesas e as da Itália e da Espanha, sobre os direitos dos senhores. A conquista foi só questão de momento; e o direito das gentes que nela empregaram provocou algumas servidões. O uso do mesmo direito das gentes, durante muitos séculos, fez com que as servidões se estendessem prodigiosamente. Teodorico, crendo que os povos de Auvergne não lhe eram fiéis, fala de sua partilha aos francos: "Segui-me, eu vos levarei a uma região onde tereis ouro, prata, escravos, vestes, rebanhos em abundância; e transferireis todos os homens para o vosso país". Depois da paz que se fez entre Gontrão e Chilperico, aqueles que sitiavam Burges, tendo tido ordem de voltar, levaram consigo tanto saque, que não deixaram quase no país nem homens nem rebanhos. Teodorico, rei da Itália, cujo espírito e cuja política eram sempre de distinguir-se dos outros reis bárbaros, ao enviar seu exército para a Gália, escreveu ao general: "Quero que sejam seguidas as leis romanas, e que vós entregueis os escravos fugitivos aos seus donos; o defensor da liberdade não deve favorecer o abandono da servidão. Que os outros reis se divirtam com a pilhagem e a destruição das cidades por eles tomadas: nós queremos vencer de maneira que nossos súditos se lastimem de ter adquirido tão tarde a sujeição. E claro que ele queria tornar odiosos os reis francos e borguinhões, e que fazia alusão ao direito das gentes desses povos. Esse direito subsistiu na segunda raça. Tendo o exército de Pepino entrado na Aquitânia, voltou para a França carregado de um número infinito de despojos e de servos, dizem os Anais de Metz. Poderei citar inúmeras autoridades. E como, nessas desgraças, as entranhas da caridade se comoveram; como muitos santos bispos, vendo os cativos presos dois a dois, empregaram o dinheiro das igrejas, e até venderam os vasos sagrados para comprar os que eles pudessem; como santos monges empenharam-se nisso, é na vida dos santos que se encontram os maiores esclarecimentos sobre esse assunto. Embora se possa censurar aos autores dessas vidas por terem sido algumas vezes um pouco crédulos demais sobre as coisas que Deus certamente fez, uma vez que estavam na ordem de seus desígnios, não se deixa de extrair grandes luzes sobre os costumes e os usos daqueles tempos. Quando se lançam os olhos sobre os monumentos de nossa história e de nossas leis, parece que tudo é mar, e que até as praias faltam ao mar. Todos esses escritos frios, secos, insípidos e duros, é preciso lê-los: é preciso devorá-los, como a fábula diz que Saturno devorava as pedras. Uma infinidade de terras a que os homens livres davam valor transformaram-se em terras de mão-morta. Quando um país se viu privado de homens livres que o habitavam, os que tinham muitos servos tomaram grandes territórios ou conseguiram sua cessão e aí construíram aldeias, como se vê em diversas chartas. Por outro lado, os homens livres que cultivavam as artes viram-se convertidos em servos que deviam exercê-las; as servidões restituíam às artes e à lavoura o que lhes haviam tirado. Tornou-se comum os proprietários de terras doarem-nas às igrejas para aforarem-nas eles próprios, acreditando participar assim, pela servidão, da santidade das igrejas. CAPÍTULO XII COMO AS TERRAS DA PARTILHA DOS BÁRBAROS NÃO PAGAVAM TRIBUTOS Os povos simples, pobres, livres, guerreiros, pastores, que viviam sem indústria, e que não se ligavam às suas terras senão pelos casebres de junco seguiam os chefes para conseguir despojos e não para pagar ou levantar tributos. A arte da cobrança ilegal de impostos é sempre inventada tarde demais, e quando os homens começam a desfrutar da felicidade das outras artes. O tributo passageiro de um quarto de vinho por arpente, que foi uma das medidas vexatórias de Chilperico e de Fredegondo, só concerniu aos romanos. Com efeito, não foram os francos que destruíram listas dessas taxas, mas os eclesiásticos que, naqueles tempos, eram todos romanos. Esse tributo afligiu principalmente os habitantes das cidades; ora, quase todas as cidades eram habitadas por romanos. Gregório de Tours conta que, após a morte de Chilperico, certo juiz foi obrigado a refugiar-se em uma igreja, por ter, sob o reinado desse príncipe, submetido a tributos certos francos que, no tempo de Childeberto, eram ingênuos: Muitos de Francis, qui, tempore Childeberti regis, ingenui fuerant, publico tributo subegit. Portanto, os francos, que não eram servos, não pagavam tributos. Não há gramático que não empalideça ao ver como essa passagem foi interpretada pelo Abade Dubos. Observa ele que, naqueles tempos, os libertos eram chamados também ingênuos. Baseando-se nisso, interpreta a palavra latina ingenui por estas palavras: livres de tributos; expressão de que nos podemos servir no idioma francês, como se diz livre de preocupações, livre de penas; mas, na língua latina, ingenui a tributis, libertini a tributis, manumissi tributorum seriam expressões monstruosas. Partênio, diz Gregório de Tours, pensou ser condenado à morte pelos francos por lhes haver imposto tributos. O Abade Dubos, premido por essa passagem, supõe friamente o que está em questão: era, diz ele, uma sobrecarga. Vê-se, na lei dos visigodos, que, quando um bárbaro ocupava a gleba de um romano, o juiz o obrigava a vendê-la, para que essa gleba continuasse a ser tributária: portanto, os bárbaros não pagavam tributos sobre as terras. O Abade Dubos, necessitando que os visigodos pagassem tributos, abandona o sentido literal e espiritual da lei, e imagina, unicamente porque ele imagina que houve entre o estabelecimento dos godos e esta lei um aumento de tributos, que só concernia aos romanos. Mas só é permitido ao Padre Hardouin exercer assim, sobre os fatos, um poder arbitrário. O Abade Dubos vai buscar no código de Justiniano leis para provar que os privilégios militares entre os romanos eram sujeitos a tributos: donde conclui que o mesmo acontecia com os feudos ou com os benefícios entre os francos. Mas a opinião segundo a qual nossos feudos deduzem sua origem desse estabelecimento dos romanos está hoje proscrita: ela só teve crédito nos tempos em que se conhecia a história romana e bem pouco a nossa, e em que nossos monumentos antigos estavam enterrados na poeira. O Abade Dubos errou em citar Cassiodoro, e em empregar o que se passava na Itália e na parte da Gália submetida a Teodorico, para nos ensinar o que estava em uso entre os francos; são coisas que é preciso não confundir. Mostrarei, algum dia, numa obra particular, que o plano da monarquia dos ostrogodos era inteiramente diferente do plano de todas as que foram fundadas naqueles tempos pelos outros povos bárbaros, e que, longe de se poder dizer que uma coisa estava em uso entre os francos, porque ela o estava entre os ostrogodos, tem-se, pelo contrário, um justo motivo para pensar que uma coisa que se praticava entre os ostrogodos não se praticava entre os francos. O que mais custa àqueles cujo espírito flutua numa vasta erudição é procurar suas provas onde elas não são estranhas ao assunto, e encontrar, para falar como os astrônomos, o lugar do sol. O Abade Dubos abusa tanto das capitulares como da história e das leis dos povos bárbaros. Quando quer que os francos tenham pago tributos, aplica a homens livres o que só pode ser compreendido para os servos; quando quer falar de sua milícia, aplica aos servos o que só podia concernir aos homens livres. CAPÍTULO XIII QUAIS ERAM OS TRIBUTOS DOS ROMANOS E DOS GAULESES NA MONARQUIA DOS FRANCOS Eu poderia examinar se os romanos e os gauleses vencidos continuaram a pagar os tributos aos quais estavam sujeitos sob os imperadores. Mas, para ir mais depressa, contentar-me-ei em dizer que, se eles os pagaram no começo, logo foram isentos deles, e que esses tributos foram transformados num serviço militar; e confesso que não concebo como os francos que haviam sido, de início, tão amigos do imposto ilegal puderam, de repente, parecer tão afastados dele. Uma capitular de Luis, o Bonacheirão, explica-nos muito bem a situação em que estavam os homens livres na monarquia dos francos. Alguns bandos de godos ou de iberos, fugindo à opressão dos mouros, foram recebidos nas terras de Luís. A convenção estabelecida com eles declara que, como os outros homens livres, eles iriam para o exército com seu conde; que, na marcha, fariam a guarda e as patrulhas sob as ordens do mesmo conde, e que dariam aos enviados do rei, e aos embaixadores que partissem de sua corte ou lá fossem ter, cavalos e carretas para os carros; que fora disso não poderiam ser coagidos a pagar outra cota de imposto, e que seriam tratados como os outros homens livres. Não se pode dizer que esses fossem novos usos introduzidos nos começos da segunda raça; isso devia pertencer pelo menos ao meio ou ao fim da primeira. Uma capitular do ano de 864 diz expressamente que era um costume antigo o de os homens livres fazerem o serviço militar, e pagarem ainda os cavalos e os carros de que falamos; tributos que lhes eram particulares, e dos quais os que possuíam os feudos estavam isentos, como provarei em seguida. E não é tudo; havia um regulamento que nunca permitia submeter homens livres a tributos. Quem tinha quatro solares era sempre obrigado a ir para a guerra; quem só tinha três era juntado a um homem livre que só possuía um; este o custeava por um quarto, e ficava em casa dele. Reuniam-se do mesmo modo dois homens livres, os quais tinham cada um dois solares; aquele dos dois que ia para a guerra era custeado da metade pelo que ficava. E há mais; temos uma infinidade de chartas em que se concedem privilégios de feudo às terras ou distritos possuídos por homens livres, e de que muito falarei em seguida. Isentaram-se essas terras de todos os tributos que sobre elas exigiam os condes e outros oficiais do rei; e, como são particularmente enumerados todos esses tributos, como não se trata, aí, de tributos, é evidente que não os arrecadavam. Era natural que a arrecadação ilegal romana caísse por si mesma na monarquia dos francos; era uma arte muito complicada que não penetrava nem nas ideias nem nos planos desses povos simples. Se os tártaros inundassem hoje a Europa, requeria muito trabalho fazê-los compreender o que é, entre nós, um financeiro. O autor desconhecido da Vida de Luís, o Bonacheirão, falando dos condes e dos outros oficiais do povo franco que Carlos Magno estabeleceu na Aquitânia, diz que lhes deu a guarda da fronteira, o poder militar e a intendência dos domínios que pertenciam à Coroa. Isso revela a situação dos rendimentos do príncipe na segunda raça. O príncipe conservara domínios, que valorizava graças aos seus escravos. Mas as convocações, a taxa individual e outros impostos arrecadados no tempo dos imperadores sobre a pessoa ou os bens dos homens livres haviam sido trocados por uma obrigação de guardar a fronteira ou de ir para a guerra. Vê-se, na mesma história, que Luís, o Bonacheirão, tendo ido encontrar seu pai na Alemanha, perguntou-lhe como podia ser tão pobre, ele que era rei: e que Luís respondeu-lhe que era rei só de nome, e que os senhores retinham quase todos os seus domínios; que Carlos Magno, temendo que este jovem príncipe perdesse a dedicação daqueles senhores, se retomasse para si o que doara irrefletidamente, enviou-lhe delegados para que restabelecessem as coisas. Os bispos, escrevendo a Luís, irmão de Carlos, o Calvo, diziam-lhe: "Cuidai de vossas terras, para que não sejais obrigado a viajar incessantemente para as casas dos eclesiásticos, e a fatigar seus servos por causa dos carros". "Fazei de modo", diziam ainda, "que tenhais de que viver e onde receber embaixadas." É evidente que, nessa época, os rendimentos dos reis consistiam em seus domínios. CAPÍTULO XIV DO QUE DENOMINAVAM CENSUS Quando os bárbaros saíram de seu país, quiseram redigir por escrito seus usos; mas, como encontraram dificuldade em escrever as palavras germânicas com letras romanas, fizeram essas leis em latim. Na confusão da conquista e de seus progressos, a maioria das coisas mudou de natureza; foi preciso, para exprimi-las, servir-se de antigas palavras latinas que tinham mais relação com os novos usos. Assim, ao que podia despertar a ideia da antiga quota de imposto dos romanos, chamaram de census, tributum; e, quando as coisas não tinham nenhuma relação, exprimiam, como se podia, as palavras germânicas com as letras romanas: assim, formaram a palavra fredum, da qual falarei mais nos capítulos seguintes. Tendo as palavras census e tributum sido assim empregadas de uma maneira arbitrária, isso lançou alguma obscuridade na significação que elas tinham na primeira e na segunda raça; e autores modernos, que tinham sistemas particulares, encontrando essa palavra nos escritos daqueles tempos, pensaram que o que se chamava census era precisamente o imposto dos romanos; e tiraram disso a consequência de que nossos reis das duas primeiras raças se haviam colocado no lugar dos imperadores romanos, e não tinham modificado nada em sua administração. E como certos direitos cobrados na segunda raça foram, por alguns acasos e certas modificações, convertidos em outros, disso concluíram que esses direitos eram o tributo dos romanos: e como, a partir dos regulamentos modernos, viram que o domínio da coroa era absolutamente inalienável, disseram que esses direitos, que representavam o tributo dos romanos e que não formam senão uma parte desse domínio, eram puras usurpações. Não discorrerei sobre as outras consequências. Transportar para séculos remotos todas as ideias do século em que se vive é, das fontes de erro, a mais fecunda. A essas pessoas que querem tomar modernos todos os séculos antigos, direi o que os sacerdotes do Egito disseram a Sólon: "Ó atenienses! Vós não passais de crianças". CAPÍTULO XV COMO O QUE SE DENOMINAVA CENSUS ERA ARRECADADO APENAS DOS SERVOS, E NÃO DOS HOMENS LIVRES. O rei, os eclesiásticos e os senhores arrecadavam tributos regulamentados, cada um sobre os servos de seus domínios. Provo isso, com respeito ao rei, pela capitular De Villis; com respeito aos eclesiásticos, pelos códigos das leis dos bárbaros; com respeito aos senhores, pelos regulamentos que Carlos Magno estabeleceu a esse respeito. Esses tributos eram chamados census: eram direitos econômicos e não fiscais; foros unicamente privados, e não tributos públicos. Digo que o que denominavam census era um tributo arrecadado aos servos. Provo-o por uma fórmula de Marculfo, que contém uma permissão do rei para tornar-se clérigo, contanto que se fosse ingênuo e que não se fosse inscrito no registro de tributação. Provo-o ainda por uma incumbência que Carlos Magno deu a um conde que enviou às regiões do Saxe; ela contém a isenção dos saxões porque esses tinham abraçado o cristianismo; e é propriamente uma charta de ingenuidade. Esse príncipe restabeleceu-lhes a primeira liberdade civil e isentou-os de pagar o tributo. Era portanto a mesma coisa ser servo e pagar tributo e ser livre e não pagá-la. Por uma espécie de cartas-patentes do mesmo príncipe em favor dos espanhóis que haviam sido recebidos na monarquia, foi proibido aos condes exigir deles algum tributo, e tirar-lhes as terras. Sabe-se que os estranhos que chegavam à França eram tratados como servos; e Carlos Magno, querendo que eles fossem considerados homens livres, pois queria que tivessem a propriedade de suas terras, proibiu que lhes exigissem o tributo. Uma capitular de Carlos, o Calvo, feita em favor dos mesmos espanhóis, quer que esses sejam tratados como os outros francos, e proíbem que se exija deles o tributo; portanto os homens livres não o pagavam. O artigo 30 do edito de Pistes reforma o abuso pelo qual muitos colonos do rei ou da Igreja vendiam as terras dependentes de seus solares aos eclesiásticos ou às pessoas de sua condição, e não reservavam para si senão uma pequena cabana: de maneira que não podia mais ser pago pelo tributo; e foi ordenado que se restabelecessem as coisas ao seu primeiro estado: o tributo era, pois, um tributo de escravos. Segue-se disso ainda que não havia tributo geral na monarquia; e isso é claro por um grande número de textos. Pois o que significaria esta capitular: "Queremos que se exija o tributo real em todos os lugares em que outrora o exigiam legitimamente"? O que quereria dizer aquela capitular em que Carlos Magno ordena aos seus enviados nas províncias que façam uma busca exata de todos os tributos que tinham antigamente sido do domínio do rei, e a outra em que prescreve os tributos pagos por aqueles de quem são exigidos? Que significação dar a esta outra capitular em que se lê: "Se alguém adquiriu uma terra tributária da qual estávamos acostumados a arrecadar tributo"? E a esta outra enfim em que Carlos, o Calvo, fala das terras tributadas cujo censo havia pertencido ao rei desde a mais remota antiguidade? Notai que há alguns textos que de início parecem contrários ao que eu disse, e que no entanto o confirmam. Viram acima que os homens livres na monarquia só eram obrigados a fornecer certos carros. A capitular que acabo de citar denomina isto census, e opõe ao tributo que era pago pelos servos. Além do mais, o edito de Pistes fala desses homens francos que deviam pagar o tributo real por cabeça e por cabana, e que se haviam vendido durante a fome. O rei quis que eles fossem resgatados. É que aqueles que estavam libertos por cartas do rei não adquiriam comumente uma liberdade plena e inteira mas sim pagavam censum in capite, e é desse tipo de pessoas que se fala aqui. É preciso então desfazer-se da ideia de um tributo geral e universal, derivado da fiscalização dos romanos, do qual supõe-se terem-se os direitos dos senhores derivado igualmente, por usurpações. O que denominavam tributo na monarquia francesa, independentemente do abuso que se fez dessa palavra, era um direito particular arrecadado dos servos pelos donos. Peço ao leitor que me perdoe o mortal aborrecimento que tantas citações devem-lhe dar: seria mais sucinto se não encontrasse sempre diante de mim o livro do Estabelecimento da Monarquia Francesa nas Ga1ias, do Abade Dubos. Nada retarda mais o progresso dos conhecimentos do que uma obra má de um autor célebre, porque cumpre, antes de ensinar, começar por dissipar o erro. CAPÍTULO XVI DOS LEUDOS OU VASSALOS Falei desses voluntários que, entre os germânicos, seguiam os príncipes em seus cometimentos. O mesmo uso foi conservado depois da conquista. Tácito designa-os pelo nome de companheiros; a lei sálica pelo de homens que estão sob a fé do rei; as fórmulas de Marculfo pelo de antrustiões do rei nossos primeiros historiadores pelo de leudos, de fiéis, e os seguintes pelo de vassalos e senhores. Encontra-se nas leis sálicas e ripuárias um número infinito de disposições para os francos, e somente algumas para os antrustiões. As disposições sobre esses antrustiões são diferentes daquelas feitas para os outros francos; regulamentam aí os bens dos francos, e não dizem nada dos bens dos antrustiões: o que decorre de que os bens destes regulamentam-se mais pela lei política do que pela lei civil, e que eles eram a sorte de um exército e não o patrimônio de uma família. Os bens reservados para os leudos foram denominados bens fiscais, benefícios, honras, feudos, nos diversos autores e nos diversos tempos. Não se pode duvidar que de início os feudos não eram amovíveis. Vê-se, em Gregório de Tours, que tiraram de Sunegisilo e de Galomão tudo o que eles retinham do fisco, e que não lhes deixaram senão o que eles tinham em propriedade, Gontrão, ao subir ao trono seu sobrinho Childeberto, teve uma conferência secreta com ele, e indicou-lhe aqueles a quem ele devia dar feudos, e aqueles de quem devia tira-los. Em uma fórmula de Marculfo, o rei dá em troca não somente benefícios que seu fisco retinha, mas ainda aqueles que outro havia retido. A lei dos lombardos opõe os benefícios à propriedade. Os historiadores, as fórmulas, os códigos dos diferentes povos bárbaros, todos os monumentos que nos restam, são unânimes. Enfim, os que escreveram o livro dos feudos ensinam-nos que, de início, os senhores puderam roubá-los à vontade e que, em seguida, eles lhes asseguraram por um ano, dando-lhes depois para toda a vida. CAPÍTULO XVII DO SERVIÇO MILITAR DOS HOMENS LIVRES Duas espécies de pessoas eram retidas no serviço militar: os leudos vassalos ou subvassalos, que a isso estavam obrigados em consequência de seu feudo; e os homens livres, francos, romanos e gauleses, que serviam o conde e eram comandados por ele e por seus oficiais. Denominavam-se homens livres os que, de um lado, não tinham benefícios ou feudos, e que, de outro lado, não estavam submetidos à servidão da gleba; as terras que eles possuíam eram o que se denominava terras alodiais. Os condes reuniam os homens livres e os levavam à guerra: tinham como subalternos oficiais aos quais chamavam vicários; e, como todos os homens livres estavam divididos em centenas, que formavam o que se denominava burgo, os condes tinham ainda sob sua ordem oficiais denominados centuriões, que levavam os homens livres do burgo, ou suas centúrias, para a guerra. Essa divisão por centúrias é posterior ao estabelecimento dos francos nas Gálias. Ela foi feita por Clotário e Childeberto, com a intenção de obrigar cada distrito a responder pelos roubos que se faziam aí: vê-se isso nos decretos desses príncipes. Semelhante fiscalização observa-se ainda hoje na Inglaterra. Como os condes levavam os homens livres para a guerra, os leudos também levavam seus vassalos ou subvassalos; e os bispos, abades ou seus procuradores levavam os respectivos vassalos. Os bispos ficavam bastante embaraçados: não convinha que eles próprios realizassem tais ações. Pediram a Carlos Magno que não mais os obrigasse a ir para a guerra; e, quando o conseguiram, queixaram-se de que isso lhes fazia perder a consideração pública: e esse príncipe foi obrigado a justificar suas intenções a esse respeito. Como quer que seja, não vejo como, nos tempos em que eles não iam mais à guerra, seus vassalos eram a ela levados pelos condes; vê-se ao contrário que os reis ou os bispos escolhiam um dos fiéis para conduzir os demais. Em uma capitular de Luís, o Bonacheirão, o rei distingue três espécies de vassalos: os do rei, os dos bispos, os do coride. Os vassalos de um leudo ou senhor não eram levados para a guerra pelo conde, a não ser quando algum emprego na casa do rei impedisse os leudos de conduzi-los eles mesmos. Mas quem levava os leudos à guerra? Não se pode pensar que fosse o rei, o qual ficava sempre à testa de seus fiéis. É por isso que, nas capitulares, vê-se sempre uma oposição entre os vassalos do rei e os dos bispos. Nossos reis, corajosos, altivos e magnânimos, não estavam no exército para poder manter-se à testa dessa milícia eclesiástica; não eram essas pessoas que eles escolhiam para vencer ou morrer com eles. Mas esses leudos levavam igualmente seus vassalos e subvassalos; e isto bem se revela nessa capitular, onde Carlos Magno ordena que todo homem livre que possuir quatro solares, quer em sua propriedade, quer no benefício de alguém, dirija-se contra o inimigo, ou siga seu senhor. É evidente que Carlos Magno quer dizer que quem não tivesse terra própria entrava na milícia do conde e que quem possuísse um benefício do senhor partia com ele. Contudo, o Abade Dubos pretende que, quando se fala, nas capitulares, dos homens que dependiam de um senhor particular, trata-se somente dos servos: e baseia-se na lei dos visigodos, e na prática desse povo. Seria preferível fundamentar-se nas próprias capitulares. A que acabo de citar diz formalmente o contrário. O tratado entre Carlos, o Calvo, e seus irmãos fala igualmente dos homens livres, que podem escolher à vontade um senhor ou o rei, e essa disposição está em conformidade com muitas outras. Pode-se dizer, portanto, que havia três espécies de milícias: a dos leudos ou fiéis do rei, que tinham, por seu turno, outros fiéis sob sua dependência; a dos bispos ou outros eclesiásticos, com seus vassalos; e finalmente a do conde, que conduzia os homens livres. Não digo que os vassalos não pudessem ser submetidos ao conde, como os que têm um comando particular dependem de outro que tem um comando mais geral. Vê-se mesmo que o conde e os enviados do rei podiam obriga-los a pagar o bando, isto é, uma multa, quando não houvessem cumprido os compromissos de seu feudo. Da mesma maneira, se os vassalos do rei praticavam rapinas, eram submetidos à punição do conde, se não preferissem submeter-se à do rei. CAPÍTULO XVIII DO DUPLO SERVIÇO Era um princípio fundamental da monarquia que os que estavam sob a autoridade militar de alguém estavam consequentemente sob sua jurisdição civil; também a capitular de Luís, o Bonacheírão, do ano 815, faz que andem pari passu o poder militar do conde e sua jurisdição civil sobre os homens livres; igualmente os pleitos do conde, que conduzia à guerra os homens livres, eram denominados pleitos dos homens livres, do que resultou sem dúvida essa máxima segundo a qual apenas nos pleitos do conde, e não nos de seus oficiais, é que se podiam julgar as questões sobre a liberdade. Também o conde não conduzia à guerra os vassalos dos bispos ou abades, porque eles não estavam sob sua jurisdição civil; do mesmo modo, não conduzia ele os subvassalos dos leudos; por isso, o glossário das leis inglesas nos diz que aqueles que os saxões denominavam copies foram chamados pelos normandos de condes, companheiros, porque partilhavam com o rei as multas judiciárias: igualmente vemos, em todos os tempos, que a obrigação de todo vassalo para com seu senhor foi a de portar armas e a de julgar seus pares em sua corte. Uma das razões que vinculavam assim o direito de justiça ao de conduzir à guerra era a de que aquele que levava à guerra fazia, ao mesmo tempo, pagar os direitos do fisco, que consistiam em obrigações de transporte devidas pelos homens livres, e, em geral, em certos direitos judiciários dos quais falarei a seguir. Os senhores tiveram o direito de fazer justiça em seu feudo, pelo mesmo princípio que delegou aos condes o direito de administrar justiça em seus condados; e, para bem dizer, os condados nas modificações ocorridas nos diversos tempos seguiram sempre as modificações sobrevindas nos feudos; uns e outros eram governados no mesmo plano e com as mesmas ideias. Em uma palavra, os condes em seus condados eram leudos; os leudos em suas senhorias eram condes. Não tiveram ideias justas os que consideraram os condes oficiais de justiça, e os duques oficiais militares. Uns e outros eram igualmente oficiais militares e civis; a única diferença é que o duque tinha sob sua autoridade muitos condes, embora tenha havido condes que não estiveram submetidos a nenhum duque, tal como nos ensina Fredegário. Julgar-se-á, talvez, que o governo dos francos era então muito rígido, pois os mesmos oficiais tinham, ao mesmo tempo, sobre os súditos, a autoridade militar e a autoridade civil, e mesmo a autoridade fiscal: coisa que disse, nos livros precedentes, ser uma das marcas distintivas do despotismo. Mas não se deve deduzir daí que os condes julgassem sozinhos, e fizessem justiça como os paxás a fazem na Turquia; reuniam, para julgar as questões, espécies de audiências ou sessões, para as quais eram convocados os notáveis. Para que se possa bem entender o que concerne aos julgamentos, nas fórmulas, nas leis dos bárbaros e nas capitulares, direi que as funções do conde, do gravião e do centurião eram as mesmas; que os juízes, os rachimburgos e os escabinos eram, sob nomes diferentes, as mesmas pessoas. Eram adjuntos do conde e comumente havia sete deles: e, como não era necessário menos de doze pessoas para julgar o conde preenchia o número com os notáveis. Mas quem quer que tivesse a jurisdição, o rei, o conde, o gravião, o centurião, os senhores, os eclesiásticos, nenhum deles julgava sozinho; e esse uso, que tinha sua origem nas florestas da Germânia, manteve-se ainda quando os feudos adquiriram nova forma. Quanto ao poder fiscal, ele era tal que o conde quase não podia abusar dele. Os direitos do príncipe com relação aos homens livres eram tão simples, que não consistiam, como disse, senão em certos carros exigidos em certas ocasiões públicas; e, quanto aos direitos judiciários, havia leis que preveniam as malversações. CAPÍTULO XIX DAS COMPOSIÇÕES ENTRE OS POVOS BÁRBAROS Como é impossível ir pouco além em nosso direito político, se não se conhecerem perfeitamente as leis e os costumes dos povos germanos, deter-me-ei por um momento, a fim de fazer a pesquisa desses costumes e dessas leis. Parece, segundo Tácito, que os germanos conheciam apenas dois crimes capitais: enforcavam os traidores e afogavam os covardes; eram entre eles os únicos crimes que seriam públicos. Quando um homem causava prejuízo a outro, os parentes da pessoa ofendida ou lesada entravam na querela; e o ódio aplacava-se com uma satisfação. Essa satisfação se dava àquele que fora ofendido, se pudesse recebê-la; e aos parentes, se lhes era comum a injúria ou o prejuízo; ou se, pela morte daquele que fora ofendido, ou lesado, lhes fosse destinada a satisfação. Da maneira como fala Tácito, tais satisfações se faziam por convenção recíproca entre as partes: daí por que, nos códigos dos povos bárbaros, tais satisfações se chamam composições. Encontro unicamente a lei dos frísios que deixava o povo na situação em que cada família inimiga se achava, por assim dizer, no estado natural e em que, sem ser coibida por alguma lei política ou civil, ela podia executar a vingança a seu talante, até que ficasse satisfeita. Mesmo essa lei foi moderada: fixou-se que aquele cuja vida se exigia teria paz em casa, tê-la-ia ao ir à igreja e ao voltar, e no lugar em que se faziam os julgamentos. Os compiladores das leis sálicas citam um antigo uso dos francos, pelo qual aquele que exumara um cadáver a fim de despojá-lo era banido da sociedade dos homens, até que os parentes consentissem em que voltasse; e, como antes desse tempo era proibido a toda gente, e mesmo à sua esposa, dar-lhe pão ou recebê-lo em casa, tal homem estava em relação aos outros e os outros estavam em relação a ele no estado natural, até que esse estado cessasse pela composição. Excetuado isso, vê-se que os sábios das diversas nações bárbaras pensaram em fazer por si mesmos o que era muito demorado e perigoso de esperar da convenção recíproca das partes. Cuidaram de pôr um preço justo à composição que devia receber aquele a quem se causara qualquer prejuízo ou injúria. Todas essas leis bárbaras apresentam a esse respeito uma admirável precisão: distinguem-se os casos com finura, pesam-se as circunstâncias, a lei coloca-se no lugar daquele que é ofendido, e pede para ele a satisfação que, num momento de sangue-frio, ele mesmo teria pedido. Foi mediante a elaboração de tais leis que os povos germânicos saíram desse estado natural em que se encontravam, ao que parece, ainda no tempo de Tácito. Rotaris declarou, na lei dos lombardos, que aumentara as composições do costume antigo para os ferimentos, a fim de que, sendo satisfeito o ferido, pudessem cessar as inimizades. Com efeito, tendo os lombardos, povo pobre, se enriquecido com a conquista da Itália, as composições antigas tornavam-se ínfimas, e não mais se faziam as reconciliações. Não duvido que esta consideração tenha obrigado os outros chefes das nações conquistadoras a constituir os diversos códigos de leis de que dispomos hoje. A principal composição era aquela que o assassino devia pagar aos parentes do morto. A diferença de condições implicava uma diferença nas composições: assim, a composição pela morte de um adalingo, nas leis dos anglos, era de seiscentos soldos, de duzentos pela de um homem livre, de trinta pela de um servo. A importância da composição estabelecida pela cabeça de um homem era, pois, uma de suas grandes prerrogativas; pois, além da distinção que fazia de sua pessoa, determinava para ele, entre nações violentas, uma maior segurança. A lei dos bávaros faz-nos sentir isso: ela dá o nome das famílias bávaras que recebiam uma composição dobrada, porque eram as primeiras após os Agilolfíngos. Os Agilolfingos eram da raça ducal e o duque era escolhido entre eles; tinham uma composição quádrupla. A composição para o duque excedia de um terço a que era fixada para os Agilolfingos. "Porque é duque", diz a lei, "rende-se-lhe mais honra do que a seus parentes." Todas essas composições eram estabelecidas a dinheiro. Mas como esses povos, sobretudo enquanto se mantiveram na Germânia, quase não dispunham de dinheiro, podia-se dar gado, trigo, móveis, armas, cães, aves de caça, terras etc. Amiúde a lei fixava mesmo o valor dessas coisas; o que explica como, com tão pouco dinheiro, houve entre eles tantas penas pecuniárias. Essas leis cogitaram de marcar com precisão a diferença dos prejuízos, das injúrias, dos crimes, a fim de que cada um conhecesse ao certo até que ponto era lesado ou ofendido; que soubesse exatamente a reparação que devia receber e, sobretudo, que não devia receber mais do que isso. Deste ponto de vista, concebe-se que aquele que se vingasse após ter recebido a reparação cometia um crime. Esse crime não continha menos uma ofensa pública do que uma ofensa particular; constituía um desprezo para com a própria lei. E foi tal crime que os legisladores não deixaram de punir. Havia outro crime que foi, principalmente, considerado perigoso, quando esses povos perderam no governo civil alguma coisa de seu espírito de independência e quando os reis cogitaram de introduzir no Estado uma melhor polícia; esse crime consistia em não querer de nenhum modo dar ou não querer receber a satisfação. Em diversos códigos das leis dos bárbaros vimos que os legisladores obrigavam a isso. Com efeito, quem se recusasse a receber a reparação desejava manter seu direito de vingança; quem se recusasse a fazê-la abandonava ao ofendido seu direito de vingança; e isso é que as pessoas prudentes haviam reformado nas instituições dos germanos, que convidavam à reparação, mas não a obrigavam. Falei de um texto da lei sálica, em que o legislador deixava à liberdade do ofendido receber ou não a reparação; é essa lei que proibia a quem despojara um cadáver o convívio dos homens, até que os parentes, aceitando a reparação, consentissem que poderia viver entre os homens. O respeito pelas coisas santas fez com que os que redigiram as leis sálicas não tocassem de modo algum no uso antigo. Teria sido contrário à justiça conceder uma reparação aos parentes de um ladrão morto no ato do roubo, ou aos de uma mulher que fora despedida após uma separação por crime de adultério. A lei dos bávaros não estabelecia composição para casos semelhantes e punia os parentes que procurassem vingança por isso. Não é raro encontrar nos códigos das leis dos bárbaros composições por ações involuntárias. A lei dos lombardos é quase sempre judiciosa; ordenava que em tal caso, se fizesse a composição segundo a generosidade, e que os parentes não pudessem procurar vingança. Clotário fez um decreto muito sábio; proibiu que quem fosse roubado recebesse sua composição em segredo e sem a ordem do juiz. Logo veremos o motivo de tal lei. CAPÍTULO XX DO QUE SE CHAMOU DEPOIS A JUSTIÇA DOS SENHORES Além da composição que se devia pagar aos parentes pelos assassínios, danos e injúrias, devia-se ainda pagar certo direito que os códigos das leis dos bárbaros chamam fredum. Falarei muito disso; e, para dar uma ideia, direi que se trata da recompensa da proteção concedida contra o direito de vingança. Ainda hoje, na língua sueca fred significa a paz. Entre essas nações violentas, administrar a justiça nada mais era que conceder, àquele que fizera uma ofensa, sua proteção contra a vingança daquele que a sofrera, e obrigar este último a receber a satisfação que lhe era devida; de sorte que, entre os germanos, diferentemente de todos os outros povos, a justiça se fazia para proteger o criminoso contra quem havia ofendido. Os códigos das leis dos bárbaros dão-nos os casos em que deviam ser exigidos esses freda. Naqueles em que os parentes não podiam vingar-se, não se dão freda; com efeito, onde não havia vingança, não podia haver direito de proteção contra vingança. Assim, na lei dos lombardos, se alguém matava por acaso um homem livre, pagava o valor do homem morto, sem o fredum; porque, tendo-o matado involuntariamente, não era o caso de terem os parentes direito de vingança. Assim, na lei dos ripuários, quando um homem era morto por um pedaço de madeira ou um instrumento feito pela mão do homem, o instrumento ou a madeira eram considerados culpados e os parentes tomavam-nos para seu uso, sem poder exigir o fredum. Da mesma forma, quando um animal matava um homem, a mesma lei fixava uma reparação sem o fredum, porque os parentes do morto não eram ofendidos. Finalmente, pela lei sálica, uma criança que cometesse alguma falta antes da idade dos doze anos pagava a composição sem o fredum; como ainda não podia carregar armas, não se enquadrava no caso em que a parte lesada ou seus parentes pudessem exigir vingança. Era o culpado que pagava o fredum, para a paz e a segurança que os excessos que cometera lhe haviam feito perder, e que podia recobrar mediante a proteção; mas uma criança não perdia essa segurança; não era um homem e não podia ser posta para fora da sociedade dos homens. Esse fredum era um direito local concedido àquele que julgava no território. A lei dos ripuários proibia, no entanto, que ele próprio o exigisse; ordenava ela que a parte que obtivera ganho de causa o recebesse e levasse ao fisco, a fim de que a paz, reza a lei, fosse eterna entre os ripuários. A importância do fredum era proporcional à importância da proteção; dessa maneira, o fredum pela proteção ao rei era maior do que o pago pela proteção ao conde e aos outros juízes. Já entrevejo o nascimento da justiça dos senhores. Os feudos compreendiam grandes territórios, como se nos afigura através de uma infinidade de monumentos. Já provei que os reis nada arrecadavam sobre as terras que pertenciam ao quinhão dos francos; muito menos podiam reservar-se direitos sobre os feudos. Os que os obtiveram gozaram, a este respeito, da mais ampla fruição; daí tiraram todos os frutos e todos os emolumentos; e, como um dos mais consideráveis eram os proveitos judiciários (freda) que se recebiam pelos usos dos francos, seguia-se que quem possuía o feudo tinha justiça, que se exercia tão somente pelas composições aos parentes e lucros pagos aos senhores. Nada mais era ela que o direito de exigir o pagamento das composições da lei e o de exigir as multas da mesma. Vê-se, pelas fórmulas que trazem a confirmação ou a translação perpétuas de um feudo em proveito de um leudo ou fiel, ou dos privilégios dos feudos em favor das igrejas, que os feudos tinham esse direito. Podemos ver isso também por uma infinidade de chartas que contêm uma proibição aos juízes ou oficiais do rei de entrar no território, a fim de aí cumprirem qualquer ato de justiça, e exigir qualquer emolumento de justiça que fosse. Desde que os juízes reais nada mais podiam exigir num distrito, não entravam mais nele; e as pessoas a quem restava esse distrito cumpriam as funções que os primeiros haviam desempenhado. Aos juízes reais era defeso obrigar as partes a pagarem fiança para que pudessem comparecer diante deles: cabia, portanto, ao que recebia o território a tarefa de exigi-la. Já se disse que os enviados do rei não poderiam mais exigir alojamento; na realidade, não tinham mais nenhuma função. A justiça era portanto, tanto nos feudos antigos quanto nos novos, um direito inerente ao próprio feudo, um direito lucrativo que dele fazia parte. É por isso que, em nossos tempos, foi ela considerada como tal; donde nasceu o princípio de que as justiças, em França, são patrimoniais. Alguns julgaram que as justiças tinham sua origem nas alforrias que os reis e os senhores concederam a seus servos. Mas as nações germanas, e as que delas descenderam, não foram as únicas a libertar os escravos; e foram as únicas a estabelecer justiças patrimoniais. Por outro lado, as fórmulas de Marculfo nos mostram homens livres dependendo dessas justiças nos primeiros tempos; portanto, os servos foram sujeitos à justiça, porque foram encontrados no território; e eles não deram origem aos feudos, por terem sido englobados no feudo. Outras pessoas tomaram um caminho mais curto: os senhores usurparam as justiças, disseram; e se disse tudo. Mas na terra só terá havido povos descendentes da Germânia que tenham usurpado os direitos dos príncipes? A história nos informa suficientemente que outros povos fizeram cometimentos contra seus soberanos; mas não se vê nascer o que se chamou as justiças dos senhores. Era, pois, no fundo dos usos e dos costumes dos germanos que importava buscar a sua origem. Peço verifiquem em Loyseau qual a maneira que ele supõe que usaram os senhores para formar e usurpar suas diversas justiças. Seria necessário que tivessem sido eles as pessoas mais refinadas do mundo, e que houvessem roubado, não como pilham os guerreiros, mas como roubam entre si os juízes de aldeia e procuradores. Seria preciso dizer que tais guerreiros, em todas as províncias particulares do reino, e em tantos reinos, teriam elaborado um sistema geral de política. Loyseau fá-los raciocinar como ele próprio raciocinava em seu gabinete. Direi mais: se a justiça não era uma dependência do feudo, por que se vê em toda parte que o serviço do feudo era servir ao rei ou ao senhor, tanto nas suas cortes quanto em suas guerras? CAPÍTULO XXI DA JUSTIÇA TERRITORIAL DAS IGREJAS As igrejas adquiriram bens bastante consideráveis. Vimos que os reis lhes outorgaram grandes fiscos, isto é, grandes feudos; e nos domínios das igrejas é que primeiro achamos as justiças estabelecidas. Donde teria originado um privilégio tão extraordinário? Estava na natureza da coisa dada; o bem dos eclesiásticos dispunha de tal privilégio, porque não lhe era tirado. Dava-se um fisco à igreja e abandonavam-lhe as prerrogativas que teria tido se tivesse sido dado a um leudo; por isso, esteve submetido ao serviço que dele tiraria o estado se o tivesse outorgado ao leigo, como já o vimos. As igrejas possuíam, portanto, o direito de solicitar o pagamento das reparações em seu território e de exigir-lhes o fredum; e, como tais direitos excediam necessariamente o de impedir os oficiais reais de entrar no território para reclamar esses freda e aí exercer todos os atos de justiça, o direito que tiveram os eclesiásticos de administrar a justiça em seu território se chamou imunidade, no estilo das fórmulas, das chartas e das capitulares. A lei dos ripuários proíbe aos libertos das igrejas participarem da assembleia, onde se administra a justiça, em outro lugar que não na igreja onde tenham sido alforriados. As igrejas exerciam, pois, justiça, mesmo sobre os homens livres, e realizavam seus pleitos desde os primeiros tempos da monarquia. Na Vida dos Santos encontro que Clóvis concedeu a um santo personagem o poder sobre um território com seis léguas na região e ordenou que ele ficasse livre de qualquer jurisdição. Acredito que isso constitui uma falsidade, mas trata-se de uma falsidade muito antiga; o fundamento da vida e as mentiras relacionam-se com os costumes e com as leis da época; e esses costumes e essas leis é que procuramos aqui. Clotário II ordena aos bispos e aos grandes que possuam terras em regiões afastadas que escolham no próprio local aqueles que devem administrar a justiça ou receber-lhe os emolumentos. O mesmo príncipe regulamenta a competência entre os juízes das igrejas e seus oficiais. A capitular de Carlos Magno, do ano 802, prescreve aos bispos e aos abades as qualidades que devem possuir seus oficiais de justiça. Outra, do mesmo príncipe, proíbe aos oficiais reais que exerçam qualquer jurisdição sobre os que cultivam as terras eclesiásticas, a não ser que tenham adquirido tal condição por fraude e para se subtrair aos encargos públicos. Os bispos, reunidos em Reims, declararam que os vassalos das igrejas estão incluídos em sua imunidade. A capitular de Carlos Magno, do ano 806, ordena que as igrejas tenham a justiça criminal e cível sobre todos os que habitam em seu território. Finalmente, a capitular de Carlos, o Calvo, faz distinção entre as jurisdições do rei, as dos senhores e as das igrejas; e nada mais direi a respeito. CAPÍTULO XXII DE COMO AS JUSTIÇAS ERAM FIXADAS ANTES DO FIM DA SEGUNDA RAÇA Já se disse que foi na desordem da segunda raça que os vassalos atribuíram a si mesmos a justiça em seus fiscos; preferiu-se fazer uma proposição geral a examiná-la; foi mais fácil dizer que os vassalos não possuíam nada, do que descobrir como possuíam. Mas as justiças não devem sua origem às usurpações; derivam do primeiro estabelecimento e não da sua corrupção. "Aquele que mata um homem livre", diz a lei dos bávaros, "pagará a composição a seus parentes, se ele os tiver; e, se não tiver, pagá-la-á ao duque, ou àquele a quem se recomendara em vida." Sabe-se o que era recomendar-se para um benefício. "Aquele de quem roubaram um escravo", reza a lei dos alemães, "irá ao príncipe a que está sujeito o raptor, a fim de que ele possa obter dele a composição”. "Se um centurião", lê-se num decreto de Chíldeberto, "encontra um ladrão em outra centúria que não a sua, ou nos limites de nossos fiéis, e não o expulsa daí, representará o ladrão, ou se purificará mediante juramento." Havia diferença, portanto, entre o território dos centuriões e dos fiéis. Este decreto de Childeberto explica a constituição de Clotário do mesmo ano, que, feita sobre o mesmo caso e sobre o mesmo fato, só difere em seus termos; a constituição chama in truste o que o decreto chama in terminis fidelium nostrorum. Os senhores Bignon e Du Cange, que acreditaram que in truste significava domínio de outro rei, não foram muito felizes na interpretação. Numa constituição de Pepino, rei da Itália, feita tanto para os francos quanto para os lombardos, este príncipe, após ter imposto penas aos condes e a outros oficiais reais que prevaricam no exercício da justiça, ou que demoram em administrá-la, ordena que, se ocorrer que um franco ou um lombardo que tenha um feudo não queira administrar a justiça, o juiz, em cujo distrito ele estiver, suspenderá o exercício de seu feudo; e que, nesse intervalo, o juiz ou seu enviado administrará a justiça. Uma capitular de Carlos Magno prova que os reis não arrecadavam em toda parte os freda. Outra do mesmo príncipe nos deixa ver as regras e o tribunal feudais já estabelecidos. Outra, de Luís, o Bonacheirão, ordena que, quando aquele que possui um feudo não administra justiça ou impede que ela seja administrada, se viva discretamente em sua casa até que seja feita a justiça. Citarei ainda duas capitulares de Carlos, o Calvo, uma de 861 em que se veem jurisdições particulares estabeleci das, dos juízes e dos oficiais sobre eles; a outra do ano 864, em que se faz a distinção entre suas próprias senhorias e as dos particulares. Não se dispõe de concessões originárias dos feudos, porque foram estabelecidos pela partilha que se sabe ter sido feita entre os vencedores. Portanto, não se pode provar, por contratos originários, que as justiças, inicialmente, tenham sido inerentes aos feudos. Mas se, nas fórmulas das confirmações ou das translações perpétuas desses feudos, encontra-se, como se disse, que a justiça estava aí estabelecida, era preciso que esse direito de justiça fosse da natureza do feudo e uma de suas principais prerrogativas. Temos maior número de monumentos que fixam a justiça patrimonial das igrejas em seu território, do que o temos para provar a dos benefícios ou feudos dos leudos ou fiéis, por dois motivos. Primeiro, porque a maior parte dos monumentos que nos restam foi conservada ou recolhida pelos monges para a utilidade de seus mosteiros. Segundo, porque, tendo sido formado o patrimônio das igrejas por concessões particulares, e uma espécie de derrogação à ordem estabelecida, eram necessárias chartas para isso; ao passo que, sendo as concessões feitas aos leudos consequências da ordem política, não se necessitava de ter, e muito menos de conservar, uma charta particular. Frequentemente, mesmo os reis contentavam-se com fazer uma simples tradição pelo cetro, como se verifica pela vida de São Mauro. Mas a terceira fórmula de Marculfo prova-nos sobejamente que o privilégio de imunidade, e por conseguinte o da justiça, era comum aos eclesiásticos e aos seculares, pois é feita tanto para uns como para os outros. Acontece o mesmo com a constituição de Clotário II. CAPÍTULO XXIII IDEIA GERAL DO LIVRO DO ESTABELECIMENTO DA MONARQUIA FRANCESA NAS GÁLIAS, PELO SENHOR ABADE DUBOS É OPORTUNO QUE, ANTES de terminar este livro, eu examine um pouco a obra do Sr. Abade Dubos, porque minhas ideias estão em perpétua oposição às suas; e porque, se ele encontrou a verdade, eu não a encontrei. Essa obra seduziu muita gente, porque é escrita com muita arte; porque se supõe aí eternamente o que se encontra em questão; porque, quanto mais faltam provas, mais se multiplicam as probabilidades; porque uma infinidade de conjecturas são apresentadas como princípios e daí se tiram como consequências outras conjecturas. O leitor esquece que duvidou para começar a acreditar. E, como se carrega com uma erudição sem fim, não no sistema, mas ao seu lado, o espírito é distraído por coisas acessórias e deixa de se ocupar do principal. Aliás, tantas pesquisas não nos permitem imaginar que nada tenhamos encontrado: a extensão da viagem faz crer que finalmente se chegou. Mas, quando se examina bem, depara-se com um colosso imenso que tem pés de barro; e porque os pés são de barro é que o colosso é imenso. Se o sistema do Sr. Abade Dubos tivesse tido bom alicerce, ele não teria sido obrigado a fazer três volumes mortais para prova-lo: teria encontrado tudo em seu assunto; e, sem ir procurar em todas as partes o que está muito longe dele, a própria razão ter-se-ia encarregado de colocar esta verdade na cadeia das outras verdades. A história e nossas leis ter-lhe-iam dito: "Não tenhais tanto trabalho: prestaremos testemunho por vós". CAPÍTULO XXIV CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO. REFLEXÃO SOBRE A ESSÊNCIA DO SISTEMA O sr. Abade Dubos quer eliminar toda espécie de ideia de que os francos tenham entrado nas Gálias como conquistadores; segundo ele, nossos reis, convocados pelos povos, nada mais fizeram que tomar o lugar e suceder aos direitos dos imperadores romanos. Essa pretensão não se pode aplicar ao tempo em que Clóvis, entrando nas Gálias, saqueou e tomou as cidades; não pode aplicar-se tampouco ao tempo em que derrotou Siágrio, oficial romano, e conquistou a região que este governava; só pode relacionar-se, pois, àquela época em que Clóvis, tornando-se senhor de grande parte das Gálias mediante a violência, teria sido designado pela escolha e pelo amor dos povos à dominação do resto do país. E não basta que Clóvis tenha sido recebido, cumpre que tenha sido convocado; cumpre que o Sr. Abade Dubos prove que os povos preferiram viver sob o domínio de Clóvis a viver sob a dominação dos romanos, ou sob suas próprias leis. Ora, os romanos desta parte das Gálias que ainda não fora invadida pelos bárbaros eram, de acordo com o Sr. Abade Dubos, de duas espécies: uns pertenciam à confederação armórica e haviam expulsado os oficiais do imperador, para se defenderem contra os bárbaros e se governarem por suas próprias leis; os outros obedeciam aos oficiais romanos. Ora, o Sr. Abade Dubos prova que os romanos, que ainda estavam sujeitos ao império, tinham convocado Clóvis? De nenhum modo. Prova que a república dos armóricos tenha convocado Clóvis, e feito mesmo alguns tratados com ele? De modo algum. Por mais longe que possa nos dizer qual foi o destino dessa república, ele não poderia mostrar-lhe a existência; e, embora siga-a desde o tempo de Honório até a conquista de Clóvis, embora relate com arte admirável todos os acontecimentos daqueles tempos, ela permaneceu invisível aos autores. Isso porque há muita diferença entre provar por uma passagem de Zósimo, que, sob o império de Honório, a região armórica e as outras províncias das Gálias se revoltaram e formaram uma espécie de república e fazer ver que, malgrado as diversas pacificações das Gálias, os armóricos sempre constituiram uma república particular, que subsistiu até a conquista de Clóvis. No entanto, para estabelecer seu sistema, teria necessidade de provas bem fortes e precisas. Pois, quando se vê um conquistador entrar num estado e submeter uma grande parte pela força e pela violência e se observa, algum tempo depois, o Estado inteiro submisso, sem que a história diga como aconteceu, tem-se um mui justo motivo para acreditar que a situação terminou da forma como começou. Uma vez falhado este ponto, é fácil ver que todo o sistema do Sr. Abade Dubos desaba completamente; e todas as vezes que ele tirar alguma consequência do princípio de que as Gálias não foram conquistadas pelos francos, mas que os francos foram chamados pelos romanos, sempre se poderá negá-la. O Sr. Abade Dubos prova seu princípio pelas dignidades romanas de que Clóvis foi investido; ele pretende que Clóvis tenha sucedido a Childerico, seu pai, no emprego de senhor da milícia. Esses dois cargos, porém, são puramente de sua criação. A carta de São Remi a Clóvis, na qual ele se baseia, não passa de uma felicitação pelo advento à coroa. Quando o objeto de um escrito é conhecido, por que atribui-lhe um que não o é? Clóvis, no fim de seu reinado, foi feito cônsul pelo Imperador Anastásio; mas que direito podia outorgar-lhe uma autoridade simplesmente anual? Há indícios, diz o Sr. Abade Dubos, de que, no mesmo diploma, o Imperador Anastásio tenha feito Clóvis pro cônsul. E, quanto a mim, direi que há possibilidade de que não o tenha feito. Sobre um fato de que não é fundado em nada, a autoridade de quem o nega é igual à autoridade de quem o alega. Tenho mesmo um motivo para tanto. Gregório de Tours, que fala do consulado, nada diz acerca do pro consulado. Este pro consulado somente teria sido de, aproximadamente, seis meses. Clóvis morreu um ano e meio após ter sido feito cônsul; não é possível transformar o pro consulado num cargo hereditário. Enfim, quando o consulado e, se quiserem, o pro consulado lhe foram outorgados, ele já era o senhor da monarquia e todos os seus direitos estavam estabelecidos. A segunda prova que o Sr. Abade Dubos alega é a cessão feita pelo Imperador Justiniano aos filhos e aos netos de Clóvis de todos os direitos do império sobre as Gálias. Teria muitas coisas para dizer acerca dessa cessão. Pode-se julgar da importância que atribuíram a isso os reis dos francos pela maneira como lhe executaram as condições. Aliás, os reis dos francos eram senhores das Gálias; eram soberanos pacíficos; Justiniano não possuía uma polegada de terra; o império do Ocidente fora destruído havia muito tempo, e o imperador do Oriente somente tinha direitos sobre as Gálias como representante do imperador do Ocidente; eram direitos sobre direitos. A monarquia dos francos já estava fundada; estava feito o regulamento de seu estabelecimento; convencionados, os direitos recíprocos das pessoas e das diversas nações que viviam na monarquia; dadas, as leis de cada nação e mesmo redigidas por escrito. Que fazia esta cessão estranha a um estabelecimento já formado? Que quer dizer o Sr. Abade Dubos com os discursos de todos esses bispos, que, na desordem, na confusão, na queda total do Estado, nas devastações da conquista, procuram lisonjear o vencedor? Que pressupõe a lisonja senão a fraqueza daquele que é obrigado a lisonjear? Que prova a retórica e a poesia, senão o emprego mesmo dessas artes? Quem não ficaria admirado de ver Gregório de Tours, que, depois de ter falado dos assassínios de Clóvis, diz que, entretanto, Deus prosternava todos os dias seus inimigos, porque ele marchava em seus caminhos? Quem pode duvidar de que o clero não tenha ficado contente com a conversão de Clóvis e disso tenha tirado mesmo grandes vantagens? Mas quem pode duvidar, ao mesmo tempo, de que os povos não tenham experimentado todas as desgraças da conquista, e que o governo romano não tenha cedido ao governo germânico? Os francos não quiseram e mesmo não puderam mudar tudo; e mesmo poucos vencedores têm essa mania. Mas, para que todas as consequências do Sr. Abade Dubos fossem verdadeiras, teria sido necessário que não somente não tivesse mudado nada entre os romanos, como também que eles mesmos tivessem mudado. Seguindo o método do Sr. Abade Dubos, eu me empenharia em provar da mesma forma que os gregos não conquistaram a Pérsia. Primeiramente, falaria dos tratados que algumas de suas cidades firmaram com os persas; falaria dos gregos que estiveram assoldadados aos persas, como os francos o estiveram aos romanos. Se Alexandre entrou no país dos persas, sitiou, tomou e destruiu a cidade de Tiro, trata-se de uma questão particular, tal como a de Siágrio. Mas vede como o pontífice dos judeus vem ao seu encontro; escutai o oráculo de Júpiter Amon; lembrai-vos do que lhe fora vaticinado em Górdio; vede como todas as cidades correm, por assim dizer, ao seu encontro; como os sátrapas e os grandes acorrem em multidão. Ele se veste à maneira dos persas; é a toga consular de Clóvis. Não lhe ofereceu Dario a metade de seu reino? Dario não foi assassinado como um tirano? A mãe e a esposa de Dario não choraram a morte de Alexandre? Quinto Cúrcio, Arriano, Plutarco eram contemporâneos de Alexandre? A imprensa não nos deu as luzes que faltavam a tais autores? Eis a história do Estabelecimento da Monarquia Francesa nas Gálias. CAPÍTULO XXV DA NOBREZA FRANCESA O sr. Abade Dubos afirma que, nos primeiros tempos de nossa monarquia, havia uma única ordem de cidadãos entre os francos. Esta afirmação injuriosa ao sangue de nossas primeiras famílias não o seria menos às três grandes casas que reinaram sucessivamente sobre nós. Não iria a origem de sua grandeza perder-se, portanto, no esquecimento, na noite e no tempo? A história iluminaria os séculos em que teriam sido famílias comuns; e, para que Chilperico, Pepino e Hugo Capeto fossem gentis-homens, cumpria ir buscar sua origem entre os romanos ou entre os saxões, isto é, entre as nações subjugadas? A Sr. Abade Dubos fundamenta sua opinião na lei sálica. É claro, diz ele, por esta lei, que não havia duas ordens de cidadãos entre os francos. Prescrevia ela duzentos soldos de composição para a morte de qualquer franco que fosse, mas distinguia, entre os romanos, o conviva do rei, para cuja morte prescrevia trezentos soldos de composição, do romano possuidor para quem prescrevia cem, e do romano tributário para quem prescrevia apenas quarenta e cinco. E, como a diferença das composições constituía a principal distinção, conclui que, entre os francos, havia uma única ordem de cidadãos e que, entre os romanos, havia três. É surpreendente como seu próprio erro não o tenha feito descobrir seu erro. Com efeito, era um caso extraordinário que os nobres romanos que viviam sob a dominação dos francos tivessem tido uma reparação maior e fossem pessoas mais importantes que os mais ilustres francos e seus maiores capitães. Que indício de que o povo vencedor tenha tido tão pouco respeito para consigo mesmo e tenha tido tanto para com o povo vencido? Demais, o Sr. Abade Dubos cita as leis das outras nações bárbaras, que provam que havia entre elas diversas ordens de cidadãos. Seria muito extraordinário que esta regra geral tivesse encontrado uma exceção precisamente entre os francos. Isso tê-lo-ia feito pensar que entendia mal, ou que aplicava maios textos da lei sálica; o que lhe aconteceu efetivamente. Ao abrir esta lei, vê-se que a composição para a morte de um antrustíão, isto é, de um fiel ou vassalo do rei, era de seiscentos soldos, e que para a morte de um romano, conviva do rei, era tão somente de trezentos. Vê-se aí que a reparação para a morte de um simples franco era de duzentos soldos, que a para a morte de um romano, de condição ordinária, era apenas de cem. Pagava-se ainda para a morte de um romano tributário, espécie de servo ou de liberto, uma composição de quarenta e cinco soldos; mas não falarei mais disso, tampouco da reparação para a morte do servo franco, ou do liberto franco: não se trata aqui dessa terceira ordem de pessoas. Que faz o Abade Dubos? Passa em silêncio a primeira ordem de pessoas entre os francos, isto é, o artigo que concerne aos antrustiões; e, em seguida, comparando o franco ordinário, para cuja morte se pagavam duzentos soldos de composição, com o que chama as três ordens entre os romanos, e para cuja morte pagavam-se reparações diferentes, acha ele que havia somente uma ordem de cidadãos entre os francos, e que havia três entre os romanos. Como, segundo ele, havia uma única ordem de pessoas entre os francos, seria conveniente que houvesse somente uma também entre os borguinhões, porque seu reino formou uma das principais peças de nossa monarquia. Mas há em seus códigos três espécies de composições, uma para o nobre borguinhão ou romano, outra para o borguinhão ou romano de condição medíocre, a terceira para os que pertenciam a uma condição inferior nas duas nações. O abade Dubos não citou esta lei. É singular ver como ele foge às passagens que o pressionam de todos os lados. Fala-se-lhe dos grandes, dos senhores, dos nobres? São, diz ele, simples distinções, e não distinções de ordem; são coisas de cortesia, e não prerrogativas da lei; ou então, diz ele, as pessoas de que se fala pertenciam ao conselho do rei; podiam até ser romanos; mas sempre havia uma única ordem de cidadãos entre os francos. De outro lado, se falou de algum franco de classe inferior, trata-se dos servos; é desta maneira que interpreta o decreto de Childeberto. Necessário se toma que me detenha neste decreto. O Abade Dubos tornou-o famoso porque dele se serviu para provar duas coisas: uma, que todas as composições que se encontram nas leis dos bárbaros eram apenas interesses civis acrescidos às penas corporais, o que subverte totalmente todos os antigos monumentos; a outra, que todos os homens livres eram julgados direta e imediatamente pelo rei o que é contestado por uma infinidade de passagens e de autoridades que nos dão a conhecer a ordem judicial daqueles tempos. Diz esse decreto, feito numa assembleia da nação, que, se o juiz encontrar um ladrão famoso, mandá-lo-á amarrar a fim de ser remetido ao rei, se for um franco (Francus); mas, se for uma pessoa mais fraca (debilior persona), será enforcado no local. Segundo o Abade Dubos, Francus é um homem livre, debilior persona é um servo. Desconhecerei por um momento o que pode significar aqui a palavra Francus; e começarei examinando o que se pode entender pelas palavras uma pessoa mais fraca. Digo que, em qualquer que seja a língua, todo comparativo supõe necessariamente três termos, o maior, o menor e o mínimo. Se se tratasse aqui apenas dos homens livres e dos servos, ter-se-ia dito um servo, e não um homem de menor poder. Assim, debilior persona de nenhum modo significa um servo, mas uma pessoa abaixo da qual se encontra o servo. Suposto isso, Francus não significará um homem livre, e sim um homem poderoso: e Francus é tomado aqui nesta acepção, porque, entre os francos, eram sempre aqueles que, no Estado, disputam de maior poder, e que era mais difícil para o juiz ou para o conde corrigir. Esta explicação se coaduna com grande número de capitulares que determinam os casos em que os criminosos podiam ser remetidos ao rei, e os que não o podiam. Encontra-se na vida de Luís, o Bonacheirão, escrita por Tegano, que OS bispos foram os principais autores da humilhação desse imperador, sobretudo os que tinham sido servos e os que haviam nascido entre os bárbaros. Tegano apostrofa assim Hebon, que este príncipe tirara da servidão e fizera arcebispo de Reims: "Que recompensa o imperador recebeu de tantos benefícios! Ele te fez livre, e não nobre; não podia fazer-te nobre após ter-te dado a liberdade". Esse discurso, que prova tão formalmente duas ordens de cidadãos, não embaraça o Abade Dubos. Ele responde desta maneira: "Essa passagem não quer dizer que Luís, o Bonacheirão, não tenha podido fazer que Hebon entrasse na ordem dos nobres: Hebon, como arcebispo de Reims, seria da primeira ordem, superior à da nobreza". Deixo ao leitor decidir se essa passagem não o quer dizer; deixo-lhe julgar se se trata aqui de uma precedência do clero sobre a nobreza. "Essa passagem prova tão somente", continua o Abade Dubos, "que os cidadãos nascidos livres eram qualificados de homens nobres: no uso do mundo, nobre homem e homem nascido livre por muito tempo queriam dizer a mesma coisa”. Como! Pelo fato de, em nossos tempos modernos, alguns burgueses tomarem a qualidade de nobres homens, uma passagem da vida de Luís, o Bonacheirão, se aplicará a estas espécies de gente! "Talvez também", acrescenta ainda, "que Hebon não tivesse sido escravo na nação dos francos, mas na nação saxônica, ou em outra nação germânica, em que os cidadãos achavam-se divididos em várias ordens." Portanto, por causa do talvez do Abade Dubos, não terá havido nobreza na nação dos francos. Mas não houve jamais um talvez mais mal aplicado. Vimos que Tegano distingue os bispos que se opuseram a Luís, o Bonacheirão, dos quais uns tinham sido servos e os outros eram de uma nação bárbara. Hebon era dos primeiros, e não dos segundos. Aliás, não sei como se pode dizer que um servo tal como Hebon teria sido saxão ou germânico: um servo não tem família, nem, por conseguinte, nação. Luís, o Bonacheirão, libertou Hebon; e, como os servos libertos tomavam a lei de seu senhor, Hebon tornou-se franco, e não saxão ou germano. Ataquei, cumpre que me defenda. Dir-me-ão que o corpo dos antrustiões formava efetivamente no Estado uma ordem distinta da dos homens livres mas que, como os feudos foram a princípio amovíveis, e em seguida para toda a vida, isso não podia formar uma nobreza de origem, pois as prerrogativas não estavam ligadas a um feudo hereditário. Foi esta objeção sem dúvida que o fez o Sr. de Valois pensar que havia apenas uma ordem de cidadãos entre os francos: sentimento que o Abade Dubos tirou dele, e que ele somente deturpou à força de más provas. Como quer que seja, não teria sido o Abade Dubos que poderia fazer esta objeção. Pois, tendo dado três ordens de nobreza romana, e a qualidade de conviva do rei para a primeira, não teria podido dizer que este título assinalasse mais uma nobreza de origem do que o de antrustião. Mas é preciso uma resposta direta. Os antrustiões ou fiéis não eram tais porque tinham um feudo; mas dava-se-lhes um feudo, porque eram antrustiões ou fiéis. Lembre-se o que disse nos primeiros capítulos deste livro: não tinham, então, como tiveram depois, um feudo; mas se tivessem aquele, não teriam outro, tanto porque os feudos eram concedidos no nascimento, como porque eram outorgados muitas vezes nas assembleias da nação e, finalmente, porque, como era do interesse ter um, era também do interesse do rei dar-lhes um. Essas famílias eram distinguidas por sua dignidade de fiéis e pela prerrogativa de poder recomendar-se por um feudo. Farei ver no livro seguinte como, pelas circunstâncias dos tempos, houve homens livres aos quais foi admitido fruir desta grande prerrogativa e, por conseguinte, entrar na ordem da nobreza. Tal não aconteceu no tempo de Gontrão e de Childeberto, seu sobrinho; aconteceu no tempo de Carlos Magno. Mas embora, desde o tempo desse príncipe, os homens livres não fossem capazes de possuir feudos, parece, pela passagem de Tegano, acima relatada, que os servos libertos eram excluídos disso absolutamente. O Abade Dubos, que vai à Turquia a fim de nos dar uma ideia do que era a antiga nobreza francesa, nos dirá que jamais alguém se queixou na Turquia de que se tenham elevado às honrarias e às dignidades pessoas de baixo nascimento, como havia quem se lamentasse nos reinados de Luís, o Bonacheirão, e de Carlos, o Calvo? Não se queixavam no tempo de Carlos Magno, porque este príncipe sempre distinguiu as antigas famílias das novas; o que Luís, o Bonacheirão, e Carlos, o Calvo, não fizeram. O público não deve esquecer que deve ao Abade Dubos várias composições excelentes. É a partir dessas belas obras que se deve julgá-lo, e não a partir desta. O Abade Dubos incidiu em grandes erros, porque teve mais diante dos olhos o Conde de Boulainvilliers do que o seu assunto, De todas as minhas críticas, extrairei apenas esta reflexão: Se este grande homem errou, que não devo eu temer? LIVRO TRIGÉSIMO PRIMEIRO TEORIA DAS LEIS FEUDAIS ENTRE OS FRANCOS, NA RELAÇÃO QUE TÊM COM A REVOLUÇÃO DE SUA MONARQUIA. CAPÍTULO I TRANSFORMAÇÕES NOS OFÍCIOS E FEUDOS OS CONDES, INICIALMENTE, eram enviados a seus distritos apenas por um ano; logo compraram a continuação de seus ofícios. Encontra-se exemplo disso desde o reinado dos netos de Clóvis. Certo Peônio era conde na cidade de Auxerre; mandou seu filho Mumolo levar dinheiro a Gontrão para continuar em seu emprego; o filho deu o dinheiro por si mesmo e obteve o lugar do pai. Os reis tinham já começado a corromper suas próprias graças. Apesar de, pela lei do reino, os feudos serem amovíveis, não eram, entretanto, dados nem suprimidos de modo caprichoso e arbitrário; e era, normalmente, uma das principais coisas tratadas nas assembleias da nação. Podemos pensar muito bem que a corrupção introduziu-se neste ponto como se introduzira no outro, e que se conservou a posse dos feudos pelo dinheiro, tal como se conservava a posse dos condados. Mostrarei, na continuação deste livro, que independentemente dos dotes que os príncipes concederam por certo tempo, outros houve que concederam para sempre. Sucedeu que o tribunal quis revogar os donativos que tinham sido feitos: isso ocasionou geral descontentamento na nação, e logo se viu nascer essa famosa revolução na história da França cuja primeira época foi o espantoso espetáculo do suplício de Brunilda. Parece, a princípio, extraordinário que essa rainha, filha, irmã, mãe de tantos reis, famosa ainda hoje por obras dignas de um edil ou de um pro cônsul romano, nascida com um gênio admirável para os negócios, dotada de qualidades que tinham sido respeitadas por tanto tempo, se tenha visto repentinamente exposta a suplícios tão longos, tão vergonhosos, tão cruéis, por um rei cuja autoridade era tão pouco sólida em sua nação, se ela não tivesse caído, por alguma causa particular, na desgraça desta nação. Clotário censurou-lhe a morte de dez reis; mas ele próprio mandou matar dois; a morte de alguns outros foi o crime do destino ou da perversidade de outra rainha; e uma nação que deixara morrer Fredegunda em seu leito, que se opusera inclusive à punição de seus espantosos crimes, devia ser muito indiferente com relação aos de Brunilda. Foi ela colocada sobre um camelo e exposta a todo o exército: indício indubitável de que caíra na desgraça desse exército. Fredegário diz que Protário, favorito de Brunilda, adquiria os bens dos senhores e com eles abarrotava o fisco, humilhava a nobreza e ninguém podia ter certeza de conservar o posto que possuía. O exército conspirou contra ele e apunhalaram-no em sua tenda; e Brunilda, seja pelas vinganças que extraiu dessa morte seja por insistir no mesmo plano, tornou-se cada dia mais odiosa à nação. Clotário, ambicionando reinar sozinho, e possuído da mais horrível vingança, certo de perecer se os filhos de Brunilda levassem vantagem, participou de uma conjuração contra si próprio; e, quer por ter sido inábil, quer por ter sido forçado pelas circunstâncias, tornou-se acusador de Brunilda, e mandou fazer dessa rainha um terrível exemplo. Varnacário fora a alma da conjuração contra Brunilda; foi feito prefeito do paço de Borgonha; exigiu de Clotário que nunca durante suas vidas fosse substituído. Com isso o prefeito do paço não mais pôde estar no caso em que tinham estado os senhores franceses; e esta autoridade começou a tornar independente a autoridade real. Fora a funesta regência de Brunilda que sobretudo enfurecera a nação. Enquanto as leis subsistiram em sua força, ninguém pôde lamentar-se de que um feudo lhe tinha sido arrebatado, pois a lei não lho outorgava para sempre; mas, quando a avareza, as práticas perniciosas, a corrupção fizeram com que se concedessem feudos, lamentou-se de que se fosse privado por meios reprováveis, desonestos, de coisas amiúde obtidas da mesma maneira. É possível que, se o bem público tivesse sido o motivo da revogação das dádivas, nada se tivesse dito; mas mostrava-se a ordem sem esconder a corrupção; reclamava-se o direito do fisco a seu bel-prazer; as dádivas não mais foram a recompensa ou a esperança dos serviços. Brunilda, por um espírito corrompido, quis corrigir os abusos da corrupção antiga. Seus caprichos não eram os de um espírito fraco; os leudos e os grandes oficiais se acreditaram perdidos; eles a perderam. Falta muito para que conheçamos todos os atos ocorridos nessa época; e os fazedores de crônicas, que sabiam tanto de história de seu tempo como os aldeões sabem hoje da do nosso tempo, são muito estéreis. Contudo, temos uma constituição de Clotário, outorgada no concílio de Paris para a reforma dos abusos, que mostra que esse príncipe fez cessar as queixas que a revolução tinha originado. De um lado, confirma todos os donativos que haviam sido feitos ou confirmados pelos reis, seus predecessores, e ordena, de outro lado, que tudo o que fora retirado de seus leudos ou fiéis lhes fosse restituído. Essa não foi a única concessão que o rei fez nesse concílio. Quis que o que fora feito contra os privilégios dos eclesiásticos fosse corrigido; moderou a influência do tribunal nas eleições dos bispados. O rei reformou igualmente os assuntos fiscais; quis que todos os novos censos fossem suprimidos; que não se arrecadasse nenhum direito de passagem estabelecido depois da morte de Gontrão, Sigiberto e Chilperico, ou seja: suprimia tudo o que fora feito durante as regências de Fredegunda e de Brunilda; proibiu que seus rebanhos fossem levados às florestas dos particulares; e veremos brevemente que a reforma foi ainda mais geral e se estendeu aos negócios civis. CAPÍTULO II DE COMO O GOVERNO CIVIL FOI REFORMADO Vira-se até aqui a nação dar sinais de impaciência e de precipitação em relação à escolha ou à conduta de seus senhores; vira-se regulamentar os litígios de seus senhores entre si, e lhes impor a necessidade da paz. Porém, o que ainda não fora visto, a nação o fez então: lançou a vista sobre a situação atual, examinou suas leis com sangue-frio, proveu à sua insuficiência, pôs fim às violências, regulamentou o poder. As regências varonis, audaciosas e insolentes de Fredegunda e de Brunilda tinham mais advertido esta nação do que assombrado. Fredegunda defendera suas perversidades por suas próprias perversidades; justificara o veneno e os assassínios pelo veneno e pelos assassínios; conduzira-se de modo que seus atentados fossem ainda mais particulares que públicos. Fredegunda causou mais males, Brunilda fez receá-los ainda mais. Nesta crise, a nação não se contentou com colocar ordem no governo feudal; quis também assegurar seu governo civil, pois este era também mais corrompido do que o outro; e esta corrupção era tanto mais perigosa quanto era mais antiga, e se relacionava, de algum modo, mais ao abuso dos costumes do que ao abuso das leis. A história de Gregório de Tours e outros monumentos mostram-nos, de um lado, uma nação feroz e bárbara; e, de outro, reis que não o eram menos. Esses príncipes eram assassinos, injustos e cruéis porque toda a nação o era. Se o cristianismo parece, algumas vezes, abranda-los, foi apenas pelo terror que o cristianismo inspirou aos culpados. As igrejas defenderam-se contra eles pelos milagres e pelos prodígios de seus santos. Os reis não eram sacrílegos porque temiam as penas dos sacrilégios; mas cometeram, de outro lado, por cólera ou a sangue-frio, todas as espécies de crimes e de injustiças, porque esses crimes e essas injustiças não mostravam a mão da divindade tão presente. Os francos, como afirmei, suportaram os reis homicidas porque eles próprios era homicidas; não se impressionaram com as injustiças e rapinas de seus reis porque eram tão vorazes e injustos quanto eles. Havia muitas leis estabelecidas, mas os reis as tomavam inúteis com certas cartas, denominadas precepções, que anulavam as mesmas leis; era aproximadamente como os rescritos dos imperadores romanos, seja porque os reis tivessem imitado esse uso, seja porque o tivessem extraído do próprio âmago de sua natureza. Vê-se, em Gregório de Tours, que eles cometiam assassínios a sangue-frio e mandavam matar acusados que não haviam sequer sido ouvidos; outorgavam precepções para casamentos ilícitos, para transferir heranças, para suprimir direitos dos parentes, para desposar religiosas. Na verdade, não só faziam leis por sua iniciativa, como também suspendiam a prática das que eram feitas. O edito de Clotário reparou todos esses gravames. Ninguém podia mais ser condenado sem ser ouvido, os parentes deviam sempre suceder segundo a ordem estabelecida pela lei, todas as precepções para esposar jovens, viúvas ou religiosas foram inúteis e se puniu severamente os que as obtiveram ou delas fizeram uso. Saberíamos talvez mais exatamente o que estatuía sobre essas precepções se o artigo 13 desse decreto, e os dois seguintes, não tivessem sido destruídos pelo tempo. Só possuímos as primeiras palavras do artigo 13 que ordenam que as precepções sejam observadas; o que não se pode entender com relação às que acabavam de ser abolidas pela mesma lei. Possuímos outra constituição do mesmo príncipe que se reporta a seu edito, corrigindo, igualmente, ponto por ponto todos os abusos das precepções. É verdade que o Sr. Baluze, encontrando essa constituição em data e sem o nome do lugar em que foi dada, atribuiu-a a Clotário I. Pertence ela a Clotário II. Darei três razões: 1°) Declara-se aí que o rei conservará as imunidades concedidas às igrejas por seu pai e seu avô. Que imunidades poderia conceder às igrejas Childerico, avô de Clotário I, ele que não era cristão e que vivia antes de a monarquia ter sido fundada? Mas, se atribuímos este decreto a Clotário lI, teremos como seu avô o próprio Clotário I, que efetuou enormes donativos às igrejas a fim de expiar a morte de seu filho Cramne, que ele mandara queimar juntamente com a esposa e os filhos. 2°) Os abusos que esta constituição corrige subsistiram depois da morte de Clotário I, e foram mesmo levados a seu cúmulo durante a fraqueza do reinado de Gontrão, a crueldade do de Chilperico, e as detestáveis regências de Fredegunda e de Brunilda. Ora, como a nação teria podido suportar afrontas tão solenemente proscritas, sem ter nunca reclamado contra a repetição contínua dessas afrontas? Como não teria ela feito então o que fez quando, tendo Chilperico II retomado as antigas violências, ordenou-lhe que nos julgamentos se obedecesse às leis e aos costumes, como se fazia antigamente? 3°) Finalmente, esta constituição, feita para reparar as afrontas, não pode concernir a Clotário I, pois, sob seu reinado, não havia queixas no reino a este respeito, e sua autoridade era bastante sólida, sobretudo na época em que se situa esta constituição, ao passo que ela se adapta muito bem aos acontecimentos que ocorrerão no reinado de Clotário II, causando uma revolução no estado político do reino. Cumpre esclarecer a história pelas leis e as leis pela história. CAPÍTULO III AUTORIDADE DOS PREFEITOS DO PAÇO Afirmei que Clotário II comprometera-se a não retirar o cargo de Varnacário durante sua vida. A revolução produziu outro resultado. Antes desse tempo, o prefeito era o prefeito do rei; tornou-se ele prefeito do reino; o rei o escolhia, a nação o escolheu. Protário, antes da revolução, tinha sido feito prefeito por Teodorico, e Landerico por Fredegunda porém, desde então a nação começou a eleger. Destarte, não se deve confundir, como fazem alguns autores, esses prefeitos do paço com os que tinham essa dignidade antes da morte de Brunilda, os prefeitos do rei com os prefeitos do reino. Vemos, pela lei dos borguinhões, que entre eles o cargo de prefeito não era um dos primeiros do Estado: não foi também um dos cargos mais eminentes entre os primeiros reis francos. Clotário garantiu os que possuíam cargos e feudos; e, depois da morte de Varnacário, tendo este príncipe perguntado aos senhores reunidos em Troyes quem eles queiram colocar em seu lugar, bradaram todos que não elegeriam e, solicitando seu favor, colocaram-se em suas mãos. Dagoberto, como seu pai, reuniu toda a monarquia: a nação apoiou-se nele e não lhe deu prefeito. Este príncipe sentiu-se em liberdade; e garantido, aliás, por suas vitórias, retomou o plano de Brunilda. Mas nisto saiu-se tão mal, que os leudos da Austrásia se deixaram derrotar pelos esclavões, retomaram a seu país e as fronteiras da Austrásia ficaram em poder dos bárbaros. Preferiu ele propor aos austrasianos ceder a Austrásia a seu filho Sigiberto, com um tesouro, e colocar o governo do reino e do palácio nas mãos de Cuniberto, bispo de Colônia, e do Duque Adalgiso. Fredegário não entrou nas minúcias das convenções que desde então foram feitas; mas o rei as confirmou todas com suas chartas e logo a Austrásia foi colocada fora de perigo. Dagoberto, percebendo que ia morrer, recomendou sua mulher Nantilda e seu filho Clóvis a Egas. Os leudos da Nêustria e da Borgonha escolheram este jovem príncipe para seu rei. Egas e Nantilda governaram o palácio: restituíram todos os bens que Dagoberto tomara e as queixas cessaram na Nêustria e na Borgonha, como tinham cessado na Austrásia. Após a morte de Egas, a rainha Nantilda incitou os senhores da Borgonha a escolher Floachato para seu prefeito? Este enviou aos bispos e aos principais senhores do reino da Borgonha cartas nas quais lhes prometia conservar para sempre, isto é, durante sua vida, suas honras e suas dignidades. Confirmou sua palavra com um juramento. É aqui que o autor do Livro dos Prefeitos da Casa Real assinala o começo da administração do reino pelos prefeitos do paço. Fredegário, que era borguinhão, entrou em maiores minudências no que concerne aos prefeitos da Borgonha na época da revolução de que falamos, do que sobre os prefeitos da Austrásia e da Nêustria; mas as convenções que foram feitas na Borgonha foram, pelos mesmos motivos, feitas na Nêustria e na Austrásia. A nação acreditou que era mais seguro colocar o poder nas mãos de um prefeito que ela elegesse e a quem podia impor condições do que nas de um rei cujo poder era hereditário. CAPÍTULO IV QUAL ERA o ESPÍRITO DA NAÇÃO A RESPEITO DOS PREFEITOS Um governo e uma nação que tinha rei, que elegesse quem deveria exercer o poder real, parecia bem extraordinário; mas, independentemente das circunstâncias em que se encontravam, creio que os francos extraíam, a este respeito, suas ideias de muito longe. Descendiam eles dos germanos, dos quais diz Tácito que, na escolha de seus reis, orientavam-se por sua nobreza; e na escolha de seus chefes, por sua virtude. Eis os reis de primeira raça, e os prefeitos do paço; os primeiros eram hereditários, e os segundos eletivos. Não podemos duvidar que estes príncipes que, na assembleia da nação, se levantavam e se propunham para chefes de algum empreendimento a todos que quisessem segui-los, não reunissem, na maior parte, em sua pessoa, a autoridade do rei e o poder do prefeito. Sua nobreza lhes dera a realeza, e sua virtude, fazendo-os seguir por muitos voluntários que os escolhiam para chefe, lhes dava o poder do prefeito. Foi pela dignidade real que nossos primeiros reis estiveram à frente dos tribunais e das assembleias e fizeram leis com o consentimento dessas assembleias; foi pela dignidade do duque ou do chefe que eles empreenderam suas expedições e comandaram seus exércitos. Para conhecer o gênio dos primeiros francos a este respeito, basta lançar os olhos sobre a conduta de Arbogasto, franco de nacionalidade, a quem Valentiniano entregara o comando do exército. Enclausurou o imperador no palácio, não permitiu a quem quer que fosse falar-lhe de nenhum negócio civil ou militar. Arbogasto fez nessa época o que os Pepinos fariam depois. CAPÍTULO V DE COMO OS PREFEITOS OBTIVERAM O COMANDO DOS EXÉRCITOS Enquanto os reis comandaram os exércitos, a nação não pensou em escolher um chefe. Clóvis e seus quatro filhos estiveram à frente dos franceses e os conduziram de vitória em vitória. Teobaldo, filho de Teodeberto, príncipe jovem, fraco e doente, foi o primeiro dos reis que permaneceu em seu palácio. Recusou empreender uma expedição à Itália contra Narsés e teve o desgosto de ver os francos escolherem dois chefes que os comandaram. Dos quatro filhos de Clotário I, Gontrão foi quem mais negligenciou o comando dos exércitos outros reis seguiram seu exemplo e, para colocar sem perigo o comando em outras mãos, eles o deram a vários chefes ou duques. Viu-se nascer, daí, um sem-número de inconvenientes; não mais houve disciplina, não mais se soube obedecer; os exércitos não foram mais funestos senão a seus próprios países; abarrotavam-se de despojos antes de entrar em território inimigo. Encontramos em Gregório de Tours viva descrição de todos esses males. "Como poderemos obter a vitória", diz Contrão, "nós que nem mesmo conservamos o que nossos pais adquiriram? Nossa nação não é mais a mesma...” Coisa estranha! Encontrava-se ela em decadência desde os tempos dos netos de Clóvis. Era, pois, natural que se viesse a estabelecer um único duque; um duque que possuísse autoridade sobre esta multidão infinita de senhores e de leudos que não mais conheciam seus compromissos; um duque que restabelecesse a disciplina militar e que levasse contra o inimigo uma nação que apenas sabia fazer a guerra contra si própria. Entregou-se o poder aos prefeitos do paço. A primeira função dos prefeitos do paço foi o governo econômico das casas reais. Tiveram eles, juntamente com outros oficiais, o governo político dos feudos; e, finalmente, deles dispuseram sozinhos. Tiveram igualmente a administração dos negócios da guerra e o comando dos exércitos; e essas duas funções se encontraram necessariamente relacionadas com as duas outras. Naquela época, era mais difícil reunir os exércitos do que comanda-los: e quem mais, além daquele que dispunha das graças, poderia ter esta autoridade? Nessa nação independente e guerreira, cumpria antes convidar do que compelir; cumpria dar ou fazer esperar os feudos que vagavam com a morte do possuidor, recompensar incessantemente, fazer temer as preferências: quem tivesse a superintendência do palácio devia ser, portanto, o general do exército. CAPÍTULO VI SEGUNDA ÉPOCA DO DECLÍNIO DOS REIS DA PRIMEIRA RAÇA Desde o suplício de Brunilda, os prefeitos tinham sido administradores do reino sob os reis; e, embora tivessem a direção da guerra, os reis, entretanto, estavam à frente dos exércitos, e o prefeito e a nação combatiam sob suas ordens. Mas a vitória do Duque Pepino sobre Teodorico e seu prefeito acabou de degradar os reis, a vitória obtida por Carlos Martelo sobre Chilperico e seu prefeito Rainfredo confirmou essa degradação. A Austrásia triunfou duas vezes sobre a Nêustria e a Borgonha; e, estando o prefeito da Austrásia como que ligado à família dos Pepinos, esta prefeitura elevou-se acima de todas as demais, e esta casa sobre todas as outras. Os vencedores temeram que algum homem acreditado se apoderasse da pessoa dos reis para promover perturbações. Mantiveram-nos numa casa real, como numa espécie de prisão. Uma vez em cada ano eram mostrados ao povo. Ali baixavam ordenanças, mas eram as do prefeito, respondiam aos embaixadores, mas eram as respostas do prefeito. É dessa época que os historiadores nos falam do domínio dos prefeitos sobre os reis que lhes estavam submetidos. O delírio da nação pela família de Pepino foi tão longe, que elegeu para prefeito um de seus netos que estava ainda na infância; manteve-o contra certo Dagoberto, e colocou um fantasma sobre outro fantasma. CAPÍTULO VII DOS GRANDES OFÍCIOS E DOS FEUDOS SOB OS PREFEITOS DO PAÇO Não tiveram os prefeitos do paço nenhum cuidado em restabelecer a amovibilidade dos cargos e dos ofícios; só reinaram graças à proteção que concediam, a este respeito, à nobreza: assim, os grandes ofícios continuaram a ser dados vitaliciamente e esta prática confirmou-se cada vez mais. Porém, tenho reflexões particulares a fazer sobre os feudos. Não posso duvidar que naquele período a maior parte não tivesse sido tornada hereditária. No tratado de Andely, Gontrão e seu sobrinho Childeberto obrigam-se a manter as liberdades outorgadas aos leudos e às igrejas pelos reis seus predecessores; e é permitido às rainhas, às jovens, às viúvas de reis, dispor, por testamento, e para sempre, das coisas que recebiam do fisco. Marculfo escreveu suas fórmulas no tempo dos prefeitos. Encontramos várias em que os reis dedicam à pessoa e aos herdeiros: e, como as fórmulas são imagens das ações ordinárias da vida, elas provam que, no fim da primeira raça, uma parte dos feudos passava já aos herdeiros. Muito faltava para que se tivesse, naquela época, a ideia de um domínio inalienável; isto é uma coisa muito moderna que, então, não era conhecida nem na teoria nem na prática. Ver-se-ão, logo mais, sobre isto, provas efetivas: e, se mostro uma época em que não se encontram mais benefícios para o exército, nem nenhum fundo para sua manutenção, devemos convir que os antigos benefícios tinham sido alienados. Esse período foi o de Carlos Martelo, que fundou novos feudos, os quais devemos distinguir dos primeiros. Quando os reis começaram a outorgar vitaliciamente, seja pela corrupção que se introduziu no governo, seja pela própria constituição que fazia com que os reis estivessem obrigados a recompensar incessantemente, era natural que começassem antes a dar perpetuamente os feudos do que os condados. Privar-se de algumas terras era pouca coisa; renunciar aos grandes ofícios era perder o próprio poder. CAPÍTULO VIII COMO OS ALÓDIOS FORAM TRANSFORMADOS EM FEUDOS A maneira de transformar um alódio em feudo encontra-se na fórmula de Marculfo. Dava-se a terra ao rei; ele a restituía ao doador em usufruto ou benefício, e este designava ao rei seus herdeiros. Para descobrir os motivos que existiram para desnaturar assim seu alódio, cumpre que eu procure, como nos abismos, as antigas prerrogativas dessa nobreza que, há onze séculos, está coberta de poeira, sangue e suor. Os que possuíam feudos tinham imensas vantagens. A reparação pelos prejuízos que se lhes fazia era mais forte que a dos homens livres. Parece, pelas fórmulas de Marculfo, que era privilégio do vassalo do rei que quem o matasse pagaria seiscentos soldos de reparação. Esse privilégio fora estabelecido pela lei sálica e pela dos ripuários e, enquanto essas duas leis ordenavam seiscentos soldos pela morte do vassalo do rei, elas só estipulavam duzentos pela morte de um ingênuo, franco, bárbaro, ou homem que vivesse sob a lei sálica e cem pela de um romano. Este não era o único privilégio que os vassalos do rei possuíam. Faz-se mister saber que, quando um homem era citado em julgamento, e não se apresentava, ou não obedecia às ordenanças dos juízes, era chamado diante do rei; e, se persistisse em sua contumácia, era colocado fora da proteção do rei e ninguém podia recebê-lo em casa, nem mesmo lhe dar pão: ora, se fosse ele de condição ordinária, seus bens eram confiscados, mas, se se tratasse de um vassalo do rei, eles não o eram. O primeiro, por sua contumácia, era considerado culpado do crime, mas não o segundo. Aquele, nos menores crimes era submetido à prova da água fervente, este só era condenado em caso de homicídio. Finalmente, um vassalo do rei não podia ser obrigado a jurar em justiça contra outro vassalo. Estes privilégios aumentaram sempre; e a capitular de Carlomano concede esta honra aos vassalos do rei de não se poder obriga-los a jurar pessoalmente, mas apenas pela boca de seus próprios vassalos. Demais, quando o que tinha as honras não se apresentava no exército, sua pena consistia em se abster da carne e do vinho por tanto tempo quanto tivesse faltado ao serviço; mas o homem livre que não seguira o conde pagava uma reparação de seiscentos soldos e era posto em servidão até que a tivesse pago. Portanto, é fácil pensar que os francos, que não eram vassalos do rei, e ainda mais os romanos, procuraram vir a sê-lo: e que, a fim de não serem privados de seus domínios, imaginou-se a prática de dar seu alódio ao rei, receber dele um feudo, de lhe designar seus herdeiros. Esse uso continuou sempre; e ocorreu sobretudo nas desordens da segunda raça, em que toda gente necessitava de um protetor e queria unir-se com outros senhores, e entrar, por assim dizer, na monarquia feudal, porque não mais havia monarquia política. Isso continuou na terceira raça, como se vê por diversas chartas, seja dando seu alódio, e recuperando-o pelo mesmo ato; seja declarando-o alódio e reconhecendo-o como feudo. Denominavam-se esses feudos de retomada. Isto não significa que os que possuíam feudos os governassem como bons pais de família; e, embora os homens livres procurassem sempre possuir feudos, tratavam esse gênero de bens como se administram atualmente os usufrutos. Foi isso que levou Carlos Magno, o mais vigilante e atento príncipe que tivemos, a fazer muitos regulamentos para impedir que não se degradassem os feudos em favor de suas propriedades. Isto prova somente que, em sua época, a maior parte dos benefícios ainda vigorava e que, consequentemente, se cuidasse mais dos alódios que dos benefícios; mas isso não impede que não se preferisse ainda ser vassalo do rei do que homem livre. Podia-se ter motivos para dispor de certa porção particular de um feudo, mas não se queria perder sua própria dignidade. Bem sei, ainda, que Carlos Magno lamenta-se, numa Capitular, que, em alguns lugares, existiam pessoas que davam seus feudos como propriedade, e os resgatavam em seguida como propriedade. Mas não digo que se preferisse uma propriedade a um usufruto; afirmo somente que, quando se podia fazer de um alódio um feudo que passasse aos herdeiros, no caso da fórmula a que me referi, obtinham-se grandes vantagens. CAPÍTULO IX COMO OS BENS ECLESIÁSTICOS FORAM CONVERTIDOS EM FEUDOS Os bens fiscais não deveriam ter tido outro destino que o de servir aos donativos que os reis podiam fazer para convidar os francos a novos empreendimentos, os quais aumentavam, de outro lado, os bens fiscais; e isto era, como tenho dito, o espírito da nação; mas os donativos tomaram outro curso. Temos um discurso de Chilperico, neto de Clóvis, que já se queixa que seus bens tinham sido, quase todos, dados às igrejas. "Nosso fisco tornou-se pobre", dizia ele; "nossas riquezas têm sido transportadas para as igrejas. Só os bispos dominam; eles estão na grandeza e nós não mais estamos." Isto fez com que os prefeitos, que não ousavam atacar os senhores, despojassem as igrejas; e um dos motivos que alegou Pepino para entrar na Nêustria foi que tinha sido convidado pelos eclesiásticos a fim de paralisar as empresas dos reis, isto é, dos prefeitos, que privavam a Igreja de todos os seus bens. Os prefeitos da Austrásia, isto é, a casa dos Pepinos, tinham tratado a Igreja com mais moderação do que se tinha feito na Nêustria e na Borgonha; e isto é bem evidente pelas nossas crônicas, onde os monges não podem deixar de admirar a devoção e a liberdade dos Pepinos. Eles próprios tinham ocupado os primeiros lugares da Igreja. "Um corvo não fura os olhos de outro", como dizia Chilperico aos bispos. Pepino submeteu a Nêustria e a Borgonha; mas tendo tomado, para destruir os prefeitos e os reis, o pretexto de opressão às igrejas, não mais podia despojá-las sem contradizer seu título, e mostrar que zombava da nação. Mas a conquista de dois grandes reinos e a destruição do partido oposto forneceram-lhe muitos meios de contentar seus capitães. Pepino tornou-se senhor da monarquia, protegendo o clero: Carlos Martelo, seu filho, só se pôde manter, oprimindo-o. Vendo este príncipe que uma parte dos bens reais e dos bens fiscais foi dada vitaliciamente ou como propriedade à nobreza e que, recebendo o clero das mãos dos ricos e dos pobres, adquirira grande parte dos próprios alodiais, despojou as igrejas; e não mais subsistindo os feudos da primeira partilha, ele, pela segunda vez, os formou. Tomou para si e para seus capitães os bens da Igreja e as próprias igrejas e pôs fim a um abuso que, diferentemente dos males comuns, era tanto mais fácil de sanar quanto era extremo. CAPÍTULO X RIQUEZAS DO CLERO O clero recebia tanto, que seria necessário, nas três raças, dar-lhe várias vezes todos os bens do reino. Mas se os reis, a nobreza e o povo encontraram meio de lhe dar todos os seus bens, não encontram-se menos o de lhos suprimir. A piedade acarretou a fundação de igrejas na primeira raça; porém, o espírito militar fê-las dar aos militares, que as partilharam com os filhos. Quantas terras não saíram das rendas do clero! Os reis da segunda raça abriram as mãos e fizeram ainda imensas liberalidades; os normandos chegam, pilham, devastam e perseguem, sobretudo os padres e os monges, procuram as abadias, veem onde encontrarão qualquer lugar religioso, pois atribuíam aos eclesiásticos a destruição de seus ídolos e todas as violências de Carlos Magno, que os havia obrigado, uns após outros, a refugiar-se no Norte. Eram ódios que quarenta ou cinquenta anos não os tinham podido fazer esquecer. Nesse estado de coisas, quantos bens o clero não perdeu! Mal havia eclesiásticos para reclamá-los. Sobraram, portanto, à piedade da terceira raça muitas fundações a serem criadas e terras a serem dadas: as opiniões, divulga das e acreditadas naquela época, teriam privado os leigos de todos os seus bens, se tivessem sido bastante honestos. Mas se os eclesiásticos eram ambiciosos, os laicos também o eram: se o moribundo outorgava, o sucessor retomava. Viam-se apenas querelas entre senhores e bispos, gentis-homens e abades; e cumpria perseguir vivamente os eclesiásticos, pois foram eles obrigados a se colocar sob a proteção de certos senhores que os defendiam por um período e os oprimiam depois. Desde esse momento, uma melhor polícia que se estabelecia no decurso da terceira raça permitia aos eclesiásticos aumentar seus bens. Os calvinistas apareceram e mandaram cunhar moeda de tudo o que se encontrou de ouro e prata nas igrejas. Como o clero poderia estar seguro de sua fortuna se não o estava de sua vida? Tratava das matérias de controvérsia e seus arquivos eram queimados. De que servia reclamar a uma nobreza sempre arruinada o que ela não mais tinha, ou o que hipotecara de mil maneiras? O clero sempre adquiriu, sempre devolveu e adquire ainda. CAPÍTULO XI ESTADO DA EUROPA NO TEMPO DE CARLOS MARTELO Carlos Martelo, que procurou despojar o clero, encontrou-se nas circunstâncias mais felizes: era temido e amado pelos militares e trabalhava para eles; tinha o pretexto de suas guerras contra os sarracenos; apesar de odiado pelo clero, dele não tinha nenhuma necessidade; o papa, a quem era necessário, estendia-lhe os braços; sabemos da célebre embaixada que Gregório III lhe enviou. Esses dois poderes estiveram unidos porque não podiam passar um sem o outro: o papa necessitava dos francos para sustentá-lo contra os lombardos e contra os gregos; Carlos Martelo precisava do papa para humilhar os gregos, embaraçar os lombardos, tornar-se mais respeitável em seu país, e acreditar os títulos que tinha e os que ele ou seus filhos poderiam adquirir. Não podia, pois, falhar em sua empresa. Santo Euquério, bispo de Orléans, teve uma visão que assombrou os príncipes. Sobre isso, preciso citar a carta- que os bispos reunidos em Reims escreveram a Luís, o Germânico, que entrara nas terras de Carlos, o Calvo, porque ela serve muito bem para nos mostrar qual era, nessa época, o estado das coisas e a situação dos espíritos. Dizem eles que, "tendo Santo Euquério sido transportado ao céu, viu Carlos Martelo atormentado no inferno inferior por ordem dos santos que devem assistir, com Jesus Cristo, ao Juízo Final; que fora condenado a esta pena antes do tempo, por ter despojado as igrejas de seus bens e de se ter, com isso, tornado culpado dos pecados de todos os que as haviam dotado; que o Rei Pepino mandou realizar, a este respeito, um concílio; que restituiu às igrejas tudo o que pôde retirar dos bens eclesiásticos; que, como não pôde reaver senão uma parte em consequência de suas desavenças com Vaifre, duque da Aquitânia, mandou fazer, em favor das igrejas, cartas precárias do resto; e regulamentou que os laicos pagariam um dízimo dos bens que provinham das igrejas e doze dinheiros por cada casa; que Carlos Magno não deu os bens da Igreja, que fez, pelo contrário, uma capitular pela qual se comprometia, por si e seus sucessores, a nunca os dar; que tudo o que afirmam está escrito e que até muitos dentre eles o tinham ouvido contar a Luís, o Bonacheirão, pai de dois reis". O regulamento do Rei Pepino de que falam os bispos foi feito no concílio realizado em Leptines. Com isso a Igreja encontrava a vantagem de que os que tinham recebido de seus bens só os mantinham de modo precário e, além disso, ela ganhava seu dízimo e doze dinheiros por cada casa que lhe pertencera. Mas tratava-se de um remédio paliativo, e o mal sempre subsistia. Mas até isso encontrou contradição, e Pepino foi obrigado a fazer outra capitular, em que obrigava os que recebiam destes benefícios a pagar este dízimo e este foro, e até a manter as casas do arcebispado ou do monastério, sob pena de perder os bens dados. Carlos Magno renovou os regulamentos de Pepino. O que os bispos dizem na mesma carta, isto é, que Carlos Magno prometeu, para si e seus sucessores, não mais repartir os bens das igrejas entre os soldados, é conforme à capitular desse príncipe, dada em Aix-la-Chapelle no ano 803, feita para acalmar os temores dos eclesiásticos a esse respeito; mas as doações já feitas subsistiram sempre. Acrescentam os bispos, e com razão, que Luís, o Bonacheirão, seguiu o procedimento de Carlos Magno, e não deu os bens da Igreja aos soldados. Entretanto, os antigos abusos foram tão longe, que, sob os filhos de Luís, o Bonacheirão, os leigos estabeleciam sacerdotes em suas igrejas, ou os expulsavam, sem o consentimento dos bispos. As igrejas eram divididas entre os herdeiros e, quando eram mantidas de maneira indecente, não tinham os bispos outro recurso senão retirar suas relíquias. A capitular de Compiègne estabeleceu que o enviado do rei poderia fazer a visita de todos os mosteiros com o bispo, com o parecer e em presença de quem o mantinha; e essa regra geral prova que o abuso era geral. Não é que faltassem leis para a restituição dos bens das igrejas. Tendo o papa reprovado os bispos por sua negligência acerca do restabelecimento dos mosteiros, escreveram esses a Carlos, o Calvo, que essa reprovação não os atingira, já que não eram culpados, e advertiram-no do que fora prometido, resolvido e estatuído em tantas assembleias da nação. Efetivamente, citam nove delas. Disputava-se sempre. Os normandos chegaram e puseram todos de acordo. CAPÍTULO XII ESTABELECIMENTO DOS DÍZIMOS Os regulamentos feitos na época do Rei Pepino tinham dado à Igreja mais a esperança de um alívio do que um alívio efetivo; e, como Carlos Martelo encontrou todo o patrimônio público nas mãos dos eclesiásticos, Carlos Magno encontrou os bens dos eclesiásticos nas mãos dos guerreiros. Não se podia fazer com que estes restituíssem o que lhes fora dado; e as circunstâncias que então existiam tomavam a coisa ainda mais impraticável do que era por sua natureza. De outro lado, o cristianismo não devia perecer por falta de ministros, templos e instruções. Isso levou Carlos Magno a estabelecer os dízimos, novo gênero de bem, que teve para o clero a vantagem de, sendo dado singularmente à Igreja, ser mais fácil, depois, reconhecer-lhes as usurpações. Quis-se dar a esse estabelecimento datas bem mais anteriores; mas as autoridades citadas me parecem ser testemunhas contra os que as alegam. A constituição de Clotário diz somente que não serão arrecadados certos dízimos sobre os bens da Igreja. Nessa época toda a pretensão da Igreja, muito longe de arrecadar os dízimos, era pretender ficar isenta deles. O segundo concílio de Macon, realizado no ano 585, que ordena que se pagassem os dízimos, diz, na verdade, que haviam sido pagos anteriormente, mas diz também que, em sua época, não mais eram pagos. Quem duvida que antes de Carlos Magno não se tivesse aberto a Bíblia e pregado as dádivas e oferendas do Levítico? Mas afirmo que antes deste príncipe os dízimos podiam ser pregados, mas não estavam estabelecidos. Disse que os regulamentos baixados no período do Rei Pepino tinham submetido ao pagamento dos dízimos e das reparações das igrejas os que possuíam como feudo os bens eclesiásticos. Era muito obrigar, com uma lei cuja justiça não podia ser posta em dúvida, os principais da nação a dar exemplo. Carlos Magno fez mais. E vemos, pela capitular De Villis, que obrigou seus próprios fundos territoriais ao pagamento dos dízimos; tratava-se também de um grande exemplo. Mas o baixo povo quase não é capaz de abandonar seus interesses por exemplos. O sínodo de Francforte lhe apresentou um motivo mais constrangedor para pagar os dízimos. Fez aí uma capitular na qual se declara que, na última fome, espigas de milho vazias foram encontradas, que elas tinham sido devoradas por demônios e que se tinham ouvido suas vozes que exprobravam o fato de os dízimos não terem sido pagos; e, consequentemente, foi ordenado a todos que possuíam bens eclesiásticos que pagassem o dízimo; e, também consequentemente, isso foi ordenado a todos. O projeto de Carlos Magno não obteve êxito inicialmente; esse encargo pareceu esmagador. O pagamento dos dízimos entre os judeus entrara no plano de fundação de sua república; mas aqui o pagamento dos dízimos era um encargo independente dos do estabelecimento da monarquia. Podemos ver, nas disposições acrescentadas à lei dos lombardos, a dificuldade encontrada para obter o recebimento dos dízimos pelas leis civis; podemos apreciar, pelos diferentes cânones dos concílios, a encontrada para obter o recebimento pelas leis eclesiásticas. Finalmente, consentiu o povo em pagar os dízimos, com a condição de poder resgata-los. A constituição de Luís, o Bonacheirão, e a do Imperador Lotário, seu filho, não o permitiram. As leis de Carlos Magno sobre o estabelecimento dos dízimos eram consequência da necessidade; somente a religião tomou parte nelas, e a superstição não tomou parte alguma. A famosa divisão que ele fez dos dízimos em quatro partes, para a construção das igrejas, para os pobres, para o bispo, para o clero, prova muito bem que quis dar à Igreja essa situação firme e permanente que ela perdera. Seu testamento mostra que pretendeu acabar de reparar os males que Carlos Martelo, seu avô, cometera. Dividiu em três partes iguais seus bens mobiliários: quis que duas partes fossem divididas em vinte e uma, para as vinte e uma metrópoles de seu império; cada parte deveria ser subdividida entre a metrópole e os bispados que dela dependiam. Dividiu o terço que restava em quatro partes: uma deu a seus filhos e netos; outra foi acrescentada aos dois terços já dados; as duas outras foram empregadas em obras pias. Parecia que considerava a dádiva que acabava de conceder às igrejas menos uma ação religiosa que uma distribuição política. CAPÍTULO XIII DAS ELEIÇÕES NOS BISPADOS E ABADIAS Tendo-se as igrejas tomado pobres, os reis abandonaram as eleições aos bispados e outros benefícios aos eclesiásticos. Os príncipes se ocupavam menos em nomear os ministros e os competidores reclamaram menos sua autoridade. Assim, a Igreja recebia uma espécie de compensação pelos bens que lhe tinham sido retirados. E, se Luís, o Bonacheirão, deixou ao povo romano o direito de eleger os papas, foi esse um resultado do espírito geral da época: governou-se em relação à sede de Roma como se fazia com respeito a outras. CAPÍTULO XIV DOS FEUDOS DE CARLOS MARTELO Não direi se, dando Carlos Martelo os bens da Igreja como feudo, os deu vitalícia ou perpetuamente. Tudo o que sei é que, no tempo de Carlos Magno e de Lotário I, havia dessas espécies de bens que passavam aos herdeiros e se dividiam entre eles. Acho, além disso, que uma parte foi dada como alódio, e outra parte como feudo. Disse que os proprietários dos alódios eram submetidos a serviço como os possuidores de feudos. Isso foi, sem dúvida, em parte, a causa por que Carlos Martelo concedeu tanto em alódio como em feudo. CAPÍTULO XV CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Cumpre observar que, tendo os feudos sido transformados em bens da Igreja e os dela em feudos, uns e outros adquiriram reciprocamente alguma coisa de sua natureza. Destarte, os bens da Igreja tiveram os privilégios dos feudos, e os feudos tiveram os privilégios dos bens da Igreja; tais foram os direitos- honoríficos nas igrejas que se viram nascer nessa época. E, como esses direitos têm sido sempre atribuídos à alta justiça preferivelmente ao que hoje chamamos o feudo, segue-se que as justiças patrimoniais eram estabelecidas no mesmo tempo desses direitos. CAPÍTULO XVI CONFUSÃO DA REALEZA E DA PREFEITURA. SEGUNDA RAÇA. A ordem das matérias fez com que confundisse a ordem dos períodos; de sorte que falei de Carlos Magno antes de me referir a essa famosa época da passagem da coroa aos Carlovíngios, efetuada na época do Rei Pepino: coisa que, diferentemente dos acontecimentos ordinários, é possivelmente mais notável hoje do que no próprio período em que ocorreu. Os reis não tinham autoridade mas tinham um nome; o título de rei era hereditário e o de prefeito era eletivo. Embora os prefeitos, nos últimos tempos, tivessem posto no trono dos Merovíngios a quem queriam, não tinham escolhido um rei em outra família; e a antiga lei que dava a coroa a uma determinada família ainda não constrangera o coração dos francos. A pessoa do rei era quase desconhecida na monarquia; mas a realeza não. Pepino, filho de Carlos Martelo, acreditou que era oportuno confundir esses dois títulos, confusão que sempre deixaria incerteza se a realeza era hereditária ou não; e isso bastava a quem acrescentava à realeza grande poderio. Desde então, a autoridade do prefeito somou-se à autoridade real. Na confusão dessas duas autoridades, efetuou ele uma espécie de conciliação. O prefeito fora eletivo, o rei hereditário: a coroa, no início da segunda raça, seria eletiva, porque o povo a escolheria; e também hereditária porque ele a escolhia sempre na mesma família. O Padre Le Cointe, apesar do testemunho de todos os monumentos, nega que o papa tenha autorizado essa grande modificação; uma de suas razões é que ele teria cometido uma injustiça. E é admirável ver um historiador julgar o que os homens têm feito pelo que deveriam fazer! Com esta maneira de raciocinar não mais haveria história. De qualquer modo, é certo que, desde o momento da vitória do Duque Pepino, sua família foi reinante, e que a dos Merovíngios não mais o foi. Quando seu neto Pepino foi coroado rei, tudo não passou de uma cerimônia a mais e de um fantasma a menos; com isso adquiriu apenas os ornamentos reais; na nação nada se modificou. Recordei isso para fixar o momento da revolução, a fim de que não nos enganemos, considerando revolução o que não passava de uma consequência da revolução. Quando Hugo Capeto foi coroado rei, no início da terceira raça, houve grande modificação porque o Estado passou da anarquia para um governo qualquer; porém, quando Pepino assumiu a coroa, passou-se de um governo ao mesmo governo. Quando Pepino foi coroado rei, apenas trocou de nome; mas Quando Hugo Capeto foi coroado rei, a coisa mudou, porque um grande feudo, unido à coroa, fez cessar a anarquia. Quando Pepino foi coroado rei, o título de rei uniu-se ao maior ofício; quando Hugo Capeto foi coroado, o título de rei uniu-se ao maior feudo. CAPÍTULO XVII COISA PARTICULAR NA ELEIÇÃO DA SEGUNDA RAÇA Vemos, na fórmula da consagração de Pepino, que Carlos e Carlomano foram também ungidos e abençoados; e que os senhores franceses se comprometeram, sob pena de interdição e excomunhão, a nunca eleger pessoas de outra raça. Parece, pelos testamentos de Carlos Magno e de Luís, o Bonacheirão, que os francos escolhiam entre os filhos dos reis; o que se relaciona muito bem com a cláusula acima. E quando o império passou de uma casa a outra, que não a de Carlos Magno, a faculdade de eleger, que era restrita e condicional, tornou-se pura e simples, e se afastou da antiga constituição. Pepino, sentindo-se perto do fim, convocou os senhores eclesiásticos e laicos em Saint-Denis, e dividiu seu reino entre seus dois filhos Carlos e Carlomano. Não possuímos as atas dessa assembleia; mas se encontra o que aí se passou no autor da antiga coleção histórica publicada por Canísio e no dos Anais de Metz, como o observou o Sr. Baluze. Vejo aí duas coisas de algum modo contrárias: que ele fez a partilha com consentimento dos grandes; e, em seguida, que a fez por direito paterno. Isso prova o que eu disse, que o direito do povo nessa raça era o de eleger dentro da família: era, falando mais propriamente, antes um direito de excluir do que de eleger. Essa espécie de direito de eleição encontra-se confirmada pelos monumentos da segunda raça. Tal é essa capitular da divisão do império que Carlos Magno fez entre seus três filhos, onde, depois de ter formado sua partilha, disse que "se um dos três irmãos tiver um filho e o povo queira elegê-lo para que suceda ao reino de seu pai, seus tios nisso consentirão". Encontra-se essa mesma disposição na partilha que Luís, o Bonacheirão, efetuou entre seus três filhos, Pepino, Luís e Carlos, no ano 837 na assembleia de Aix-la-Chapelle e também noutra partilha do mesmo imperador, feita vinte anos antes entre Lotário, Pepino e Luís. Podemos ver também o juramento que Luís, o Gago, fez em Compiègne, quando foi coroado. "Eu, Luís, constituído rei pela misericórdia de Deus e eleição do povo, prometo..." O que eu disse é confirmado pelas atas do concílio de Valência realizado no ano 890 para a eleição de Luís, filho de Boson, ao reino de Arles. Elegeu-se aí Luís e apresentaram como principais razões de sua eleição o fato de ele ser da família imperial, que Carlos, o Gordo, lhe outorgara a dignidade de rei, e que o imperador Arnulfo o investira pelo cetro e pelo ministério de seus embaixadores. O reino de Arles, como os demais, desmembrados, ou dependentes do império de Carlos Magno, era eletivo e hereditário. CAPÍTULO XVIII CARLOS MAGNO Carlos Magno pensou em manter o poder da nobreza em seus limites, e em impedir a opressão do clero e dos homens livres. Colocou tal moderação nas ordens de Estado, que elas foram contrabalançadas, e ele continuou o senhor. Tudo foi unido pela força de seu gênio. Levou continuamente a nobreza de expedição em expedição; não lhe deixou tempo para formar desígnio e ocupou-a inteiramente em seguir os seus. O império se manteve pela grandeza do chefe: o príncipe era grande, o homem, maior. Os reis, seus filhos, foram seus primeiros súditos, instrumentos de seu poder e modelos de obediência. Estabeleceu regulamentos admiráveis; e mais, fê-los executar. Seu gênio expandiu-se sobre todas as partes do império. Vemos, nas leis desse príncipe, um espírito previdente, que compreende tudo, e certa força que tudo arrasta. Os pretextos para eludir os deveres são suprimidos, as negligências corrigi das, os abusos reformados ou prevenidos. Sabia punir; sabia ainda melhor perdoar. Grande em seus desígnios, simples na execução, ninguém teve em, mais alto grau a arte de fazer as maiores coisas com facilidade e as difíceis com prontidão. Percorria, incessantemente, seu vasto império, impondo-se onde quer que chegasse. Problemas renasciam em toda parte, em toda parte ele os resolvia. Nunca príncipe algum soube melhor do que ele apontar os perigos; nunca príncipe algum soube melhor evitá-los. Zombou de todos os perigos, e particularmente dos que sempre experimentam os grandes conquistadores: refiro-me às conspirações. Esse príncipe prodigioso era extremamente moderado; seu caráter era meigo, suas maneiras simples; gostava de viver com as pessoas de sua corte. Foi talvez muito sensível ao prazer das mulheres; mas um príncipe que governou sempre por si mesmo e que passou a vida nos trabalhos pode merecer mais desculpas. Organizou admiravelmente suas despesas: fez valer seus domínios com sabedoria, atenção e economia; um pai de família poderia aprender em suas leis a governar sua casa. Vemos, em suas Capitulares, a fonte pura e sagrada de onde extrai suas riquezas. Não direi mais que uma palavra: ordenava que se vendessem ovos dos galinheiros de seus domínios, e as ervas inúteis de seus jardins e distribuíra entre seus povos todas as riquezas dos lombardos e os imensos tesouros desses hunos que tinham despojado o universo. CAPÍTULO XIX CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Carlos Magno e seus primeiros sucessores temeram que aqueles que haviam colocado em lugares afastados fossem levados à revolta; acreditaram que encontrariam mais docilidade nos eclesiásticos: assim, erigiram na Alemanha grande número de bispados e a esses ligaram grandes feudos. Parece, por algumas chartas, que as cláusulas que continham as prerrogativas desses feudos não eram diferentes das que se colocavam ordinariamente nessas concessões, apesar de se verem atualmente os principais eclesiásticos da Alemanha revestidos do poder soberano. De qualquer modo, eram peças que eles avançavam à frente contra os saxões. O que não podiam esperar da indolência ou da negligência de um leudo, acreditavam que podiam esperar do zelo e da ativa vigilância de um bispo; sem contar que tal vassalo, bem longe de servir-se contra eles, de povos submetidos, teria, pelo contrário, necessidade deles para se sustentar contra seus povos. CAPÍTULO XX LUÍS, O BONACHEIRÃO. Estando Augusto no Egito, mandou abrir o túmulo de Alexandre. Perguntaram-lhe se queria que se abrissem os dos Ptolomeus; respondeu ele que quisera ver o rei e não os mortos. Destarte, na história dessa segunda raça, procuram-se Pepino e Carlos Magno. Querer-se-ia ver os reis e não os mortos. Um príncipe, joguete de suas paixões e vítima de suas próprias virtudes; um príncipe que jamais conheceu sua força nem sua fraqueza; que não soube conciliar nem o medo nem o amor; que, com poucos vícios no coração, tinha toda sorte de defeitos no espírito, tomou em mãos as rédeas do império que Carlos Magno segurara. No momento em que o universo está em lágrimas pela morte de seu pai, nesse instante de assombro em que todos clamam por Carlos e não o encontram mais; no momento em que ele apressa seus passos para ir ocupar seu lugar, envia na sua frente pessoas de confiança para conter os que tinham contribuído para desregramento da conduta de suas irmãs. Isso ocasionou sangrentas tragédias: eram imprudências bem precipitadas. Começou a vingar os crimes domésticos antes de ter chegado ao palácio e a revoltar os espíritos antes de ser senhor. Mandou furar os olhos de Bernardo, rei da Itália, seu sobrinho, que viera implorar sua clemência e que morreu alguns dias depois: isso multiplicou seus inimigos. O temor que lhes teve fê-lo tonsurar seus irmãos: com isso aumentou ainda mais o número de seus inimigos. Estas duas últimas ações lhe foram muito criticadas: não se deixou de dizer que havia violado seu juramento e as promessas solenes que fizera a seu pai no dia de sua coroação. Após a morte da Imperatriz Hermengarda, de quem tinha três filhos, desposou Judite, de quem teve um filho; em breve, reunindo as complacências de um velho marido com todas as fraquezas de um velho rei, introduziu tal desordem na família, que acarretou a queda da monarquia. Modificou incessantemente as partilhas que fizera aos filhos. Entretanto, essas partilhas tinham sido confirmadas sucessivamente por seus juramentos, pelos de seus filhos e dos senhores. Era querer tentar a fidelidade dos súditos; era procurar introduzir confusão, escrúpulos e equívocos na obediência; era confundir os diversos direitos dos príncipes, sobretudo numa época em que, sendo raras as fortalezas, o primeiro sustentáculo da autoridade era a fé empenhada e a recebida. Os filhos do imperador, para manter suas partilhas, atraíram o clero e lhe deram direitos até então desconhecidos. Esses direitos eram especiais; fazia-se o clero intervir como penhor de uma coisa que se tinha querido que ele autorizasse. Agobardo representou a Luís, o Bonacheirão, que ele enviara Lotário a Roma para declara-lo imperador; que fizera partilhas a seus filhos, depois de ter consultado o céu por três dias de jejum e preces. Que podia fazer um príncipe supersticioso, atacado, aliás, pela própria superstição? Sente-se que malogro a soberana autoridade recebeu duas vezes, pela prisão desse príncipe e sua penitência pública. Tinha-se querido degradar o rei, degradou-se a realeza. Inicialmente há dificuldades em compreender como um príncipe, que tinha muitas boas qualidades, a quem não faltavam conhecimentos, que amava naturalmente o bem e, finalmente para tudo dizer, era o filho de Carlos Magno, pôde ter inimigos tão numerosos, tão violentos, tão irreconciliáveis, tão sequiosos em ofender, tão insolentes em sua humilhação, tão determinados em arruina-lo: e o teriam perdido irremediavelmente duas vezes, se seus filhos, no fundo pessoas mais honestas do que eles, tivessem podido continuar um desígnio e concordar em alguma coisa. CAPÍTULO XXI CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO A força que Carlos Magno introduzira na nação subsistiu suficientemente sob Luís, o Bonacheirão, para que o Estado pudesse manter-se em sua grandeza e ser respeitado pelos estrangeiros. O príncipe tinha espírito fraco, mas a nação era aguerrida. A autoridade se perdia internamente sem que seu poderio parecesse diminuir externamente. Carlos Martelo, Pepino e Carlos Magno governaram sucessivamente a monarquia. O primeiro estimulou a avareza dos guerreiros; os demais, a do clero. Luís, o Bonacheirão, descontentou a ambos. Na constituição francesa, o rei, a nobreza e o clero tinham em suas mãos toda a força do Estado. Carlos Martelo, Pepino e Carlos Magno se uniram, às vezes, com uma das duas partes, a fim de conter a outra, e quase sempre com ambas; mas Luís, o Bonacheirão, separou-se desses dois corpos. Indispôs os bispos com regulamentos que lhes pareceram rígidos, porque ele ia mais longe do que eles próprios queriam ir. Há leis muito boas feitas inoportunamente. Os bispos, acostumados, nesses tempos, a partir para a guerra contra os sarracenos e os saxões, estavam muito afastados do espírito monástico. De outro lado, tendo perdido toda sorte de confiança em sua nobreza, elevou pessoas sem nenhum valor. Privou-a de seus empregos, afastou-a do palácio, chamou estrangeiros. Separado desses dois corpos, foi por eles abandonado. CAPÍTULO XXII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Mas o que sobretudo enfraqueceu a monarquia foi o fato de esse príncipe ter-lhe dissipado os domínios. É aqui que Nitard, um dos mais judiciosos historiadores que possuímos, Nitard, neto de Carlos Magno, que era ligado ao partido de Luís, o Bonacheirão, e que escrevia a história por ordem de Carlos, o Calvo, deve ser escutado. Diz ele que tal Adelhard tivera, durante certo tempo, tal domínio sobre o espírito do imperador, que este príncipe seguia sua vontade em todas as coisas, que, instigado por seu favorito, dera os bens fiscais a todos que os quiseram; e com isso destruíra a república. Assim, fez em todo o império o que eu disse que fizeram na Aquitânia: coisa que Carlos Magno reparou, e que ninguém reparou mais. Foi nesse esgotamento que Carlos Martelo encontrou o Estado quando assumiu a prefeitura; e estava-se em circunstâncias tais, que não bastava mais um ato de autoridade para restabelecê-lo, O fisco estava tão pobre que, sob o reinado de Carlos, o Calvo, não se mantinha ninguém nas honras, não se concedia segurança a ninguém, senão por dinheiro; quando podiam destruir os normandos, deixaram-nos escapar por dinheiro; e o primeiro conselho que Hincmar dá a Luís, o Gago, é o de exigir numa assembleia com que sustentar as despesas de sua casa. CAPÍTULO XXIII CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO O clero teve motivos para se arrepender da proteção que concedera aos filhos de Luís, o Bonacheirão. Este príncipe, como afirmei, nunca dera precepções dos bens da Igreja aos laicos, mas logo Lotário, na Itália, e Pepino, na Aquitânia, abandonaram o plano de Carlos Magno e adotaram o de Carlos Martelo. Os eclesiásticos recorreram ao imperador contra seus filhos; mas eles próprios tinham enfraquecido a autoridade que reclamavam. Na Aquitânia, teve-se alguma condescendência; na Itália não se obedeceu. As guerras civis, que tinham perturbado a vida de Luís, o Bonacheirão, foram o germe das que seguiram sua morte. Os três irmãos Lotário, Luís e Carlos, procuraram, cada um de seu lado, atrair os grandes para seu partido e conseguir seguidores. Deram aos que quiseram segui-los precepções dos bens da Igreja; e, para atrair a nobreza, entregaram-lhe o clero. Vemos, nas Capitulares, que esses príncipes foram obrigados a ceder à importunidade das demandas e que muitas vezes lhes foi arrancado o que eles não teriam querido ceder; vemos aí que o clero se acreditava mais oprimido pela nobreza do que pelos reis. Parece também que Carlos, o Calvo, foi quem mais atacou o patrimônio do clero, seja porque fosse o mais irritado contra esse, já que, por sua causa, seu pai fora degradado por ele, seja porque fosse o mais tímido. De qualquer modo, vemos nas Capitulares contínuas querelas entre o clero que exigia seus bens e a nobreza que recusava, eludia ou diferia restituí-los: e os reis entre os dois. É um espetáculo digno de piedade ver o estado das coisas nessa época. Enquanto Luís, o Bonacheirão, fazia às igrejas imensos donativos de seus domínios, seus filhos distribuíam os bens do clero aos laicos. Frequentemente a mesma mão que fundava novas abadias despojava as antigas. O clero não se encontrava numa situação estável. Despojavam-no; recuperava; mas a coroa sempre perdia. Pelo fim do reinado de Carlos, o Calvo, e desde esse reinado, quase não se tratou mais das divergências do clero e dos laicos sobre a restituição dos bens da Igreja. Os bispos bem que soltaram ainda alguns suspiros em suas exortações a Carlos, o Calvo, que se encontram na capitular do ano 856, e na carta que escreveram a Luís, o Germânico, no ano 858; mas propunham coisas e reclamavam promessas tantas vezes iludidas que vemos que não alimentavam nenhuma esperança de obtê-las. Só se tratou de reparar em geral os malefícios causados na Igreja e no Estado. Os reis comprometiam-se a não suprimir aos leudos seus homens livres e a não mais dar bens eclesiásticos por precepções; de sorte que o clero e a nobreza pareceram unir seus interesses. As estranhas devastações dos normandos, como afirmei, muito contribuíram para pôr fim a essas disputas. Os reis, cada dia menos acreditados pelas causas que já apontei e pelas que apontarei, acreditaram não ter outra coisa a fazer senão colocar-se nas mãos dos eclesiásticos. Mas o clero enfraquecera os reis, e os reis haviam enfraquecido o clero. Em vão Carlos, o Calvo, e seus sucessores apelaram ao clero para apoiar o Estado e impedir sua queda; em vão serviram-se do respeito que os povos tinham para com esse corpo- para manter o que se devia ter por eles; em vão procuraram conferir autoridade a suas leis através da autoridade dos cânones; em vão acrescentaram as penas eclesiásticas às penas civis; em vão, para contrabalançar a autoridade do conde, deram a cada bispo a qualidade de seu enviado nas províncias, foi impossível ao clero reparar o mal que tinham causado; e uma estranha desgraça, de que logo mais falarei, fez a coroa cair por terra. CAPÍTULO XXIV DE COMO OS HOMENS LIVRES FORAM TORNADOS CAPAZES DE POSSUIR FEUDOS Disse que os homens livres iam à guerra comandados por seus condes, e os vassalos pelos seus senhores. Isso fazia com que as ordens do Estado se contrabalançassem umas com as outras; e, apesar de os leudos terem vassalos sob suas ordens, podiam ser contidos pelo conde, que estava à frente de todos os homens livres da monarquia. Inicialmente, esses homens livres não puderam recomendar-se para um feudo, mas posteriormente o puderam; e acho que essa modificação se processou na época situada entre o reinado de Gontrão e o de Carlos Magno. Provo-o pela comparação que se pode fazer do tratado de Andely, feito entre Gontrão, Childeberto e a rainha Brunilda, e a partilha feita por Carlos Magno a seus filhos, e uma partilha semelhante feita por Luís, o Bonacheírão. Esses três atos contêm disposições aproximadamente semelhantes a respeito dos vassalos; e como aí se regulamentam os mesmos pontos, e, quase nas mesmas circunstâncias, o espírito e a letra desses três tratados revelam-se quase iguais a esse respeito. Mas, no que concerne aos homens livres, encontramos aí uma diferença capital. O tratado de Andely não diz que eles possam se recomendar para um feudo, ao passo que encontramos nas partilhas de Carlos Magno e de Luís, o Bonacheirão, cláusulas expressas para que eles se possam recomendar; o que mostra que, desde o tratado de Andely, um novo uso se introduzia, pelo qual os homens livres se tomavam capazes dessa grande prerrogativa. Isso deve ter acontecido quando Carlos Martelo, tendo distribuído os bens da Igreja a seus soldados, e tendo-os dado, parte em feudo, parte em alódio, ocasionou uma espécie de revolução nas leis feudais. É verossímil que os nobres, que já tinham feudos, achassem mais vantajoso receber novas dádivas em alódio, e que os homens livres se achassem ainda mais felizes em recebê-los como feudo. CAPÍTULO XXV CAUSA PRINCIPAL DO ENFRAQUECIMENTO DA SEGUNDA RAÇA. MODIFICAÇÃO NOS ALÓDIOS Carlos Magno regulamentou, na partilha de que falei no capítulo precedente, que após sua morte os homens de cada rei receberiam benefícios no reino de seu rei, e não no reino de outro, ao passo que conservariam seus alódios em qualquer que fosse o reino. Mas acrescenta ele que todo homem livre poderia, após a morte de seu senhor, se recomendar para um feudo nos três reinos a quem quisesse, do mesmo modo como o que nunca tivera senhor. Encontramos as mesmas disposições na partilha que Luís, o Bonacheirão, fez aos filhos, no ano 817. Mas, embora os homens livres se recomendassem para um feudo, a milícia do conde não era por isso enfraquecida: sempre era necessário que o homem livre contribuísse para seu alódio, e preparasse pessoas que fizessem seu serviço, à razão de um homem por quatro solares; ou, então, que preparasse um homem que servisse o feudo em seu lugar: e, tendo alguns abusos se introduzido a esse respeito, foram eles corrigidos, como parece pelas constituições de Carlos Magno e pela de Pepino, rei da Itália, que se explicam mutuamente. O que os historiadores disseram, que a batalha de Fontenay ocasionou a ruína da monarquia, é muito verdadeiro; mas que me seja permitido passar uma vista d'olhos sobre as funestas consequências dessa jornada. Algum tempo depois dessa batalha, os três irmãos, Lotário, Luís e Carlos, fizeram um tratado no qual encontro cláusulas que deveram ter modificado todo o estado político entre os franceses. Na proclamação que Carlos fez ao povo da parte desse tratado que lhe concernia, diz que todo homem livre poderia escolher por senhor quem desejasse, rei ou outros senhores. Antes desse tratado, o homem livre podia recomendar-se para um feudo, mas seu alódio permanecia sempre sob o poder imediato do rei, isto é, sob a jurisdição do conde; e não dependia do senhor ao qual estava recomendado em razão do feudo que dele obtivera. Desde esse tratado, todo homem livre pôde submeter seu alódio ao rei ou a outro senhor, à sua escolha. Não se trata aqui dos que transformavam seu alódio em feudo, e saíam, por assim dizer, da jurisdição civil para entrar no poder do rei ou do senhor que desejavam escolher. Assim, os que estavam outrora claramente sob o poder do rei na qualidade de homens livres sob o do conde, tornaram-se, insensivelmente, vassalos uns dos outros, pois cada homem livre podia escolher por senhor a quem desejasse, quer o rei, quer os outros senhores. 2°) Pois, transformando um homem em feudo uma terra que possuía perpetuamente, esses novos feudos não podiam mais ser vitalícios. Desse modo, vemos, posteriormente, uma lei geral para dar os feudos aos filhos do possuidor; é ela de Carlos, o Calvo, um dos três príncipes que contrataram. O que eu disse da liberdade que tiveram todos os homens da monarquia, desde o tratado dos três irmãos, de escolher para o senhor a quem bem desejassem, o rei ou outros senhores, confirma-se pelos atos lavrados desde essa época. No tempo de Carlos Magno, quando um vassalo tinha recebido do senhor uma coisa, mesmo que não valesse mais que um soldo, não mais podia deixa-lo. Porém, sob o reinado de Carlos, o Calvo, os vassalos puderam, impunemente, seguir seus interesses ou seu capricho; e esse príncipe se expressa tão vigorosamente a esse respeito que parece mais convida-los a fruir dessa liberdade do que a contê-los. Na época de Carlos Magno, os benefícios eram mais pessoais do que reais; posteriormente, tornaram-se mais reais do que pessoais. CAPÍTULO XXVI MODIFICAÇÃO NOS FEUDOS Não ocorreram menores mudanças nos feudos do que nos alódios. Vemos, pela capitular de Compiègne, estabelecida sob o reinado do Rei Pepino, que aqueles a quem o rei dava um benefício, davam eles próprios parte desse benefício a diversos vassalos; mas essas partes não eram diferenciadas do todo. O rei as suprimia quando suprimia o todo; e, quando da morte do leudo, o vassalo perdia também seu subfeudo; vinha um novo beneficiário, que estabelecia também novos subvassalos. Destarte, o subfeudo não dependia do feudo; era a pessoa que dependia. De um lado, o subvassalo voltava ao rei, porque não estava ligado para sempre ao vassalo; e o subfeudo voltava ao mesmo rei, porque era o próprio feudo e não uma dependência do feudo. Tal era a subvassalagem, quando os feudos era amovíveis; tal era ainda, enquanto os feudos foram vitalícios. Isto modificou-se quando os feudos passaram aos herdeiros e quando os subfeudos também passaram. O que dependia imediatamente do rei, dele não dependeu mais do que mediatamente; e o poder real se encontrou, por assim dizer, recuado de um grau, algumas vezes de dois, e amiúde ainda mais. Vemos, nos livros Dos Feudos, que embora os vassalos do rei pudessem doar como feudo, isto é, como subfeudo do rei, não podiam, entretanto, esses subvassalos ou pequenos vassalos de vassalos doar como feudo; de sorte que o que haviam dado podiam sempre retomar. Além disso, tal concessão não passava aos filhos como os feudos, porque não era considerada feita segundo a lei dos feudos. Se compararmos a situação em que se encontrava a subvassalagem, no tempo em que os dois senadores de Milão escreveram estes livros, com a situação em que se encontrava na época do Rei Pepino, verificaremos que os subfeudos conservaram por mais tempo sua natureza primitiva do que os feudos. Mas, quando esses senadores escreveram, introduziram-se exceções tão gerais a essa regra que quase a aniquilaram. Pois, se quem recebera um feudo de um vassalo de vassalo tivesse ido a Roma numa expedição, conquistava todos os direitos de vassalo; do mesmo modo, se tivesse dado dinheiro ao vassalo de vassalo para obter o feudo, este não podia mais o retirar, nem o impedir de transmitir ao filho, até que seu dinheiro fosse restituído. Finalmente, essa regra não mais era seguida no senado de Milão. CAPÍTULO XXVII OUTRA MODIFICAÇÃO SOBREVINDA NOS FEUDOS Na época de Carlos Magno, era-se obrigado, sob grandes penas, a se apresentar à convocação para qualquer guerra que fosse; não se aceitavam desculpas; e o próprio conde que aceitasse escusas seria punido. Porém, o tratado dos três irmãos introduziu nisso uma restrição que tirou, por assim dizer, a nobreza das mãos do rei: só era obrigado a acompanhar o rei na guerra quando esta fosse defensiva. Era-se livre, nos outros casos, para seguir seu senhor ou ocupar-se de seus negócios. Esse tratado relaciona-se a outro, feito cinco anos antes, entre os dois irmãos, Carlos, o Calvo, e Luís, rei da Germânia, pelo qual os dois irmãos dispensaram seus vassalos de segui-los na guerra, no caso de fazerem qualquer empreendimento um contra o outro; coisa que os dois príncipes juraram e que obrigaram os dois exércitos a jurar. A morte de cem mil franceses na batalha de Fontenay levou o que ainda restava da nobreza a ponderar que, pelas querelas particulares de seus reis sobre sua partilha, ela seria exterminada, e que a ambição e a inveja dos mesmos fariam verter tudo o que ainda existia de sangue a derramar. Decretou-se, então, a lei pela qual a nobreza não seria constrangi da a acompanhar os príncipes na guerra senão quando se tratasse de defender o Estado contra uma invasão estrangeira. Essa lei esteve em vigor durante vários séculos. CAPÍTULO XXVIII MODIFICAÇÕES OCORRIDAS NOS GRANDES OFÍCIOS E NOS FEUDOS Parecia que tudo contraía um vício particular e ao mesmo tempo se corrompia. Disse eu que, nos primeiros tempos, vários feudos se encontravam perpetuamente alienados; mas eram casos particulares, e os feudos, em geral, conservavam sempre sua própria natureza; e, se a coroa perdera feudos, substituíra-os por outros. Disse também que a coroa nunca tinha alienado os grandes ofícios perpetuamente. Porém, Carlos, o Calvo, estabeleceu um regulamento geral que afetou igualmente os grandes ofícios e os feudos; estabeleceu ele nas suas Capitulares que os condados seriam dados aos filhos do conde, e quis que esse regulamento fosse válido também para os feudos. Ver-se-á logo mais que esse regulamento recebeu mais extensão; de sorte que os grandes ofícios e os feudos passaram a parentes mais afastados. Disso decorreu que a maioria dos senhores que dependiam imediatamente da coroa dela passasse a depender só mediatamente. Esses condes, que distribuíam outrora a justiça nos tribunais do rei; esses condes, que conduziam os homens livres à guerra, se encontraram entre o rei e seus homens livres; e o poder recuou de um grau. Há mais: parece, pelas capitulares, que os condes tinham benefícios relacionados com seu condado e vassalos sob sua autoridade. Quando os condados tornaram-se hereditários, esses vassalos do conde não mais foram vassalos imediatos do rei, os benefícios relacionados com os condados não mais foram benefícios do rei; os condes tornaram-se mais poderosos porque os vassalos que já possuíam os colocaram em situação de procurar outros. Para perceber bem o enfraquecimento que resultou no fim da segunda raça, basta ver o que ocorreu, no começo da terceira, em que a multiplicação dos subfeudos colocou os grandes vassalos em desespero. Era costume do reino que, quando os primogênitos tinham dado porções a seus caçulas, estes prestassem homenagem ao primogênito, de modo que o senhor dominante apenas os mantinha como subfeudo. Filipe Augusto, duque da Borgonha, os condes de Nevers, de Bolonha, de São Paulo, de Dampierre, e outros senhores, declararam que, daqui por diante, o todo dependeria sempre do mesmo senhor, sem nenhum senhor intermediário. Essa ordenança geralmente não foi obedecida, pois, como afirmei anteriormente, era impossível fazer, nessa época, ordenanças gerais; porém muitos de nossos costumes se regulamentam por ela. CAPÍTULO XXIX DA NATUREZA DOS FEUDOS DESDE O REINADO DE CARLOS, O CALVO. Disse eu que Carlos, o Calvo, quis que, quando o possuidor de um grande ofício ou de um feudo, deixasse, ao morrer, um filho, lhe fosse dado o ofício ou o feudo. Seria difícil acompanhar o progresso dos abusos que disso resultaram, e a extensão que se deu a essa lei em cada país. Encontro nos livros Dos Feudos que, no início do reinado do Imperador Conrado II, os feudos, nos países de sua dominação, não passavam aos netos; passavam somente àquele dos filhos do último possuidor que o senhor tinha escolhido; assim, os feudos foram concedidos por uma espécie de eleição que o senhor fez entre seus filhos. Expliquei, no capo XVII deste livro, como, na segunda raça, a coroa era eletiva em certos respeitos e, em outros, hereditária. Era hereditária porque se tomavam sempre os reis nesta raça; era-o também porque os filhos sucediam; era eletiva porque o povo escolhia entre os filhos. Como as coisas marcham sempre paulatinamente, e uma lei política sempre tem relação com outra, obedeceu-se, para a sucessão dos feudos, ao mesmo espírito que pautara a sucessão da coroa. Destarte, os feudos passaram aos filhos, por direito de sucessão e por direito de eleição; e cada feudo foi, como a coroa, eletivo e hereditário. Esse direito de eleição, na pessoa do senhor, não subsistia no tempo dos autores dos livros Dos Feudos, isto é, no reinado do Imperador Frederico I. CAPÍTULO XXX CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Está escrito, no livro Dos Feudos, que, quando o Imperador Conrado partiu para Roma, os fiéis que estavam a seu serviço lhe solicitaram o estabelecimento de uma lei para que os feudos que passavam aos filhos passassem também aos netos; e aquele cujo irmão morresse sem deixar herdeiros legítimos pudesse suceder aos feudos que pertenceram ao pai comum: isto foi concedido. Acrescente-se aí - e deve-se lembrar que os que falam viviam na época do Imperador Frederico I - que os antigos jurisconsultos sempre tinham sustentado que a sucessão dos feudos em linha colateral não passava além dos irmãos germanos, embora nos tempos modernos ela tenha chegado até o sétimo grau, como, pelo novo direito, fora levada em linha reta até o infinito. Foi assim que a lei de Conrado foi pouco a pouco ampliada. Supostas todas essas coisas, a simples leitura da história da França mostrará que a perpetuidade dos feudos se estabeleceu mais cedo na França do que na Alemanha. Quando o Imperador Conrado II começou a reinar, em 1024, as coisas ainda se encontravam, na Alemanha, tal como estavam na França sob o reinado de Carlos, o Calvo, morto em 877. Mas na França, desde o reinado de Carlos, o Calvo, sobrevieram tantas modificações, que Carlos, o Simples, não se encontrou em posição de disputar a uma casa estrangeira seus direitos incontestáveis ao império, e, finalmente, no tempo de Hugo Capeto, a casa reinante, despojada de todos os seus domínios, nem mesmo pôde sustentar a coroa. A fraqueza de espírito de Carlos, o Calvo, introduziu na França igual fraqueza de Estado. Mas seu irmão, Luís, o Germânico, e alguns dos que lhe sucederam, possuíram as maiores qualidades, a força de seu Estado manteve-se mais longamente. Que digo? Talvez o espírito fleumático e, se ouso dizer, a imutabilidade do espírito da nação alemã tenha resistido por mais tempo do que o da nação francesa a essa disposição das coisas que fazia com que os feudos, como que por uma tendência natural, se perpetuassem nas famílias. Acrescento que o reino da Alemanha não foi devastado e, por assim dizer, aniquilado, como o foi o da França, por esse gênero particular de guerra que lhe moveram os normandos e os sarracenos. Havia menos riqueza na Alemanha, menos cidades a saquear, menos costas a percorrer, mais pântanos a atravessar, mais florestas a penetrar. Os príncipes, que não viram a cada instante o Estado prestes a cair, tiveram menos necessidade de seus vassalos, isto é, dependeram menos deles. Parece que se os imperadores da Alemanha não tivessem sido obrigados a ir a Roma se fazer coroar, e empreender contínuas expedições à Itália, os feudos teriam conservado, nesse país, por mais tempo, sua natureza primitiva. CAPÍTULO XXXI COMO O IMPÉRIO SAIU DA CASA DE CARLOS MAGNO O império que, em prejuízo do ramo de Carlos, o Calvo, já fora entregue aos bastardos do de Luís, o Germânico, passou ainda para uma casa estrangeira, pela eleição de Conrado, duque de Francônia, no ano 912. O ramo que reinava na França, e que mal podia disputar as vilas, estava ainda menos em condições de disputar o império. Temos um acordo feito entre Carlos, o Simples, e o imperador Henrique I, que sucedera a Conrado. É chamado Pacto de Bonn. Os dois príncipes encontraram-se num navio situado no meio do Reno e juraram amizade eterna. Empregou-se um mezzo termine muito bom. Carlos tomou o título de rei da França Ocidental, e Henrique o de rei da França Oriental. Carlos contratou com o rei da Germânia e não com o imperador. CAPÍTULO XXXII COMO A COROA DA FRANÇA PASSOU PARA A CASA DE HUGO CAPETO A hereditariedade dos feudos e o estabelecimento geral dos subfeudos destruíram o governo político e formaram o governo feudal. Em lugar dessa multidão inumerável de vassalos que os reis tiveram, somente possuíram alguns de quem os outros dependeram. Os reis quase não tiveram mais autoridade direta: um poder que devia passar por tantos outros poderes, e por poderes tão grandes, deteve-se ou se perdeu antes de chegar a seu termo. Vassalos muito poderosos não mais obedeceram; e inclusive se serviram de seus subfeudos para não mais obedecer. Os reis, privados de seus domínios, reduzidos às cidades de Reims e de Loan, ficaram à sua mercê. A árvore estendeu muito seus ramos e a cabeça secou. O reino encontrou-se sem domínio, como se encontra atualmente o império. Entregou-se a coroa a um dos vassalos mais poderosos. Os romanos devastavam o reino; chegavam em espécies de jangadas ou pequenas embarcações, entravam pelas embocaduras dos rios, subiam-nos e devastavam a região de ambos os lados. As cidades de Orléans e de Paris paralisaram esses salteadores e eles não podiam avançar nem pelo Sena nem pelo Loire. Hugo Capeto, que possuía essas duas cidades, tinha em suas mãos as duas chaves dos infelizes restos do reino; foi-lhe conferida uma coroa que só ele podia defender. Foi assim que depois se deu o império à casa que mantém imóveis as fronteiras dos turcos. O império saíra da casa de Carlos Magno no tempo em que a hereditariedade dos feudos apenas se estabelecia como uma condescendência. Estabeleceu-se inclusive mais tardiamente entre os alemães do que entre os franceses; isso fez com que o império, considerado um feudo, fosse eletivo. Ao contrário, quando a coroa de França saiu da casa de Carlos Magno, os feudos eram realmente hereditários nesse reino: a coroa, como um grande feudo, também o foi. Todavia, cometeu-se grande erro em atribuir ao momento dessa revolução todas as transformações que ocorreram ou que ocorreriam depois. Tudo se reduziu a dois acontecimentos: a família reinante mudou e a coroa foi unida a um grande feudo. CAPÍTULO XXXIII ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DA PERPETUIDADE DOS FEUDOS Resultou da perpetuidade dos feudos que o morgadio ou direito de primogenitura se estabelecesse entre os franceses. Não era conhecido na primeira raça; a coroa era partilhada entre os irmãos, os alódios também e os feudos, amovíveis ou vitalícios, não sendo objetos de sucessão, não podiam ser objeto de partilha. Na segunda raça, o título de imperador que Luís, o Bonacheirão, possuía, e com o qual honrou Lotário, seu filho primogênito, fê-lo pensar em conferir a este príncipe uma espécie de primazia sobre seus irmãos mais novos. Os dois reis deviam ir encontrar o imperador cada ano, levar-lhe presentes e dele receber outros maiores; deviam conferenciar com ele sobre negócios comuns. Foi o que deu a Lotário essas pretensões que lhe custaram tão caro. Quando Agobardo escreveu para este príncipe, alegou a disposição do próprio imperador, que associara Lotário, depois de, por três dias de jejum e celebração dos santos sacrifícios, por orações e esmolas, ter sido Deus consultado; que a nação lhe prestara juramento e que não podia ela perjurar; que enviara Lotário a Roma, para ser confirmado pelo papa. Pondera ele sobre tudo isso e não sobre o direito de primogenitura. Diz bem que o imperador designara uma partilha aos caçulas e dera preferência ao primogênito; mas dizer que preferira o mais velho era dizer ao mesmo tempo que teria podido preferir os mais moços. Porém, quando os feudos se tornaram hereditários, o direito de primogenitura estabeleceu-se na sucessão dos feudos, e, pela mesma razão, no da coroa, que era o grande feudo. A antiga lei, que instituiu partilhas, não mais subsistiu: sendo os feudos encarregados de um serviço, cumpria que o possuidor estivesse em condições de executá-lo. Estabeleceu-se um direito de primogenitura; e a razão da lei feudal forçou a da lei política e civil. Passando os feudos aos filhos do possuidor, os senhores perdiam a liberdade de dispor deles; e, para se compensarem, estabeleceram um direito que se chamou direito de resgate, de que falam nossos costumes, que se pagou inicialmente em linha direta e que, pelo uso, não se pagou mais do que em linha colateral. Em breve, os feudos puderam ser transferidos aos estrangeiros, como um bem patrimonial. Isso fez surgir o direito de laudênio e de vendas, estabelecido em quase todo o reino. Inicialmente, esses direitos foram arbitrários; mas, quando a prática de conceder essas permissões generalizou-se, foram fixados em cada região. O direito de resgate deveria ser pago quando de cada mutação de herdeiro e inicialmente foi pago mesmo em linha direta. O costume mais generalizado fixara-o em um ano de renda. Isso era oneroso e incômodo ao vassalo e afetava, por assim dizer, o feudo. Obteve, amiúde, no ato de homenagem que o senhor não exigisse para o resgate senão uma pequena quantia de dinheiro, a qual, pelas modificações havidas nas moedas, tornou-se de mínima importância: assim, o direito de resgate encontra-se atualmente quase reduzido a nada, enquanto o de laudêmio e de vendas subsistiu em toda a sua extensão. Não concernindo esse direito nem aos vassalos nem aos herdeiros, mas sendo um caso fortuito que não se devia prever ou esperar, não se fizeram essas espécies de estipulações e se continuou a pagar certa porção do preço. Quando os feudos eram vitalícios, não se podia dar uma parte do feudo, para mantê-lo para sempre como subfeudo; era absurdo que um simples usufrutuário dispusesse da propriedade da coisa. Porém, quando se tornaram perpétuos, isso foi permitido, com certas restrições que os costumes impuseram: o que se chamou fruir de seu feudo. Tendo a perpetuidade dos feudos feito estabelecer o direito de resgate, as filhas puderam suceder a um feudo, na ausência de sucessores masculinos. Pois, dando o senhor o feudo à filha, multiplicava os casos de seu direito de resgate, porque o marido devia pagá-lo como a mulher. Essa disposição não era válida para a coroa, uma vez que, não dependendo de ninguém, não poderia haver direito de resgate sobre ela. A filha de Guilherme V, conde de Toulouse, não sucedeu ao condado. Posteriormente, Eleonora sucedeu na Aquitânia, e Matilde na Normandia; e o direito de sucessão das filhas parece, nessa época, tão bem estabelecido que Luís, o Jovem, após a dissolução de seu casamento com Eleonora, não opôs nenhuma dificuldade em lhe restituir a Guiena. Como esses dois últimos exemplos seguem de muito perto o primeiro, cumpre que a lei geral, que chamava as mulheres à sucessão dos feudos, se tenha introduzido mais tarde no condado de Toulouse do que nas outras províncias do reino. A constituição dos diversos reinos da Europa seguiu o estado em que estavam os feudos na época em que esses reinos foram constituídos. As mulheres não sucederam nem à coroa da França nem à do império, porque, no estabelecimento dessas duas monarquias, as mulheres não podiam suceder aos feudos, mas sucederam nos reinos cujo estabelecimento seguiu o da perpetuidade dos feudos, tais como os que foram fundados pelas conquistas dos normandos, os que foram fundados pelas conquistas feitas sobre os mouros; outros, enfim, que, além dos limites da Alemanha, e em tempos assaz modernos, renasceram, de algum modo, pelo estabelecimento do cristianismo. Quando eram os feudos amovíveis, eram dados a pessoas que estavam em condições de servi-los e não se cogitava dos menores. Porém, quando foram perpétuos, os senhores tomaram o feudo até a maioridade, seja para aumentar seus proveitos, seja para educar o pupilo no exercício das armas. É a isso que nossos costumes chamam de guarda nobre, baseada em princípios diferentes dos da tutela e deles inteiramente diferentes. Quando os feudos eram vitalícios, recomendava-se para um feudo; e a tradição real, que se fazia pelo cetro, confirmava o feudo, como faz hoje a homenagem. Não nos consta que os condes, ou mesmo os enviados do rei, recebessem as homenagens nas províncias; e esta função não se encontra nas comissões desses oficiais, que nos foram conservadas nas capitulares. Algumas vezes, efetivamente, faziam que todos os súditos prestassem juramento de fidelidade, mas esse juramento era tampouco uma homenagem da natureza das que se estabeleceram depois, que, nessas últimas, o juramento de fidelidade era uma ação anexa à homenagem, que ora a seguia ora a precedia, que não se efetuava em todas as homenagens, que foi menos solene que a homenagem e dela era inteiramente distinta. Os condes e os enviados do rei mandavam ainda, em certas ocasiões, dar aos vassalos, cuja fidelidade era suspeita, uma garantia que se chamava firmitas, mas essa garantia não podia ser uma homenagem, pois os reis a davam entre si. Pois, se o Abade Suger fala de uma cadeira de Dagoberto onde, segundo a relação da antiguidade, os reis da França tinham o costume de receber a homenagem dos senhores, é claro que ele emprega aqui as ideias e a linguagem de sua época. Quando os feudos passaram aos herdeiros, o reconhecimento do vassalo, que nos primeiros tempos era apenas coisa ocasional, tornou-se ação regulamentada: foi feito de modo mais brilhante, repleto de formalidade, porque devia fazer com que fossem lembrados os deveres recíprocos do senhor e do vassalo, em todas as épocas. Poderia acreditar que as homenagens começaram a ser estabelecidas na época do Rei Pepino, época em que disse que vários benefícios foram dados perpetuamente: mas acreditá-lo-ia com precaução e apenas na suposição de que os autores dos antigos Anais dos francos não eram ignorantes, que, descrevendo as cerimônias do ato de fidelidade que Tassillon, duque da Baviera, fez a Pepino, tenham falado segundo os usos que viam ser praticados em sua época. CAPÍTULO XXXIV CONTINUAÇÃO DO MESMO ASSUNTO Quando os feudos eram amovíveis ou vitalícios, quase que só diziam respeito às leis políticas; é por isso que, nas leis civis dessas épocas, faz-se tão pouca menção às leis dos feudos. Porém, quando eles se tornaram hereditários, quando puderam ser dados, vendidos ou legados, disseram respeito às leis políticas e às leis civis. O feudo, considerado uma obrigação ao serviço militar, relacionava-se ao direito político; considerado um gênero de bem que estava no comércio, dependia do direito civil. Isso originou as leis civis sobre os feudos. Tendo-se os feudos tornado hereditários, as leis concernentes à ordem das sucessões tiveram que ser relativas à perpetuidade dos feudos. Assim se estabeleceu, apesar da disposição do direito romano e da lei sálica, esta regra do direito francês: Propres ne remontent point. Cumpria que o feudo fosse servido; mas um avô, um tio-avô teriam sido maus vassalos para dar ao senhor: destarte, essa regra só foi válida para os feudos, como nos informa Boutillier. Tendo-se os feudos tornado hereditários, os senhores, que deviam velar para que o feudo fosse servido, exigiram que as filhas, que deviam suceder no feudo e, creio, algumas vezes os varões, não pudessem casar sem seu consentimento; de sorte que os contratos de casamento se tornaram para os nobres uma disposição feudal e uma disposição civil. Num ato semelhante, feito sob os olhos do senhor, estabeleceram-se disposições para a sucessão futura, de modo que o feudo pudesse ser servido pelos herdeiros. Assim, só os nobres tiveram inicialmente a liberdade de dispor das sucessões futuras pelo contrato de casamento, como observaram Boyer e Alfrério. É inútil dizer que o retrait lignager, baseado no antigo direito dos pais, que constitui um mistério de nossa antiga jurisprudência francesa, que não tenho tempo de desenvolver, não tenha podido ocorrer com relação aos feudos, senão quando eles se tornaram perpétuos. Italiam, Italiam... Termino o tratado dos feudos, onde a maioria dos autores o começou.